“Film is a disease. When it infects your bloodstream, it takes over as the number one hormone; it bosses the enzymes; directs the pineal gland; plays Iago to your psyche. As with heroin, the antidote to film is more film.”
Frank Capra
A demonização do inimigo é a técnica de propaganda mais antiga ao serviço da guerra. É necessário que o inimigo suscite ódio e repulsa, seja desumanizado ao ponto do seu extermínio ser não apenas um desígnio meritório, mas também um acto probatório da superioridade moral de quem o pratica em nome dos valores de uma ordem superior. A guerra exige o reconhecimento, sem lugar para a dúvida, do campo dos bons e do campos dos maus. Nos filmes de propaganda nazi, os judeus foram equiparados às ratazanas dos esgotos, à pestilência portadora da doença, em última instância, a uma ameaça global capaz de destruir a civilização. Os judeus deviam ser exterminados. Em contrapartida, o oficial SS, impecável no seu elegante uniforme negro criado por Hugo Boss, representava o padrão racial mais elevado, o glamour purificador da guerra, o modelo a seguir na edificação do império de mil anos, saudável e feliz. O oficial SS tinha a missão de exterminar. Durante a II Guerra Mundial, em maior ou menor escala, todos os beligerantes fizeram uso dessa técnica de propaganda negra. Há inúmeros exemplos. Um deles, a propósito da guerra no Pacífico, é o documentário Know You Enemy: Japan (1945) de Frank Capra com assessoria de Joris Ivens, cuja caracterização do povo japonês, de tal modo infame, acabaria por incompatibilizar cineastas e Forças Armadas, inviabilizando a exibição do filme em tempo útil. De qualquer modo, com ou sem demonização, o cinema de propaganda anglo-saxónico produziu grandes filmes. Entre todos, destaca-se o notável seriado documental Why We Fight da responsabilidade de Frank Capra. Dele falaremos adiante.
Nota prévia. Os anos da II Guerra Mundial são fundamentais para se compreender a evolução do filme documentário, bem como as razões pelas quais a matriz anglo-saxónica se impôs como referência num contexto em que o campo dos media, e não apenas o Cinema, teve um papel determinante. No Canadá, a produção, em boa parte jornalística, foi praticamente um exclusivo do National Film Board. Na Grã-Bretanha, coabitaram diversas unidades de produção, destacando-se a Crown Film Unit com diversos filmes ainda hoje referenciados entre os mais interessantes. Nos Estados Unidos, realizadores de Hollywood como William Wyler, John Huston, George Stevens, John Ford, Frank Capra e outros mais alistaram-se nas Forças Armadas por dever patriótico. Entre eles fizeram documentários memoráveis. De tal modo que, nalguns casos, viriam até a ser considerados inadequados aos fins para os quais haviam sido concebidos porque, além de muito bem feitos, simplesmente mudavam o foco para o absurdo da guerra em si mesma e a necessidade de fazer a paz.
Aliados na linha da frente da propaganda
Canadá: uma guerra para newsreels, não para documentários. Voltemos ao escocês John Grierson. Ele não se limitou a institucionalizar o movimento documentarista britânico. A sua acção e princípios orientadores fizeram sentir-se, em maior ou menor grau, por todo o mundo de língua inglesa. No Canadá, lançou a sua iniciativa mais espectacular, o National Film Board (NFB). Os primeiros contactos de Grierson com o governo canadiano datam de 1937. No ano seguinte, foi convidado a elaborar um parecer sobre a possibilidade de utilizar o cinema de modo similar ao do Reino Unido. O ponto de partida e principal objectivo era melhorar o relacionamento entre os cidadãos e as instituições, bem como projectar uma imagem positiva do país no mundo. Tendo sido aceites suas recomendações, baseadas nas experiências do Empire Marketing Board, General Post Office e Film Centre (ver neste blogue os textos respeitantes ao Movimento Documentarista Britânico), o Parlamento canadiano legislou no sentido de criar o National Film Board (NFB). Não havendo, na altura, ninguém qualificado, com experiência bastante para assumir a direção, a escolha acabou por recair no próprio Grierson que assumiu funções em Outubro de 1939.
Contando com o apoio do primeiro ministro Mackenzie King, Grierson começou por rodear-se de alguns dos profissionais de maior notoriedade à época, alguns deles seus colaboradores nas ilhas britânicas, casos de Stuart Legg, Norman McLaren, Raymond Spottiswoode e Evelyn Spice. Dos Estados Unidos vieram o argumentista e produtor Irving Jacoby e o director de fotografia Roger Barlow. Da Holanda, Joris Ivens e John Ferno. De França, Boris Kauffman, famoso documentarista e operador de câmara, irmão de Dziga Vertov. Ao fim de um ano, o grupo, ao qual se foram juntando novos elementos, já tinha não apenas produzido e realizado quarenta filmes, mas, também, criado uma verdadeira escola onde os jovens talentos iam fazendo a sua aprendizagem.
De um modo geral, segundo opinião ainda hoje prevalecente, estes filmes, apesar dos nomes envolvidos, perdiam para os ingleses e americanos, cujos padrões qualitativos se revelavam mais exigentes. Duas razões terão contribuído para tal. Em primeiro lugar, embora criado ainda em tempo de paz, o National Film Board foi confrontado, logo a seguir, com a urgência inerente às tarefas determinadas pela guerra. Em segundo lugar, Grierson, um estudioso e profundo conhecedor dos media, via nos programas de carácter jornalístico a forma mais eficaz de dar resposta em tempo útil aos problemas de um dia a dia marcado pela guerra.
Daí a prioridade atribuída a dois seriados informativos, Canada Carries On e World in Action, de grande êxito junto do público. Este último, sob a orientação de Stuart Legg, chegou a competir em popularidade com March of Time à escala global. Para tanto, terá sido determinante a voz de Lorne Greene, segundo o juízo da época, mais rica e profunda do que a de Westbrook Van Voorhis, o famoso narrador de The March of Time (Ver neste blogue artigo respeitante aos Anos de Ouro das Actualidades Cinematográficas). No entendimento de Ellis e McLane, historiadores e teóricos do cinema documental, Grierson, um estudioso do campo dos media, acreditava estar perante uma guerra para newsreels, não para documentários. Dito de outro modo, os sinais do tempo requeriam mais a rudeza e imediatismo da reportagem do que o refinamento da arte cinematográfica.
Reino Unido: entre a ficção e o documentário. Em Londres, dois dias após os exércitos de Hitler terem invadido a Polónia, o primeiro-ministro Neville Chamberlain, que não há muito regressara de uma visita a Berlim exibindo uma declaração na qual o Führer se comprometia a não desencadear qualquer acto de agressão, declarou guerra à Alemanha. De início, a atitude dos ingleses não foi muito diferente daquela que o seu governo tivera quando, contra todas as evidências, durante muito tempo, preferiu contemporizar com o III Reich a pretexto de defender a paz. Na verdade, os ingleses, dado o estado calamitoso das suas forças armadas, também precisavam de ganhar tempo. Por isso, enquanto os nazis andaram longe das ilhas gerou-se uma atitude de expectativa, sem grandes sobressaltos. Mas, à medida que a Blitzkrieg avançava e, sobretudo, quando a França capitulou no Verão de 1940, o estado de ânimo da população britânica mudou.
Após a declaração de guerra de Chamberlain, tornou-se claro que o cinema teria um papel a desempenhar. À semelhança da generalidade dos países europeus, as salas do Reino Unido tinham sido invadidas por filmes de Hollywood e pelas suas estrelas. Pontualmente, podiam ser mencionados exemplos de trabalhos interessantes de jovens realizadores como Alfred Hitchcock ou Anthony Asquith, mas, de um modo geral, o cinema de estúdio britânico não gozava nem do favor do grande público nem da intelectualidade. Pelo contrário, o documentário ganhara um estatuto que o recomendava para as tarefas que se adivinhavam. Ainda assim, num primeiro momento, as medidas do governo foram contraditórias.
Desconfiando dos documentaristas, a quem atribuíam tendências esquerdistas, os conselheiros da área cultural de Chamberlain eram favoráveis a chamar gente dos estúdios para fazer filmes de propaganda. O General Post Office (GPO), bem como os grupos independentes, entretanto, criados, insurgiram-se contra a discriminação. Pouco depois da declaração de guerra, por sua conta e risco, fizeram The First Days (1939), com realização de Harry Watt, Humphrey Jennings e Pat Jackson. Apesar da nomeação, em Janeiro de 1940, de John Reith - o homem que se tornou célebre à frente da BBC - para ministro da Informação, a situação não se alterou significativamente (Sobre Jennings ver neste blogue O Movimento Documentarista Britânico IV)
Contudo, com a designação, em Maio do mesmo ano, de Winston Churchill para primeiro-ministro, Reith foi substituído por Brendan Bracken à frente do ministério. Bracken, por seu turno, destacou para chefiar a Films Division um homem que conhecia bem o movimento documentarista e os seus praticantes, Jack Beddington, que tinha sido, inclusivamente, um dos responsáveis pela criação da Shell Film Unit. O primeiro acto de gestão de Beddington foi solicitar ao Film Centre um parecer sobre como utilizar o cinema em tempo de guerra. Com Grierson no Canadá, esse parecer foi redigido por Edgar Anstey, Paul Rotha e Basil Wright. Viria a ser determinante para o documentário britânico. O GPO foi transformado na Crown Film Unit de cuja produção resultariam alguns dos melhores documentários britânicos feitos durante a II Guerra Mundial. A maioria dos seus cineastas viria a participar desse esforço até à derrota do nazismo. Entre todos, destacar-se-ia Humphrey Jennings.
Estados Unidos: quando os mestres de Hollywood se alistaram. O United States Film Service de Pare Lorentz não deixou nada de comparável a um movimento documentarista organizado (Ver neste blogue Pare Lorentz, o cineasta de Roosevelt)). Devido à existência de uma forte corrente isolacionista, o presidente Roosevelt, embora ciente da ameaça nazi e da probabilidade de vir a declarar guerra à Alemanha, temia acicatar a opinião pública numa altura em que considerava importante manter uma imagem de neutralidade em relação aos acontecimentos na Europa. Fez, por isso, um acordo com Churchill no sentido de controlar a entrada de propaganda britânica na América enquanto a situação não fosse mais clara. No entanto, o problema foi habilmente contornado através da acção de Grierson, no Canadá, país não abrangido pelas limitações que condicionavam os Estados Unidos. A par de exportar para o país vizinho os filmes canadianos, Grierson enviava também os documentários ingleses sobre a guerra, aos quais viria a ser apontada alguma da responsabilidade pela perda progressiva de influência do movimento isolacionista no qual pontificava o famoso aviador Charles Lindbergh.
Após a declaração de guerra às potências do Eixo na sequência do ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de Dezembro de 1941, tudo mudou. Os Estados Unidos adoptaram outra atitude em relação ao cinema de propaganda, passando a olhá-lo como prioridade. Além dos realizadores de Hollywood já referidos outros nomes sonantes vieram alistar-se, designadamente, Carl Foreman, Joris Ivens, Anatole Litvak e, até, Robert Flaherty. Daí que o esforço de propaganda conjunto, embora com diferentes orientações, dos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, trouxesse ao documentário em língua inglesa assinalável projecção com reflexos no pós-guerra, em particular, na televisão. Não é tanto isso, porém, o que aqui nos importa. Importa, sim, sinalizar alguns dos filmes americanos que maior importância tiveram não só enquanto ferramentas simbólicas do combate anti-nazi e anti-fascista, mas também devido ao efeito que, por diferentes razões, produziram no campo da narrativa documental.
Documentários de informação. Apesar dos constrangimentos de vária ordem, a começar pelas regras impostas pela instância militar, e da celeridade exigida pelo estado de guerra, foi possível fazer filmes como Memphis Belle (1944) de William Wyler sobre o famoso avião bombardeiro que apesar das inúmeras acções de combate conseguiu sempre regressar à base, December 7th (1943) de John Ford e Gregg Toland, o director de fotografia de Orson Welles em Citizen Kane (1941), sobre o ataque japonês a Pearl Harbour e The Batlle of San Pietro (1945) de John Huston sobre a batalha travada entre as tropas americanas e os exércitos nazis pelo controle do vale estratégico de Liri, em Itália.
Muitos destes filmes, por dependerem das autoridades militares foram censurados, outros exibidos apenas para militares, outros, ainda, mal chegaram a ser vistos. The Battle of San Pietro, por exemplo, considerado por alguns o melhor documentário de guerra desta época, foi amputado de uma das suas sequências mais interessantes, na qual Huston utilizava gravações de vozes de soldados mortos, efectuadas antes da partida para a frente de combate, justapostas a fotografias dos seus corpos, com o intuito de realçar o seu sacrifício na luta pela liberdade. December 7th, por razões políticas e diplomáticas, esteve banido durante 50 anos pelo governo dos Estados Unidos só tendo reaparecido na sua versão integral no fim do século passado.
Dos sete documentários de Why we Fight (1943-1944) o público americano só viu o primeiro, Prelude to the War, logo após a conclusão, depois de uma diligência pessoal do presidente Roosevelt nesse sentido. Todos os demais, ainda que distribuídos no estrangeiro quando possível – Churchill, por exemplo, fez questão de ser ele próprio, através de uma declaração filmada por Capra, a fazer a introdução das cópias exibidas no Reino Unido – destinaram-se essencialmente a militares ou públicos seleccionadas. Só The Battle of Russia, dada a curiosidade suscitada por se tratar da URSS, teve direito a mais ampla divulgação. Algo paradoxalmente, os exibidores americanos consideravam estes documentários demasiado agressivos para os hábitos dos consumidores de filmes de Hollywood.
Se inicialmente se utilizou abundante material de newsreels, importa sublinhar uma alteração importante. A partir de 1943, depois do sucesso do documentário britânico Desert Victory (1943) de David MacDonald, sem descurar o arquivo, passou a optar-se com frequência por imagens frescas dos operadores de câmara enviados para zonas de acção. Os próprios realizadores não se inibiam de acompanhar missões de combate, como aconteceu com George Stevens e William Wyler, este último ferido com gravidade durante uma missão de bombardeamento do Memphis Belle sobre território alemão. As reconstruções, embora muito em uso noutro tipo de filmes feitos pelo exército com fins educativos ou de treino militar, eram menos frequentes nos filmes de guerra dos cineastas de Hollywood, os quais, no plano institucional, eram apresentados como documentários informativos. Apesar de o ponto de vista não deixar margem para dúvidas, o facto é que chegou a colocar-se a questão da objectividade, bem como de saber se respeitavam ou não a verdade dos factos. Não, não respeitavam. Em nenhuma guerra isso alguma vez aconteceu. Tão pouco prescindiam da diabolização do inimigo sem a qual à coesão da opinião pública certamente abriria brechas com efeitos indesejáveis.
O seriado documental de Frank Capra
Na sua estupenda autobiografia, à qual deu o título de O Nome Acima do Título, Capra diz ter rejeitado um contrato milionário oferecido por uma das majors para se alistar por imperativo de consciência. Outros realizadores, actores, argumentistas e técnicos fizeram a mesma opção. O recrutamento, porém, não foi fácil. Apesar de abalada após o ataque japonês a Pearl Harbour, a corrente isolacionista continuava a ser influente. O estado de espírito das Forças Armadas também não parecia ser o melhor. Capra conta que o general George C. Marshall, então Chefe de Estado Maior, o mandou chamar:
“Para vencermos esta guerra temos primeiro de vencer a batalha da mentalização dos nossos jovens. (...) o que eu quero combinar consigo é um projecto de realização de uma série de documentários informativos, serão os primeiros da nossa História, que consigam explicar aos nossos soldados a razão porque lutamos e os princípios pelos quais nos batemos ”.
Assim surgiu a ideia de Why We Fight, produzido durante a II Guerra Mundial pelo US Department of War, entre 1942 e 1945, vencedor de alguns Óscares da Academia. Capra nunca antes tinha realizado um documentário. Numa atitude típica de homem de Hollywood, afirmava mesmo não conhecer sequer alguém que os fizesse. Contudo, ao ver O Triunfo da Vontade de Leni Riefenstahl, comentou: “nem Satanás seria capaz de conceber um super-espectáculo mais arrepiante.” Noutra passagem da sua autobiografia escreveu: “Triumph of the Willens não disparava armas, nem lançava bombas. Mas, como arma psicológica, o seu alvo era destruir a vontade de resistir e, nesse sentido, era tão letal como qualquer outra arma. ”
Começou então a perceber o que viriam a ser os seus documentários informativos. Iria “utilizar os próprios filmes do inimigo para denunciar a escravatura da humanidade que esse inimigo se propunha atingir. Queria que os nossos soldados ouvissem os nazis e os japoneses gritar alto e bom som as suas pretensões a uma Raça de Senhores. Os nossos soldados perceberiam então a razão pela qual eram obrigados a vestir uma farda.”
Reunindo à sua volta uma equipa que juntava, entre outros, Anatole Litvak, Eric Knight, Tony Veiller, Robert Heller e Leonard Spiegelglass, Capra principiou a trabalhar nos argumentos dos sete episódios que viriam a constituir Why we Fight - Prelude to War (1942), The Nazis Strike (1943), Divide and Conquer (1943), Battle of Britain (1943), Battle of Russia (1943), Battle of China (1944) e War comes to América (1945) –, ao mesmo tempo que procurava reunir o maior número possível de filmes e newsreels da Alemanha nazi, da Itália fascista e do Japão imperial. Na verdade, a sua equipa chegou a reunir praticamente tudo o que esses países tinham feito nos últimos vinte anos. À equipa inicial juntaram-se novos nomes de Hollywood onde, de resto, a maior parte do seriado acabaria por ser feito em instalações improvisadas num velho estúdio abandonado da Twentieth Century-Fox.
Para o episódio da Rússia, Capra fez diligências junto da embaixada da União Soviética em Washington no sentido de obter imagens dos clássicos de Eisenstein, Vertov, Pudovkin e de outros grandes cineastas, bem como de jornais cinematográficos desde os primeiros números do Kino-Pravda. Conseguiu reunir uma impressionante quantidade de material, o que certamente terá contribuído para The Battle of Russia ser habitualmente considerado o melhor de todos os episódios do seriado. A diligência, porém, teve consequências. Por indicação de J. Edgar Hoover, Capra, por sinal, um anti-comunista, passou a estar sob observação do FBI, situação tanto mais irónica quanto é certo que Roosevelt acabara de ver entusiasmado Prelude to War na Casa Branca. Reagindo de forma imediata, o presidente americano determinou que o filme fosse amplamente divulgado. No ano seguinte, no Kremlin, em Moscovo, Estaline assistiu igualmente entusiasmado à projecção das duas partes de The Battle of Russia. Ordenou de imediato que o filme fosse profusamente exibido em todo o território da União Soviética.
Frank Capra diz ter revolucionado a maneira de fazer filmes informativos para as Forças Armadas americanas. É verdade. Certamente, Why we Fight nada tem a ver com os chamados filmes educativos e de treino militar realizados até então. Sugere, igualmente, ter criado um novo tipo de documentário, fazendo a síntese, na linha de Paul Rotha, do cinema documental associado quer à tradição de newsreels quer à tradição da propaganda. Não será bem assim. A utilização de imagens de jornais cinematográficos vinha pelo menos desde A Queda da Dinastia Romanov (1927) de Esfir Schub e a inserção de excertos de filmes de ficção em documentários era já uma prática recorrente. A propaganda, por sua vez, era tão antiga quanto o próprio cinema. Animações e gráficos, que em Why we Fight são da equipa de Walt Disney, também não eram uma novidade. Tão pouco a música, tal como a concebeu Dimitri Tiomkin, por exemplo, em The Battle of Russia. E muito menos o texto off e a voice of God usados praticamente desde o advento do cinema sonoro. Contudo, Why we Fight foi uma novidade na medida em que nunca antes na América o documentário tinha sido tão argumentativo nas premissas e tão contundente nas conclusões.
Se os procedimentos formais e estilísticos do seriado procedem de normativas de propaganda no contexto da época, a verdade é que que também nesse campo se deu um passo em frente. Em primeiro lugar, a estrutura narrativa tem por base guiões imaginativos, encontra respaldo na qualidade dos textos e propõe uma polifonia na qual as vozes assumem uma função quase encantatória. Em segundo lugar, a montagem explora a polissemia das imagens, de arquivo ou não, revertendo muitas vezes o seu significado de modo a estabelecer um jogo no qual o público acaba por ficar enredado numa teia de evidências irrefutáveis, de forte pendor emocional. Não será um exclusivo de Capra, mas é certamente uma das características dos melhores documentários dos cineastas de Hollywood tornados oficiais das Forças Armadas.
Por exemplo, no extraordinário The Battle of San Pietro, que não integra o seriado, John Huston observa o morticínio causado pelos combates e mostra a seguir os esfarrapados camponeses italianos de regresso à sua aldeia destruída carregando o fardo de ter de a reconstruir. Quanto aos soldados americanos, vêmo-los partir para novas batalhas. Huston, autor do texto lido por ele próprio, diz pausada e introspectivamente: “more rivers, and more mountains, and more towns...more San Pietros’, greater or lesser – a thousand more”. Fica com uma poderosa imagem dos incontáveis sacrifícios a suportar até à vitória final. Talvez por isso o filme tenha sido amplamente cortado e muito raramente exibido. Transformara-se num libelo contra a guerra.
Dispositivos retóricos. Em Prelude to the War o texto, dito no estilo March of Time por Walter Huston, pai de John Huston, não deixa dúvidas. Capra apresenta o mundo a preto e branco. De um lado, o mal constituído pelo Eixo. Do outro, o bem identificado como o mundo livre. Expressões como “reparem bem” ou “olhem para estes homens” são recorrentemente utilizadas de modo a interpelar directamente o público. Por vezes, as frases estão ao serviço de silogismos simples e as conclusões reforçam mais e mais os antagonismos de modo a que no final a opção só possa ser uma: travar uma luta sem tréguas contra o mal para que a humanidade encontre a salvação.
A necessidade dessa luta deve, no entanto, ser interiorizada quer no plano racional, quer no plano emotivo. Por isso, The Nazis Strike acrescenta um outro artifício. Sabendo da importância da voz, Capra utiliza dois narradores. Anthony Veiller para os textos de carácter referencial, fazendo uma leitura que sugere a informação objectiva e Walter Huston para apelar à emoção em textos nos quais, na terminologia de Roman Jakobson, predominam as funções expressiva e fática.
A narrativa da maior parte dos episódios é construída em cinco actos à maneira da tragédia clássica, como acontece, por exemplo, em Divide and Conquer. Este episódio, a par de The Battle of Russia, é dos mais complexos. As imagens factuais de newsreels são montadas em sequências que obedecem a uma estratégia de conflito, mas, neste caso, o conflito existe com algumas subtilezas, explicando Capra, na sua autobiografia, que encontrou maneira de lidar com os países em guerra como se de personagens se tratassem:
“A este respeito (...) o filme tem uma curiosa semelhança com Hamlet, sendo que a Alemanha é Cláudio, o vilão assassino, a França é vista como Hamlet, o General De Gaulle e o Norte de África francês são Horácio, a Inglaterra é Fortimbras. Aqui, tal como em Hamlet, as coisas não são exactamente o que parecem, com o vilão a protestar amizade e o herói trágico constrangido pela sua incapacidade de agir.”
Talvez seja essa sofisticação a razão pela qual os filmes de Why we Fight, bem como os documentários dos cineastas alistados de Hollywood, tiveram melhor acolhimento junto das camadas mais cultas das Forças Armadas, tendo sido, em simultâneo, considerados demasiado intelectuais pela maioria dos soldados submetidos a testes cognitivos por parte de cientistas sociais como Hovland, Lumsdaine e Sheffield. Não que o inimigo não estivesse perfeitamente identificado, caracterizado e diabolizado. Mas, tratando-se de persuasão, porquê confundir, mesmo se inadvertidamente, quem já está convencido e com opinião formada?
Fazer cinema de propaganda era qualquer coisa que não se enquadrava com os hábitos americanos. Basta lembrar Pare Lorentz durante o New Deal e as reacções suscitadas pelos sectores mais conservadores a propósito da sua tentativa de criar um movimento na linha do movimento documentarista britânico (Ver neste blogue Pare Lorentz, o cineasta de Roosevelt). Por maioria de razão, fazer cinema de propaganda para as Forças Armadas em tempo de guerra era ainda mais complicado. Daí as numerosas resistências que Why we Fight encontrou, sobretudo no início, mas não só. Fosse por motivos administrativos, fosse por razões de ordem política, os entraves multiplicaram-se e, muitas vezes, a discussão centrou-se em torno de questões aparentemente tão improváveis, atendendo às circunstâncias, quanto o eram a verdade e a objectividade. Na sua autobiografia Frank Capra ilustra a situação com recurso a diversas citações. Vejamos o Hollywood Reporter de 11 de Fevereiro de 1943 a pretexto de Prelude to War:
“(...) O senador Holman acha que é um filme de propaganda, uma maneira de dar a Roosevelt um novo mandato e exige um inquérito a este e a todos os outros filmes encomendados pelo governo. Mas diz-se que Prelude to War provocou também uma outra controvérsia, envolvendo Lowell Mellett e o Departamento de Guerra, quanto à questão do filme ser ou não exibido nas salas de cinemas para a generalidade do público. (...) Mellett acha que Capra se excedeu e que o seu filme tem ódio a mais para ser exibido nos cinemas perante um público mais vasto (…).”
Pouco tempo depois, o filme passou no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Eis duas reacções. H. V. Kaltenborn: “Tanto quanto sei é a primeira vez que se apresenta um documento histórico verdadeiro sobre esta década de agressão.” Harold Ross, chefe de redacção do New Yorker: “É ESTE o filme que o senador Holman atacou um dia destes? Nele não há qualquer propaganda! Apenas a VERDADE!.”
Linguagem cinematográfica; controvérsia. Os filmes de Why we Fight, hoje considerados um momento chave no percurso do documentário e do cinema de propaganda, suscitaram outro tipo de controvérsia, desta vez tendo como pano de fundo a linguagem e os mecanismos da significação. Essa controvérsia, por sinal com pontos de contacto com aquela outra aberta, mais tarde, em torno do filme documentário e da reportagem jornalística, teve em André Bazin, teórico do realismo e crítico da montagem, um dos principais protagonistas.
De entre os filmes do seriado há um com uma montagem particularmente impressiva. Trata-se de The Battle of Britain. Tomando como ponto de partida A Grande Sintagmática de Christian Metz constata-se que a sua banda-imagem é feita a partir de mil e duzentos planos de material de arquivo, de origem diversa, estruturados em 195 segmentos autónomos. Com a duração de 55 minutos o filme, segundo o estudo de William Guynn, tem 26 inserts, 37 planos autónomos, nenhum sintagma paralelo, 36 sintagmas em chaveta, 24 sintagmas descritivos, nove sintagmas alternados, 9 cenas, nenhuma sequência por episódios e 53 sequências simples.
Sendo certo que a cadeia sintagmática permite identificar com relativa segurança o tipo de narrativa em qualquer tipo de documentário e sendo igualmento certo, de acordo com o estudo mencionado, que nos chamados documentários clássicos há uma grande variedade de combinações significantes, não deixa de ser surpreendente o grau de fragmentação discursiva de The Battle of Britain. O elevado número de sequências simples contrasta com a ausência de sequências por episódios. Ambas, a par do sintagma alternado e da cena são do âmbito dos chamados sintagmas narrativos. Por outro lado, o número de sintagmas em chaveta e de sintagmas descritivos, ambos não-narrativos, é igualmente muito elevado. Como resolver então o problema desta fragmentação discursiva e conferir unidade à narrativa? A resposta é simples. Obviamente, através do texto. É o texto que liga tudo o mais. Há portanto uma operação semântica que privilegia a gramática da língua em detrimento da lógica das imagens.
É contra este procedimento que Bazin se insurge. De facto, o comentário em The Battle of Britain, como the resto em todo o seriado de Frank Capra, é um elemento essencial da narrativa, como que suturando os hiatos da articulação sintáctica das imagens e criando, desse modo, a ilusão de continuidade espacio-temporal. Daí a ausência de sequências por episódios, habitualmente associadas na narrativa clássica às sequências simples como patamar de acesso a acções mais distendidas. O texto cumpre essa função. Teríamos assim uma voz de autoridade, exterior às imagens e, portanto, condicionando o seu significado num processo que Bazin compara ao ventriloquismo: sendo dissimulada, a voz desloca-se subrepticiamente para junto do espectador e impõe um sentido ao que está a acontecer, levando-o a encarar as imagens como meras ilustrações ou prova do que é afirmado. Para um realista como Bazin estes procedimentos não só manipulam, mas também subvertem toda a ordem de significação do cinema. É como se a dimensão ontológica da imagem se deslocasse para o texto.
Aqui, entraríamos no campo da semiótica e das Teorias do Cinema. Não é esse o foco do artigo. As observações, quer de Guynn quer de Bazin, sendo também relevantes para a História e Teoria do Documentário, ficam como registo.
Considerações pessoais
Os Estados Unidos nunca recuperaram totalmente de Pearl Harbor. Talvez por isso o tema seja recorrente no cinema americano, talvez por isso sejam os japoneses o inimigo mais odiado na produção de filmes levada a cabo pelos militares, talvez por isso a guerra no Pacífico tenha sido de uma brutalidade sem paralelo. Em Know Your Enemy, um conjunto de documentários sobre os países do Eixo, o mais violento é sobre o Japão. Logo no início, diz o narrador: “We shall never completely understand the Japanese mind. But then, they don’t understand ours either. Otherwise, there would never have been a Pearl Harbor.” Aos 4’00” do filme faz-se a caracterização do “typical Japanese soldier.” Ele é cem por cento militarista, conformista, fanático, age com a determinação de uma máquina e não tem qualquer respeito por nenhum outro modo de vida que não seja o seu. É de baixa estatura, padronizada, de tal forma que: “He and his brother soldiers are as much alike as photographic prints off the same negative… His uniform is ill-fitted, his appearance un-soldierly.”
Os Aliados fizeram centenas de filmes de guerra, tanto no sistema de estúdio quanto fora dele, criaram milhares de jornais cinematográficos onde a primeira vítima foi a verdade, puseram no ar milhões de emissões de rádio em onda curta com emissões em várias línguas para todos os países do mundo nos quais se procurava diminuir e desmoralizar o inimigo. Do outro lado, também. Joseph Goebbels era um génio da propaganda. Percebeu muito bem como utilizar a comunicação de massas, Imprensa, Rádio e Cinema, criando uma agenda da guerra baseada na articulação e complementaridade dos meios ao seu dispor. Também foi pioneiro das realidades alternativas, bem como da propaganda que não devia parecer propaganda. Tal qual hoje observamos.
Espantoso é encontrar neste quadro de pesadelo objectos fascinantes, como os filmes que aqui citei, e homens extraordinários, com as suas grandezas e misérias, como o foram aqueles cineastas de Hollywood que, movidos por convicções, deram um passo em frente. Há um livro magnífico de Mark Harris, traduzido em português com o título Os Cinco Que Voltaram, cuja leitura nos dá a conhecer tanto o lado mais luminoso quanto o mais sombrio de cinco grandes mestres - os da última foto deste texto - envolvidos com os documentários da II Guerra Mundial: Frank Capra, William Wyler, George Stevens, John Huston e John Ford. Houve outros. Mas estes, todos eles muito diferentes, movidos pela audácia do seu conservadorismo ou pela fidelidade às suas ideias avançadas, constituem uma galeria de personagens cujo denominador comum, a devoção sem limites ao cinema, permite todas as derivas - copos, mulheres, charutos, acção - salvo o dever de missão mesmo se, volta e meia, embotado pelos vapores do álcool que, se o combate é duro, a guerra é ainda mais e o sofrimento das pessoas é simplesmente intolerável.
Em todas as guerras haverá sempre uniformes militares desenhados por estilistas da moda, sessões encenadas por fotógrafos de celebridades, centauros de tronco nu exibindo virilidade. É preciso que a guerra tenha glamour. Também são necessários crimes contra a humanidade. Valas comuns. Um cortejo de atrocidades praticados pelos maus. Um desfile de actos edificantes praticados pelos bons. Tudo isto está nos filmes de que vos falei. Hoje, regra geral, a propaganda chama-se jornalismo. É storytelling. Com grande perda de qualidade, digo-vos eu. E, já agora, não esqueçam: primeiro, o pior de tudo é o que se faz às pessoas; segundo, quando a política falha a guerra pode ser inevitável e até necessária; terceiro, afinal, o acerto de contas de Pearl Harbor fez-se em Hiroshima e Nagasaqui.
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