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CULTURA

Foto do escritorJorge Campos

Ucrânia e Médio Oriente - A construção da realidade: televisão, notícias e propaganda 


Imagem: AP

Mentir constantemente não tem por objetivo fazer com que as pessoas acreditem na mentira. Tem, sim, o propósito de fazer com que não acreditem em nada. Quem não consegue distinguir entre verdade e mentira não distingue o bem do mal. Quem fica privado de pensar, sem disso ter consciência, fica refém da mentira. Com pessoas assim faz-se o que bem se entender. O que acabo de escrever foi recuperado, não literalmente, de Hannah Arendt a propósito do seu discurso sobre a banalidade do mal. O que se segue são declinações sobre modos da mentira. O ponto de partida é um conjunto de episódios e reflexões em torno da guerra e do poder das imagens. O ponto de chegada é a cobertura noticiosa das guerras da Ucrânia e no Médio Oriente.

 

As notícias são representações. São também construções que tanto passam pelo efeito de uma agenda de interesses, quanto pela natureza do medium e da sua linguagem. Podem as notícias ser mentira? Podem. Há até conhecimento de guerras que começaram com mentiras publicadas em jornais. William Randolph Hearst, proprietário do New York Journal e um dos criadores da chamada yellow press, foi, pelo menos em parte, responsável pela guerra hispano-americana. Conta-se a seguinte história. Quando os seus enviados a Havana lhe comunicaram que iriam regressar a Nova Iorque visto estar tudo calmo, não havendo indício de perturbações, respondeu com um telegrama do seguinte teor: “Please remain. You furnish the pictures and I’ll furnish the war.”

 


 William Randolph Hearst: “You furnish the pictures and I’ll furnish the war.” Imagem: sinalAberto

Estava-se no século XIX e a fotografia ainda não chegara à imprensa. Mas um dos enviados de Hearst, um ilustrador famoso de nome Frederic Remington, desenhou as imagens pedidas, de extrema violência, sem qualquer relação com a realidade. Foram publicadas ao mesmo tempo que títulos garrafais da primeira página anunciavam o caos. O sensacionalismo colocou a guerra no centro dos comentários. Comentou-se o que não existia. A guerra estalou. O episódio, nunca inteiramente confirmado nem totalmente desmentido, entrou na história do jornalismo. Ou na lenda, da qual os jornalistas nunca prescindiram.

 

1. Retrospetiva: o Golfo e o Vietname 

 

A minha primeira experiência de cobertura televisiva de uma guerra remonta ao princípio de agosto de 1990 quando as tropas do Iraque, então sob o regime de Saddam Hussein, invadiram o Kuwait. Nunca estive no Kuwait, tão pouco, no Iraque. O que fiz foi estar dentro de um estúdio da RTP, no Porto, a fazer a tradução simultânea da emissão da CNN, que passou a ocupar a maior parte do tempo de antena. Nessa altura, a televisão por cabo e satélite não tinha, nem de perto nem de longe, a expansão que a tecnologia digital viria a proporcionar. Foi também essa primeira Guerra do Golfe que catapultou o então muito jovem José Rodrigues dos Santos para a fama. Foi ele, estando de serviço, quem, apanhado pelo início da operação militar dos Estados Unidos e aliados, geriu a situação em direto com surpreendente eficiência. A maioria das imagens em tempo real tinham origem na estação americana. Um verdadeiro enxame de comentadores invadiu a pantalha. Foi assim até 28 de fevereiro de 1991, data do final do conflito. Os Estados Unidos derrotaram as tropas de Saddam Hussein e José Rodrigues dos Santos passou a ter lugar cativo na apresentação do Telejornal. Quem também veio para ficar, se bem me lembro chegando a levar para estúdio miniaturas de vários tipos de armas, foi Nuno Rogeiro. Nessa altura, ainda não havia televisão privada em Portugal.

 

A segunda Guerra do Golfo começou, em 20 de março de 2003. E começou com uma mentira. Os Estados Unidos, à frente de uma coligação internacional, invadiram o Iraque alegando que Saddam Hussein escondia armas de destruição massiva, as quais seriam uma ameaça para o “mundo livre”. Chamou-se à intervenção americana Operation Iraqi Freedom posto que se tratava de libertar os iraquianos de um déspota sanguinário e de instalar a democracia. Afinal, ao contrário das alegadas provas apresentadas no Conselho de Segurança da ONU pelo secretário de Estado Colin Powell, as armas de destruição massiva não existiam. Quanto à democracia iraquiana, os resultados estão à vista. O petróleo passou para as mãos de companhias americanas, o país, berço de uma das mais antigas civilizações à face da Terra, ficou reduzido a escombros e as estimativas da perda de vidas de civis iraquianos apontam para um número a rondar o meio milhão. 

 


O general Colin Powell no Conselho de Segurança da ONU a fazer prova da existência de armas de destruição massiva no Iraque. Na verdade, as armas não existam. O episódio ficaria para a posteridade como O Momento Colin Powell. Imagem: Academy of Achievment

A segunda Guerra do Golfo, tal como a primeira, foi transmitida em direto na televisão. Mas, agora, dada a expansão dos canais de notícias, a uma escala e com uma sofisticação sem precedentes. Em primeiro lugar, os jornalistas receberam treino para acompanhar tropas em zona de combate. Na verdade, na prática, o “embedded journalism”, uma ideia desenvolvida pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, permitia controlar a atividade dos repórteres, designadamente quanto à permissão de filmar e fotografar. Os critérios de selecção dos participantes, em função do seu perfil, foram negociados com as entidades patronais. Em segundo lugar, do ponto de vista iconográfico, a guerra foi apresentada como um jogo de PlayStation. Produzidas e cedidas às televisões pelas autoridades militares, as imagens eram, as mais das vezes, dignas da Guerra das Estrelas de George Lucas. Em terceiro lugar, à dimensão espetacular juntava-se uma componente humanitária. Por exemplo, os novos caças e bombardeiros americanos de última geração apenas atingiriam alvos militares, poupando as populações civis. Chamou-se a isso “guerra cirúrgica”. Finalmente, a justiça da expedição, o seu carácter libertador, explicava-se pelo dever moral de derrotar um inimigo que não só oprimia o seu povo, mas era, igualmente, uma ameaça para a humanidade. Em suma, mais do que informar, a cobertura televisiva fez-se no sentido de condicionar, de modo a garantir o indispensável respaldo da opinião pública às decisões militares.

 

A última guerra em que os correspondentes puderam movimentar-se com relativo à vontade foi a do Vietname. Dessa liberdade de movimentos resultou a necessidade de assumir riscos que, por vezes, custaram vidas. Surgiram, então, na imprensa, extraordinárias peças nas quais os jornalistas, para transmitirem as experiências vividas, lançaram mão de técnicas narrativas dos géneros literários dando origem aquilo que viria a ser conhecido como New Journalism. Ainda assim, a maioria da cobertura noticiosa não se afastava significativamente das posições oficiais. Nas televisões - durante algum tempo, fizeram uma espécie de acordo tácito patriótico no sentido de evitar levar o sangue e a morte para o ecrã - houve uma altura em que o impacto do New Journalism, bem como de reportagens mais ousadas, obrigaram a procurar dar a ver outras coisas. O ponto mais célebre dessa viragem foi protagonizado pelo anchorman do boletim de notícias The CBS Evening News, Walter Cronkite, não só um dos homens com maior notoriedade nos Estados Unidos, mas também um daqueles em quem os americanos depositavam maior confiança. À semelhança da maioria dos ícones do jornalismo televisivo à época, era um anticomunista convicto.

 

Em 1967, havia a ideia de que a América estava a inverter o rumo dos acontecimentos e que podia ganhar a guerra. O comandante em chefe no Vietname, general William Westmoreland, afirmara estar a ter sucesso na guerra psicológica de “hearts and minds” e que, no campo de batalha, “the enemy´s hopes are bankrupt”. Seguiu-se a famosa Ofensiva do Tet. Em janeiro de 1968, contradizendo o ponto de vista oficial, a guerrilha fez dezenas de ataques de surpresa a cidades do Vietname do Sul, incluindo Saigão. A própria embaixada americana foi invadida por um grupo de 19 guerrilheiros, que viriam a ser abatidos. As imagens de combates nas ruas da capital do Vietname do Sul chocaram a opinião pública americana. Cronkite foi enviado para observar in loco a situação. De regresso a casa, em 27 de fevereiro, a CBS News pôs no ar, durante uma hora, Report from Vietnam: Who, What, When, Where, Why?

 

O programa tornou-se um clássico do jornalismo contemporâneo. Procedendo com as cautelas dos media corporativos no que respeita ao equilíbrio e ao exercício do contraditório, interrogava-se, no entanto, sobre quem, na verdade, estava a ganhar a guerra. Não se estaria num impasse, num beco sem saída? No final, a concluir, Cronkite pronunciou as palavras que devastaram a Casa Branca e entraram para a História:

 

“It seems now more certainly than ever that the bloody experience of Vietnam is to end in a stalemate. It is increasingly clear to this repórter that the old rational way out then will be to negotiate, not as victors, but as an honorable people who lived up to their pledge to defend democracy, and did the best they could”.

 

Para os padrões da época, Cronkite ultrapassara uma linha vermelha. O seu jornal, bem como a generalidade dos programas da televisão comercial, tinha forte presença de anunciantes. Na CBS, aliás, havia um histórico de pressões sobre os conteúdos. O episódio mais relevante remonta ao tempo da caça às bruxas e, a prazo, acabaria por contribuir para o afastamento de Edward R. Murrow, seguramente, o jornalista americano mais importante do seu tempo. Murrow ousara pôr a nu os processos utilizados nos interrogatórios do senador Joseph McCarthy. Quer os anunciantes quer os republicanos nunca lhe perdoaram. (Informação detalhada sobre Murrow neste blogue, aqui )

 

Cronkite, conhecido nas famílias como “uncle Walter”, tal a frequência com que entrava em suas casas, ao reportar sobre a guerra do Vietname cometeu uma heresia. Trouxe à superfície as dúvidas latentes sobre o desfecho da guerra entrando no domínio da opinião. É atribuído ao presidente Lyndon B. Johnson o seguinte desabafo: “If I’ve lost Cronkite, I’ve lost Middle America”. Em parte, assim foi. Mas o episódio também contribuiu para alimentar o mito da imprensa livre e dos seus paladinos.

 

Walter Cronkite em reportagem no Vietname. Muitos anos mais tarde, diria: “I covered the Vietnam War. I remember the lies that were told, the lives that were lost - and the shock when, twenty years after the war ended, former Defense Secretary Robert S. McNamara admitted he knew it was a mistake all along.” Imagem: The Philadelphia Inquirer

A televisão dos anos 60, 70 e parte dos anos 80 do século passado é obviamente diferente da de hoje. A segmentação impôs-se e a informação circula em numerosas plataformas. O episódio Cronkite não teria hoje o impacto que então teve. De resto, no novo contexto, a existência de um Cronkite seria de todo improvável. À época, porém, o poder da televisão era determinante para a formação da opinião pública. Quer isto dizer que a televisão passou a ser irrelevante? Não, longe disso. Até porque os canais especializados de notícias, que hoje nenhum país dispensa, veiculando diversos pontos de vista, são de importância estratégica. Promovem diferentes construções da realidade. Utilizam múltiplas plataformas. Em suma, fazem propaganda. E podem ser vistos em qualquer parte do mundo, salvo em situações de censura como acontece hoje com a russa RT.

 

Há ainda uma outra questão essencial ao entendimento do ecossistema mediático: a natureza dos media, no que particularmente nos interessa, da televisão. Eminentemente sensorial, convocando a emoção em prejuízo da razão, favorecendo o entretenimento, a televisão fez das notícias espetáculo e dos seus protagonistas atores. A corrida para as presidenciais americanas de 2024 entre Trump e Harris é disso um exemplo paradigmático. Não houve debate, apesar das tentativas de Harris. Houve sound bite, insultos, piadas de mau gosto e, da parte de Trump, até verdadeiros números de stand up comedy  Por alguma razão, o termo gossip (má língua) se tornou recorrente na análise do texto televisivo, bem como infotainment, o híbrido que associa informação e espetáculo. Na verdade, mais espetáculo do que informação.        

 

2. Da natureza do medium: significação e massagem

 

Quando, em 1980, Ted Turner criou a CNN, tinha consciência de estar a dar um salto em frente no capítulo das comunicações. Em rigor, sendo ele um homem de negócios, a sua ideia inicial era a de fazer um canal de entretenimento a operar 24 horas por dia. Percebeu, no entanto, que podia ganhar dinheiro juntando o melhor de dois mundos, ou seja, proporcionar espetáculo ininterrupto através da construção da realidade operada através das notícias. Vejamos.

 

As notícias são representações resultantes da mediação da linguagem. O mesmo sucede com os demais géneros jornalísticos como, por exemplo, a reportagem ou a entrevista. Em qualquer caso, obedecem sempre a uma agenda subordinada à influência retórica e discursiva de instâncias de decisão, bem como a pressões de vária ordem, sejam elas institucionais, profissionais, culturais ou ideológicas. A agenda é restritiva. Alegando critérios jornalísticos, tanto inclui quanto exclui. Havendo inclusão, a fábrica de notícias - newsmaking - entra em laboração segundo rotinas que levam a que as coisas sejam feitas de uma determinada maneira e não de outra. É assim em muitas dezenas de canais espalhados pelo mundo, regra geral em língua inglesa, cuja única diferença substantiva - não sendo coisa pouca - é o ponto de vista. Dito de outro modo, a matriz é comum, inspirada na CNN, os códigos são semelhantes, o enfoque é que depende do referencial cultural e geoestratégico. Quanto ao que a agenda exclui, não vindo a ser notícia, simplesmente, não existe. Como é óbvio, a disseminação de canais de informação à escala global revela até que ponto a televisão é insubstituível no campo da disputa ideológica.

 

Por envolver a produção de conteúdos, importa sublinhar a importância de dois elementos, por vezes, negligenciados na análise. São eles o processo de significação e a natureza do medium. Quanto ao primeiro ponto, cabe perguntar: qual o papel da imagem na codificação nos diferentes géneros jornalísticos. Faça-se a seguinte experiência. Veja-se a reportagem de um telejornal sem som. Do alinhamento de planos resulta percetível a ausência de articulação sintática das imagens. Evidentemente, passa alguma informação, por exemplo, a identificação de lugares, situações e de alguns protagonistas. Mas o texto, no seu conjunto, é precário, posto que as imagens são mostradas de forma avulsa. Veja-se, de novo, a reportagem com som. É dado o primado à palavra, cabendo à imagem o papel subsidiário de ilustração. Ora, o que define a linguagem como sistema semiótico é a circunstância de ser constituída por signos, mas não de signos isolados. E sendo a televisão um medium audiovisual, os diversos subsistemas de comunicação teriam de convergir no sentido de uma síntese gramatical coerente, o que não acontece. Ao espectador, habituado a que assim seja, nem sequer lhe ocorre fazer perguntas. Todavia, o processo tem consequências. Vai ao encontro, e este é o segundo ponto, de dois dos famosos aforismos de McLuhan: the medium is the message (o meio é a mensagem) e the medium is massage (o meio é massagem). Ambos ajudam a compreender a natureza da televisão.

 

Marshall McLuahan, a par dos seus famosos aforismos, ao pensar os media como extensões dos sentidos do homem, introduziu a ideia do efeito antropológico das tecnologias da comunicação. Em 1970, antecipou o que seria a guerra do futuro: “World War III is a guerrilla informatition war with no division betweeen military and civilian participation.” in Marshall McLuhan (1970), Culture is Our Business. Com efeito, a opinião moldada pelos media é indispensável como respaldo da guerra. Imagem: MM, Yousuf Karsh

Atentemos no dispositivo semiótico do telejornal. Todo ele procede da criação de uma atmosfera de entropia, na qual os protagonistas se multiplicam em desempenhos e se opera a metamorfose do espaço do estúdio em metáfora do mundo. Superfícies arrojadas, cores quentes, silhuetas humanas ativas em sucessivas escalas da profundidade de campo, múltiplos ecrãs supostamente ligados às várias partidas do mundo e a figura totémica do apresentador sobre quem o plano médio faz incidir as atenções e do qual se espera venha introduzir ordem discursiva no caos do mundo. O telejornal tem um alinhamento que decorre de uma agenda. Tem notícias e opinião. Contempla diversos géneros jornalísticos. A reportagem é uma das peças desta engrenagem. A par dos diretos e das entrevistas, coabita com notas de rodapé, separadores, anúncios publicitários, promessas do inesperado tangível ou anúncios do que se verá mais à frente. Vamos supor que a guerra na Ucrânia é um dos temas. É chamado um repórter no terreno.

 

A reportagem é previsível: texto off, entrevista, repórter em campo. Na maioria dos casos, a mediação jornalística é mínima. Insere-se na perspetiva do go between. O jornalista, mesmo sem nada de substantivo para dizer, tendo alguma notoriedade, torna-se uma espécie de oráculo de quem se espera a última palavra. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, com informações a passar em rodapé, habitando um espaço saturado de sinais incoerentes, a reportagem tende a tratar os assuntos como faits divers, sem especial preocupação de organização da ordem dos signos ou da sintagmática. Mesmo tratando-se do que se trata, a necessidade de alcançar o máximo de audiência obriga o jornalismo, em maior ou temor grau, a servir dois donos, “info” e “tainment”: infotainment.

 


Hadas Grinberg, repórter criminal da televisão pública israelita Kan News, foi uma das primeiras pessoas a quem foi facultado o acesso às valas do alegado massacre de Bucha, na Ucrânia. A forma como se apresentou perante as câmaras, porém, gerou uma vaga de protestos. A jornalista justificou a indumentária por ser a mais quente do seu guarda-roupa. Segundo disse, “If it was a man, then no one would talk about the color of his coat or his nails or his hair.” Citado a partir de Women in the War Zone da autoria de Jennifer Maas. Publicado na Variety de 5 de maio de 2022. Imagem: Variety

Se o recurso ao entretenimento existe, não quer dizer, no entanto, que seja levado à prática de modo idêntico em todas as estações. Tão pouco daí se poderá concluir que os formatos híbridos sejam necessariamente negativos. Nos canais especializados, nos quais todos os shows de notícias se assemelham, há, ainda assim, diferenças que permitem distingui-los consoante o nível de adesão a determinados princípios. Admite-se, por exemplo, que as notícias possam ser apresentadas dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama. Admite-se, igualmente, a necessidade de expor os assuntos de forma acessível e compreensível, dentro dos limites do tempo disponível. Tendo isto presente, é relativamente simples identificar desvios que tanto podem conduzir ao sensacionalismo quanto à propaganda mascarada de informação. Sobra, no entanto, a questão essencial: a quem pertence o medium, quem o paga? Da resposta depende o entendimento do ponto de vista. Ninguém investe em meios de comunicação para ler, ver e ouvir o que não quer. 

 

Voltemos à televisão e à guerra. As guerras de agora. Ponto prévio. A invasão do território ucraniano pelas tropas da Federação Russa, em fevereiro de 2022, constituiu uma violação grosseira do direito internacional. Em função disso, construiu-se uma narrativa mediática, rapidamente interiorizada, em torno da ideia do agressor e do agredido. Do contexto histórico-cultural, bem mais complexo, raramente se falou. Algo se semelhante ocorreu, depois, na Palestina. Dito isto, o que se segue serve ao caso da informação produzida em Portugal, embora, com ligeiras declinações, seja extensivo à generalidade da cobertura noticiosa no ocidente ou ocidente alargado, como agora se diz. 

 


 Vala comum de palestianos vítimas dos bombardeamentos de Israel trazidos do al-Shifa Hospital na cidade de Gaza para Khan Younis, no sul da faixa, onde, segundo a Al Jazeera, seriam incinerados a 22 de novembro de 2023. Imagem: Reuters/Mohammed Salem

 

3. A notícia é tanto mais notícia quanto mais é comentada: descrição

 

Os meios de comunicação não são todos tratados do mesmo modo pelos beligerantes. No caso da Ucrânia, por razões óbvias, os mais influentes, sejam eles considerados jornais ou canais de referência, beneficiam de descriminação positiva. Dada a posição que ocupam na paisagem mediática global, deles se espera informação que possa fazer a diferença no contexto do xadrez político e geoestratégico. Essa informação, as mais das vezes, é criteriosamente plantada, como se diz na gíria jornalística. Destina-se ao patamar mais elevado da guerra da comunicação, indissociável da guerra no terreno, sem a qual não é possível ganhar a opinião pública. Nada é inocente. E, qualquer que seja a importância relativa atribuída aos diferentes media, trata-se sempre, como diz Chomsky, de fabricar os consensos indispensáveis à salvaguarda e reforço das ilusões necessárias. Passemos à prática em quatro momentos.

 

Primeiro, em cenário de guerra o repórter, regra geral, não vai onde quer. É enquadrado por militares e elementos dos serviços de informações. Pode propor a visita a um local ou uma deslocação segundo um determinado itinerário. Mas só vai aonde o levam e só se desloca por onde outros decidem. Tal como na segunda guerra do Golfo, quando o levam a algum lado ou é porque se pretende mostrar alguma coisa ou que alguma coisa em particular seja dita ou ambas as coisas. Por exemplo, mostrar e falar de um massacre alegadamente perpetrado pelo inimigo. Portanto, a agenda político-militar não só contagia, mas também condiciona a agenda informativa e o fluxo mediático. 

 

Segundo, as fontes, nem sempre identificadas, ou são oficiais ou oficiosas. Vi um repórter de uma televisão privada portuguesa, acabado de chegar a Lviv, dar uma notícia ao meio dia, cujo conteúdo, às oito da noite, no mesmo canal, constava como sendo de um comunicado do Pentágono. No início da guerra, as imagens de vagas de pessoas em fuga causaram uma comoção brutal. É compreensível. Dadas as circunstâncias, os testemunhos dos cidadãos acabariam, também eles, por ser condicionados, o que, dado o horror, é natural. O instante dispensou o contexto, a emoção deu lugar à indignação. A televisão punha em marcha o rolo compressor do condicionamento, sem contraditório, salvo numa ou outra referência episódica, e sem alternativa, devido à censura imposta pelas autoridades aos canais russos.

 

Terceiro, a pretexto da necessidade de dar informação tão completa quanto possível, do dever de tudo explicar e esclarecer, observa-se o princípio segundo o qual a notícia deve ser comentada. As explicações e os esclarecimentos exigem, naturalmente, conhecimento especializado. Por isso, uma vaga de comentadores tomou conta das pantalhas. Peritos militares, especialistas de segurança, entendidos em geoestratégia, traquejados em relações internacionais, versados em anti-terrorismo, sábios de várias disciplinas saídos da Academia, diplomatas consumados, ativistas russos anti-Putin, ativistas ucranianos pró-Zelensky, enfim, uma galeria infindável de notáveis convergiu no propósito comum de fazer frente à ameaça russa. Pelo meio, o casting das televisões selecionou um número restrito de vozes mais ou menos dissonantes, duas ou três oriundas das Forças Armadas com currículo em missões da NATO, outras tantas vindas da academia, todas com muito menor exposição do que as alinhadas com o pensamento dominante. As vozes minoritárias legitimam o sistema, fazendo passar a ideia da existência de uma informação plural. Sabe-se: a notícia é tanto mais notícia quanto mais é comentada.

 

Noam Chomsky: “The spectrum of discussion reflects what a propaganda model would predict: …the implicit message: thus far, and no further.” in Noam Chomsky, Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies. Imagem: Broadview

Quarto, a repetição sistemática de um ponto de vista cria as condições necessárias à prossecução dos objetivos delineados. Consumada a perceção da malignidade do inimigo, ratificada pelos especialistas, rapidamente, a guerra passou a ser uma causa comum, uma questão moral. Apareceram inúmeras bandeiras da Ucrânia nas redes sociais, ocupando, frequentemente, o lugar das fotos de perfil. Os russos, segundo as informações veiculadas pelos media, praticavam crimes contra a humanidade, raptavam crianças, massacravam populações. Abriram-se as portas à russofobia. Nem Tolstoi, nem Tchaikovsky, nem o Bolshoi escaparam ao index. Os artistas russos foram impedidos de atuar. Os desportistas foram banidos das competições internacionais. O Tribunal Penal Internacional emitiu uma ordem de prisão contra Putin.

 

Nada de semelhante aconteceu em relação ao genocídio do povo palestiniano ao qual as televisões chamam conflito Israel-Hamas. Os artistas do estado de Israel estiveram no Festival da Eurovisão, os seus atletas participaram nos Jogos Olímpicos de Paris e as suas equipas de futebol disputam as provas europeias da UEFA. O Tribunal Penal Internacional não emitiu nenhum mandato de captura contra Netanyahu. Logo após o ataque terrorista do Hamas de 7 de Outubro, Von der Leyen e Metsola voaram para Telavive em sinal de solidariedade. Fizeram-se fotografar junto ao muro de Gaza com coletes à prova de bala. Posteriormente, perante a evidência chocante do massacre cometido pela tropa israelita, manifestaram preocupação. Tal como Joe Biden, ao mesmo tempo que enviava milhares de milhões de ajuda militar e colocava porta-aviões no Mediterrâneo.

 

Nas televisões, os comentadores da guerra na Ucrânia foram convocados para analisar a situação no Médio Oriente. A mesma agenda. Os mesmos procedimentos. Os mesmos propósitos. Agora, no entanto, com uma missão de dificuldade acrescida. Estações de televisão do mundo árabe, com jornalistas destacados na faixa de Gaza, começaram a mostrar o inominável. Na Al Jazeera, eu vi, em direto, um repórter devidamente identificado a ser perseguido por um tanque israelita. Desde o dia 7 de Outubro já foram mortos 180 trabalhadores dos media, a maioria dos quais jornalistas. Israel proibiu a Al Jazeera a pretexto de ser uma televisão ao serviço de grupos terroristas. Mas foi graças à Al Jazeera que o mundo ficou a conhecer a existência do genocídio, da limpeza étnica que não poupa velhos, mulheres e crianças. Ainda assim, a esmagadora maioria dos comentadores mantém-se fiel à ordem internacional “tal como nós a conhecemos”, expressão recorrente na boca de um oficial general omnipresente na CNN. Vale por dizer, a ordem americana. Há efeitos colaterais? Há. Mas, infelizmente, nestas situações, comentava o general, há sempre efeitos colaterais.

 


Palestiniano observa a destruição em Khan Younis, no sul da faixa de Gaza. Enquanto a ONU considera iniludíveis os sinais de genocídio, Estados Unidos e União Europeia dizem lamentar,  mas enviam, em simultâneo, milhares de milhões em armamento para Israel. Nas televisões, apesar da crueza das imagens e do horror do sofrimento das pessoas, há quem justifique o massacre em nome do direito à defesa. Foto: CNN

4. Da banalização da guerra à vertigem armamentista

 

Dizia Churchill que a primeira vítima da guerra é a verdade. Em relação quer à Ucrânia quer ao Médio Oriente as televisões não se preocupam grandemente com a mentira. Se a informação tem origem em fonte considerada fidedigna, utilizam-na, muitas vezes sem verificação. O problema é que as fontes são parte interessada. Assim sendo, em ambos os casos, Ucrânia e Médio Oriente, a construção da realidade acaba por ser levada a cabo em função de uma agenda sintonizada com os objetivos de um dos lados, sabemos qual, sem cuidar dos critérios e mediação jornalísticos. Daí a propaganda ocupar o lugar da Informação é um pequeno passo. O jornalismo escondeu-se. Salvo quando um ou outro profissional mais consciente e experiente, também os há, foi capaz de contar estórias em que a maioria não estaria disponível para reparar.

 

É claro que o ecossistema mediático sofreu uma alteração profunda. Se, por um lado, a segmentação televisiva deu origem à disseminação de canais de notícias em competição à escala global, por outro, a revolução digital trouxe uma infinidade de plataformas cujos conteúdos tanto competem entre si quanto com os dos media tradicionais, designadamente a televisão. Quer isto dizer que há hoje a possibilidade, com maior ou menor dificuldade, de encontrar informação em media alternativos. Mas, para isso, é necessária literacia mediática. Saber ler mensagens em função do modo de operar de cada medium. Dominar as articulações que envolvem não só a gramática da língua, mas também a gramática das imagens e dos sons. Perceber o conjunto das interações que conduzem às notícias e à opinião. Ter noção das pressões exercidas sobre os meios de comunicação. Em suma, estar na posse das ferramentas que permitem distinguir o trigo do joio, a informação da propaganda. Portugal, em termos de literacia mediática, é dos países mais atrasados da Europa. Ocupa um dos últimos três lugares da tabela. É também um dos países que menos jornais lê, onde os jornalistas são mais mal pagos e onde se vê mais televisão. Em contrapartida, nem sempre pelas melhores razões, bem pelo contrário, a frequência das redes sociais cresceu em flecha.

 

Numa altura em que as opiniões públicas vão ganhando consciência da complexidade da guerra na Ucrânia e, talvez por isso, vão divergindo das respetivas lideranças empenhadas numa vertigem armamentista sem precedentes, Portugal é o País onde, apesar de tudo, se vão mantendo os índices mais elevados de apoio à guerra. Embora revelando cansaço, deixando perceber a intromissão da dúvida, eventualmente, até de algum ceticismo, as televisões não se afastaram desse propósito. Passam sem filtro declarações incendiárias de gente como o secretário-geral da NATO Mark Rutte, que no governo do seu país fez uma aliança com a extrema-direita, da ministra da defesa alemã Annalena Baerbock, por sinal dos Verdes, que quer mísseis de longo alcance para atingir a Rússia, ou da estoniana Kaja Kallas, comissária para a Política Externa e Segurança, que, há não muito tempo, sugeriu uma intervenção militar direta em solo russo. Declarações deste tipo são facilmente corroboradas pela maioria dos comentadores. Algo de semelhante acontece em relação ao Médio Oriente. Apesar do repúdio generalizado face às barbaridades praticadas pelo exército do estado de Israel a mando de um fanático como Netanyahu, a linha geral não se afasta da pauta oficial de Von der Leyen, Metsola, Borrell e Michel. Lamentam os excessos e fazem chegar armamento aos infratores. Se é preocupante a duplicidade de critérios dos responsáveis europeus, o seguidismo da maioria dos meios de comunicação, em particular das televisões, não o é menos.

 


Ursula von der Leyen foi a Bucha ver, horrorizada, “o rosto cruel do exército de Putin”. Após o 7 de Outubro, acompanhada de elementos do IDF, visitou o local da chacina do Hamas e solidarizou-se com Netanyahu. É dela a célebre frase “Israel made the desert bloom.” Ficou horrorizada em Bucha, mas evitou o horror de Gaza. Regra geral, é esse o posicionamento  dos media ocidentais. Imagem: EU Debates | eudebates.tv

 

Finalmente, em modo provocatório, regressando ao início do texto. A televisão é ainda um meio hegemónico. Para que as suas mensagens produzam efeitos é necessária a repetição. Do mesmo modo, a redundância. Uma e outra, associadas ao comentário, têm por fim induzir a interiorização de uma linha de pensamento dominante. As regras do híbrido infotainment favorecem a possibilidade de mostrar a guerra em modo de espetáculo, banalizando-a. A banalidade, por sua vez, conduz ao torpor, passividade e aceitação por parte de muitos que deixaram de pensar. O refúgio desses é a crença e a indignação. Mais, quem fica privado de pensar, sem disso ter consciência, fica refém da mentira.

 

Felizmente, nada disto é linear. Há também a certeza de haver pessoas de quem não se faz o que bem se entende, que fazem perguntas e procuram confirmar notícias, comentários e informações. Entretanto, parece ter-se iniciado uma nova fase. Pela guerra, em nome da defesa da Europa contra “a ameaça russa”, eis a corrida ao armamento. Naturalmente, a massagem continua.

 

12 de Outubro 2024

 

Jorge Campos

 

P.S. Este texto foi publicado na revista Ecossocialismo no último quadrimestre de 2024. Foi escrito ainda antes de Netanyahu ser acusado de genocídio. De outubro até esta parte, o destino da guerra na Ucrânia parece inclinar-se cada vez mais para o lado da Federação Russa. Tem ganho consistência a necessidade de entabular negociações com vista a alcançar a paz. Não sei que paz será. Também não sei se do lado do jornalismo de televisão corporativo, tendo em conta a distorção das boas práticas, por exemplo, a confusão entre informação e opinião, haverá algumas baixas por motivos de consciência. Havendo, não seria nada de inédito. Ícones do jornalismo da televisão americana como Edwards R. Murrow, Walter Cronkite e Dan Rather, todos da CBS, em épocas diferentes, por diferentes razões, vieram a público dar a entender que batiam com a porta por não quererem continuar a enganar as pessoas. Não me parece que tal venha a acontecer. E em Portugal ainda menos.

 

 

 

 

 

 

 

    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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