Quando The Spirit of 45 (2013) de Ken Loach chegou às salas inglesas as reacções foram contraditórias. Por vezes, ferozes. Uns viram no filme um apelo à resistência contra a destruição do estado social e, particularmente, do Serviço Nacional de Saúde. É a leitura mais óbvia e razoável. Outros disseram que o documentário é um retrato fantasioso do pós-guerra, escondendo verdades inconvenientes e fazendo uma leitura oblíqua das eleições que ditaram a derrota de Churchill e colocaram no poder o trabalhista Atlee. Finalmente, nos media sistémicos, não faltou quem acusasse o cineasta de não perceber os sinais do tempo, ou seja, a bondade das políticas neoliberais.
No início dos anos 60, Ken Loach começou a trabalhar para a BBC onde deu corpo a alguns do melhores filmes alguma vez feitos para televisão, designadamente o fabuloso Cathy Come Home, cujo impacto obrigou o governo britânico a rever a legislação sobre os sem abrigo. Durante os anos de Margaret Thatcher foi praticamente banido da televisão pública. Diversos documentários seus, entre os quais os que realizou a propósito da épica greve dos mineiros de 1984, foram simplesmente recusados pela BBC. Nesse período, travou uma luta sem quartel com a Dama de Ferro. A sua sua carreira cinematográfica foi praticamente asfixiada.
Mas, a partir do início da década de 90 do século passado, os filmes regressaram, os prémios multiplicaram-se e Ken Loach foi reconhecido como um dos grandes cineastas do nosso tempo. No conjunto da sua obra prevalece um olhar sem concessões sobre as mais controversas questões políticas e sociais, uma atenção permanente à situação dos mais pobres e marginalizados do sistema, um cuidado especial com a classe operária, da qual é ele próprio oriundo. Entre os seus filmes mais conhecidos estão, Kes, Land and Freedom, Sweet Sixteen, My name is Joe, Raining Stones, Riff-Raff e The Wind That Shakes the Barley. Todos eles de um rigor formal e de uma abordagem estética exemplares. Todos eles incómodos porque lancinantes. Grandes filmes.
Em Spirit of 45 Ken Loach recupera os sacrifícios feitos durante a guerra e fundamenta as expectativas de um mundo melhor com direito à saúde, educação e habitação, em função de uma visão sobre o desenvolvimento e o progresso indissociável da construção do estado social. Loach, dispondo de excepcional acervo de imagens de arquivo, muitas das quais com origem em filmes do movimento documentarista britânico, mostra o que foi a esperança criada no pós-guerra, nesse ano de todos os prodígios que foi 1945. Conseguiu também reunir um notável conjunto de testemunhos de pessoas de diferentes classes sociais, todas elas gente comum, habitantes de um tempo saído da bravura do combate e das ruínas da guerra, com os olhos postos no futuro. O futuro, evidentemente, é o estado social.
Esta tese é, hoje, em 2013, inaceitável para os Tories e incómoda para o Labour. Para os Tories porque eles são crentes da religião do mercado e sacerdotes do sistema financeiro. Para o Labour porque há muito se deixou contaminar pelo vírus neoliberal que o levou para a desgraça da terceira via e para a tragédia da guerra do Iraque. Daí a ferocidade de algumas criticas a Spirit of 45. Até porque Ken Loach esteve na génese do Left Unity, um partido que considera que os trabalhistas deixaram de ser parte da solução e passaram a ser parte do problema.
Por mim direi apenas que Spirit of 45 é indispensável.
Folha de sala do DesobDoc
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