Filme seminal do cinema directo americano, Primary (1960), dos Drew Associates, é daqueles filmes que nenhum cinéfilo prescinde de rever de tempos a tempos. O mesmo deveria ser dito em relação aos jornalistas, em princípio preocupados com as questões relativas à verdade, objectividade e ponto de vista. Não creio ser a regra. Derivas oportunistas instalaram-se na generalidade dos media mainstream dando lugar a híbridos onde propaganda e entretenimento partilham o camarim onde se fabricam audiências necessárias e realidades convenientes. Primary, por sinal, também almejava ser percursor de um tipo de documentário capaz de garantir o interesse de um público numeroso. Fazia-o, no entanto, dissociando jornalismo de infotainment, com o intuito de maior aproximação ao real, buscando a revelação. Se isso se verificou ou não é o que veremos de seguida. Hoje, a revolução digital permite novas incursões e perspectivas. Algo de semelhante ao que sucedeu há mais de 60 anos com as câmaras de 16mm e som síncrono. Há pontos em comum entre passado e presente, lições a tirar. Houve sempre. O screen journalism de Robert Drew poderá ter falhado como, na verdade, falhou. Mas falhou porque foi simplesmente rejeitado pela televisão. Em contrapartida, o cinema de observação encontrou nos filmes dos Drew Associates respaldo para um método que, em múltiplas circunstâncias, continua a ser amplamente reconhecido. Há ainda uma classe que teria todo o interesse em olhar para Primary com atenção. Refiro-me à classe política.
Este texto, sem iludir o apreço do autor por Primary, foi pensado essencialmente em termos de uma revisão crítica dos seus pressupostos e do pensamento a eles associado. Desde logo, importa sublinhar a questão tecnológica, a inovação levada a cabo até se chegar à câmara de filmar de 16 mm com som síncrono. Não é um pormenor. É uma questão central. Sem câmaras leves e som síncrono não teria havido cinema directo. Só elas poderiam ter proporcionado a experiência do registo de imagens no quadro de uma certa utopia do real. A essa experiência chamou-se genericamente cinema verdade. Esse cinema, partindo de uma base tecnológica comum, teve expressão cinematográfica em ambos os lados do Atlântico dando origem a narrativas que em nome da vérité tanto confirmaram preocupações comuns quanto suscitaram divergências radicais. A verdade, com efeito, resiste a paradigmas lineares.
No plano da historicidade, as primeiras manifestações foram antecipadas no Reino Unido, quando jovens críticos e cineastas ligados à revista Sight and Sound, reunidos em torno de Lindsay Anderson, com o apoio da secção experimental do British Film Institute, deram origem ao Free Cinema. Anderson e os seus companheiros tendo optado pela crítica radical da sociedade capitalista inglesa entendiam ser essa crítica indissociável, no plano formal, da experimentação estética. Não era ainda vérité, mas já havia indícios devido, até, à forte tradição do realismo no cinema britânico.
Um pouco mais tarde, no Canadá, os cineastas de língua francesa do National Film Board, cujas figuras de maior notoriedade seriam Claude Jutra e Michel Brault, bem como os seus colegas de língua inglesa da chamada Unidade B, designadamente Roman Kroitor e Wolf Koenig deram origem a trabalhos com algumas preocupações semelhantes e outras tantas diferenças. Basicamente, os canadianos rejeitavam o documentário institucional subordinado a critérios de objectividade pautados pela ordem estabelecida. Daí reivindicarem, como disse Giles Marsolais, uma “objectividade subjectiva”, capaz de testemunhar apaixonadamente a alienação de uma sociedade através da espontaneidade e da autenticidade da observação. Neste ponto estariam muito próximos de Robert Drew.
Por outro lado, se o experimentalismo britânico foi uma questão exclusivamente de índole cinematográfica, os procedimentos dos rebeldes do National Film Board, a par da ênfase na espontaneidade e autenticidade de um cinema de observação, viam na televisão um veículo natural, uma espécie de janela aberta para o mundo que não só oferecia um púbico potencial, mas também disponibilizava o financiamento, garante de uma produção regular. Também aqui havia pontos de contacto com Robert Drew. Este é que nunca se mostrou muito favorável a comparações.
Quando confrontado com as suas influências fez sempre questão de sublinhar nada ter a ver com Dziga Vertov. Na altura em que ele e os seus associados fizeram Primary, segundo disse também, mal ouvira falar de Jean Rouch, cujo trabalho, aliás, ao contrário do que aconteceu com alguns dos seus associados, nunca lhe terá verdadeiramente interessado. Numa visita a França, em que teve a companhia de Richard Leacock, não deixou mesmo de se insurgir contra os procedimentos de cineastas que andavam pelas ruas com equipas numerosas e actores de microfone em punho a entrevistar pessoas nas ruas, numa alusão ao método de Chronique d’un Été (1961) de Rouch e Edgar Morin. Abriu, assim, uma polémica com expressão nos famosos encontros de Lyon de 1963, dos quais mais adiante se falará. Se lhe pediam referências, citava invariavelmente Alfred Eisenstaedt, o pai do fotojornalismo, autor da famosa fotografia VJ Day de 1945, como sendo a sua principal influência. Eisenstaedt e, naturalmente, as fotografias da LIFE. Apesar de não enjeitar a qualidade de cinéaste ou filmmaker - expressão que os seus companheiros utilizavam amiúde - Drew via-se sempre essencialmente como jornalista.
Quando em Janeiro de 1960 se encontrou com John F. Kennedy para lhe explicar o tipo de trabalho que pretendia levar a cabo sobre as eleições primárias do Partido Democrata no Wisconsin, Drew disse-lhe ter desenvolvido ao longo dos últimos oito anos um método de jornalismo de televisão que estava em condições de ser testado: era, simultaneamente, uma nova forma de fazer cinema, um novo tipo de reportagem e uma maneira inédita de contar uma história. No caso em apreço, isso pressupunha o acompanhamento permanente de ambos os candidatos durante cinco dias por equipas reduzidas, as quais não deveriam interferir, fosse de que maneira fosse, com o que quer que fosse. Limitar-se-iam a observar, a registar. Daí, segundo Drew, resultaria algo nunca antes visto na televisão.
Na altura, Kennedy já era uma celebridade, presença habitual nas revistas ilustradas da época, designadamente a LIFE. Competia em popularidade com as estrelas de cinema e sabia como tirar partido da situação. Daí a pergunta: “Que ganho eu com isso?” Drew disse não saber, mas, correndo tudo bem, acrescentou, certamente poderia ser beneficiado quanto mais não fosse por ficar ligado a algo de inteiramente novo. Hubert Humphrey, o oponente, politicamente mais à esquerda e favorito à partida, tendo sido informado da aceitação de Kennedy acedeu de imediato. Apenas não garantiu, num primeiro momento, o acesso dos jornalistas à sede de campanha na noite da contagem dos votos.
Pareciam pois reunidas as condições para Primary fazer o seu percurso pioneiro. Houve, no entanto, uma derradeira batalha a travar. A Time-LIFE Broadcasting, com a qual Drew negociara o filme, tinha uma produção televisiva rotineira e mostrava-se pouco inclinada a pactuar com experiências de resultado incerto. Por outro lado, nem sequer dispunha dos meios técnicos necessários à concretização da ideia. Valeu o trabalho de aperfeiçoamento de equipamentos que Drew, Leacock e os demais vinham promovendo. No caso de Leacock, as inovações foram introduzidas por ele próprio em colaboração com Pennebaker. No mesmo sentido iam as experiências dos irmãos Maysles e Terence Macartney-Filgate. Ultrapassado o impasse, Primary pôde avançar. Visto hoje, poderá parecer datado até por razões técnicas como, por exemplo, a qualidade do som. No entanto, qualquer que seja o ângulo da leitura que dele se faça, essa sensação facilmente se dissipa quando se coloca o filme em contexto.
Contexto e conflito
Em Cinéma-Vérité - defining the moment (1999) de Peter Wintonick é recuperada uma entrevista de Robert Drew de 1962, uma altura em que, vencidas as resistências iniciais, o cinema directo encontrava algum espaço na televisão. Nessa entrevista, Drew procura sintetizar o seu new jornalism, começando por explicar o fracasso da sua experiência anterior em Key Picture:
“Real life never came out of the film, never came to the television set. We would have to drop a word logic and find a dramatic logic in which things really hapenned. If we could do that we would have a whole new basis for a whole new journalism. It would be a theatre without actors, it would be plays without playrights, it would be reporting without summary and opinion, it would be the ability to look in on people’s lives at crucial times from which in due to circumstances we see a kind of truth that can only be gotten by personal experience” (ver neste blogue Robert Drew (I): Vérité e Screen Journalism).
A ideia dessa espécie de verdade apenas ao alcance da experiência pessoal é mais antiga do que habitualmente se pensa. Para dar um exemplo, no final do século XIX, quando muitos ainda ridicularizavam a invenção dos irmãos Lumière, um pioneiro polaco de nome Boleslaw Matuszewsky reivindicou para o cinema a possibilidade de uma objectividade absoluta. Num panfleto publicado em Paris, em 1898, com o título Une nouvelle source de l’histoire admitia que talvez o cinematógrafo não pudesse contar toda a história, “mas o que mostra é inquestionável e de uma verdade a toda a prova.” Obviamente, a verdade de Matuszewsky não tem nada em comum com a vérité que nos ocupa. Não deixa, no entanto, de ser interessante constatar como a relação assíntona - portanto, que tende ao infinito - das imagens com o real, mais tarde equacionada, por exemplo, por Bazin, vem do início do cinema. O conceito de verdade de Robert Drew, porém, nunca colou com a ideia de objectividade absoluta. O mesmo poderia dizer-se dos seus companheiros de aventura do cinema directo. Richard Leacock, por exemplo, sempre fez questão de sublinhar que os Drew Associates preocupavam-se, isso sim, em transmitir a sensação de participação nos acontecimentos, “the sense of being there”.
Momentos. Isso explica as cenas mais interessantes do filme, o qual segue a campanha dos dois candidatos ao longo do tempo acordado. Sucedem-se os episódios respeitantes a ambos, mas não de acordo com os padrões habituais do documentário jornalístico de televisão. Não há uma agenda, evita-se o sound bite, exclui-se quase por completo a voice over, procuram-se situações de potencial dramático, de preferência imprevisíveis, de modo a articular na montagem momentos decisivos com vista à construção da narrativa. A palavra chave, a haver uma, seria espontaneidade no sentido de criar, de acordo com a premissa de Leacock, “the sense of being there”. Nesse contexto, Primary tem apontamentos memoráveis, entre os quais a sequência da sessão de fotografias de estúdio destinadas à campanha de John Kennedy, o famoso travelling de Albert Maysles acompanhando o mesmo Kennedy a um metro de distância desde a entrada até ao palco da igreja católica polaca em Milwaukee onde deveria ter lugar um encontro com imigrados polacos ou ainda toda a sequência nocturna filmada por Leacock sem luz artificial nos aposentos do hotel onde Kennedy, alguns membros da família e assessores aguardavam os primeiros resultados.
Apesar de a tentativa de não favorecer nenhum dos candidatos, a verdade é que as sequências com Hubert Humphrey são menos impressivas. Enquanto a campanha do adversário tirava partido da sua aura de celebridade junto da classe média urbana, Humphrey, um homem de aparência modesta, falava para os sectores mais desfavorecidos do estado de Wisconsin, nomeadamente os pequenos proprietários de terras, em ambientes desprovidos de glamour. Há, por isso, uma diferença sensível na impressão causada pelos dois homens. Até que ponto a fotogenia, evidente em Kennedy e na sua mulher Jacqueline, inexistente em Humphrey, poderá ter influenciado as opções dos operadores de câmara e, portanto, o resultado final?
Richard Leacock, que não tinha especial simpatia por nenhum dos candidatos e detestava os milionários do leste, como era o caso de Kennedy, cujo pai considerava um fascista, acabaria por reconhecer ter sido afectado pelo seu magnetismo pessoal. Isto apesar de lhe desagradar profundamente o anticomunismo do senador do Massachusetts, patente, de resto, na cena em que se dirige aos eleitores de ascendência polaca.
Leacock também não escondia a simpatia pela mulher do futuro presidente. Revelaria mais tarde que ela lhe tinha confidenciado sentir-se desconfortável nalguns momentos, como quando recebera os cumprimentos e apertos de mão de centenas de pessoas durante o comício na comunidade polaca. Leacock perguntou-lhe se não lhe doía a mão. A resposta terá sido: “A mão não, a cara, porque sou obrigada o tempo todo a fazer o mesmo sorriso.” Esse desconforto, porém, não transparece no filme. Há, é certo, um plano de Albert Maysles revelando a sua vulnerabilidade quando, dizendo algumas palavras em polaco, Jacqueline cruza nervosamente os dedos das mãos atrás das costas. Mas essa vulnerabilidade, em contraponto com a beleza singular do seu rosto mostrado em close-up, só contribui para realçar o seu encanto natural. Hubert Humphrey faria notar que a sua mulher Muriel nunca tivera igual tratamento simplesmente porque não lhe era possível competir com a mulher do adversário. “Muriel é o que é, Jacqueline projecta uma imagem”, diria ele.
Directo, mas sob controle. Hoje são conhecidas as reiteradas indicações de Drew a Albert Maysles no sentido de filmar Jacqueline de todas as maneiras: os olhos, o rosto, a boca, o corpo. Contudo, a razão desse procedimento não teria razões políticas. Seria antes uma consequência da ideia de Drew sobre a natureza da televisão. Tendo rejeitado a reportagem expositiva com voz off, bem como a objectividade jornalística presente nos programas de current affairs, ao investir na observação, era-lhe indispensável dispor dos elementos que, na montagem, permitissem construir a narrativa. Ora, a narrativa exige personagens, bem como uma abordagem centrada no conflito. É necessário, aliás, que os protagonistas vivam eles próprios uma espécie de conflito interior, pois só assim é possível operar a metamorfose a partir da qual, ganhando espessura dramática, se transformam em personagens. Nessa medida, se Jacqueline é a imagem da princesa sensível fiel ao seu papel de mulher que partilha dos bons e maus momentos do marido, Jack é o estadista cuja dimensão humana acaba sempre por revelar-se através da afabilidade ou das emoções contidas na máscara que coloca em determinadas circunstâncias, nomeadamente na sequência antológica do quarto de hotel onde aguarda os primeiros resultados.
Naturalmente, a disputa eleitoral associada a dois candidatos tão diferentes, era um bom ponto de partida. Mas o estilo de cada um iria determinar que os pratos da balança se inclinassem inevitavelmente para o lado do mais habituado a lidar com os media. Logo no início vê-se Humphrey a falar amigavelmente com apoiantes, gente simples, facilmente identificável com os trabalhadores. Na sequência seguinte aparece Kennedy rodeado de jovens a distribuir autógrafos – é interessante verificar como posteriormente este seria o procedimento recorrente das estrelas de rock’n roll em numerosos documentários de algum modo ligados ao cinéma-vérité. A Humphrey nunca é concedido igual tratamento cinematográfico. Possivelmente, a sua personalidade e maneira de ser não lhe permitiam determinado tipo de exposição. Uma das suas imagens mais surpreendentes, aquela que melhor permite uma aproximação mais empática à sua pessoa, é de Terence Macarteney-Filgate: mostra-o a sucumbir ao cansaço no interior do carro que o transporta e adormecer. Até em função disto mesmo, um senador a adormecer, se vê em Primary o resultado de um dispositivo inovador, distante da prática televisiva habitual. E um passo em frente para o cinema de observação. Por várias razões.
Em primeiro lugar, os Associados de Drew, acompanhando permanentemente os candidatos, tinham de fazer opções imediatas, decidindo no momento como filmar. Para mais, a autonomia das câmaras utilizadas com som síncrono não ia além dos dois minutos e meio. O famoso travelling de 75 segundos com Kennedy beneficia da intuição de Pennebaker que instantes antes adaptara uma lente grande angular por ele desenvolvida à câmara de Al Maysles. No comício de Humphrey com agricultores, Macartney-Filgate, utilizando uma câmara sem som, filmou as suas reacções em close-up. Como diria Leacock, trabalhar com a câmara livre obrigava a prever as situações, de certo modo antecipá-las, por forma a conseguir captar a espontaneidade das acções e dos protagonistas. Como corolário resulta, em segundo lugar, uma tentativa de repensar o tratamento da actualidade não descurando parâmetros estéticos, esbatendo, desse modo, as fronteiras entre arte e reportagem. Esta é a questão de maior complexidade colocada ao new journalism ou direct cinema de Robert Drew. Importa, por isso, equacionar as principais consequências daí decorrentes.
Direct Cinema vs Screen Journalism
A primeira constitui uma evidência. Querendo ou não, apesar do esforço no sentido de preservar a equidistância no tratamento de ambas as candidaturas, em Primary a objectividade jornalística cede perante a necessidade de encontrar os pontos de viragem (crisis within) indispensáveis à narrativa. Pelo que se vê, resulta clara a tendência para favorecer os protagonistas de maior fotogenia, bem como as situações eventual ou previsivelmente conducentes a um clímax. John Grierson definia o documentário como sendo “o tratamento criativo da actualidade”. De algum modo, em tese, as ideias de Drew apontam no mesmo sentido, embora o seu método seja radicalmente diferente daquele habitualmente associado ao documentário griersoniano De qualquer modo, parafraseando Brian Winston, perguntar-se-á que parte da actualidade sobrevive ao tratamento criativo. A questão é tanto mais pertinente quanto é certo que num registo de observação a experimentação estética é inevitavelmente recorrente.
A segunda questão resulta da anterior. Não sendo possível antecipar o que iria suceder, em Primary a observação teria de estar atenta à eventualidade de um inesperado cuja significação pudesse resultar em momentos de revelação. Por essa razão, há diversos planos sequência e sequências simples editadas por forma a valorizar a espontaneidade das acções. Contudo, apesar da predominância dos sintagmas narrativos, a edição, para fazer avançar o texto fílmico, recorre com frequência a suturas não narrativas. Não dispensa, inclusivamente, procedimentos habituais na reportagem, como as entrevistas, de modo a conferir o sentido expositivo familiar às audiências televisivas. Daqui não resulta, porém, uma narrativa estruturada em termos clássicos, apesar da presença de alguns dos seus elementos. Pelo contrário, prevalece, a sensação de um percurso epistemologicamente hesitante.
Ponto de vista de Bluem. Referindo-se aos filmes dos Drew Associates, em 1965, William Bluem aludia a uma percepção eventualmente prejudicada pela espontaneidade e emotividade a que a observação pode conduzir. Dizia ele: “A tradição vérité e o seu intuito de expressar a realidade em termos de uma ‘lógica das imagens’ da câmara em movimento, pretendendo não interferir, a par da não observância de métodos convencionais de montagem, tem vantagens e desvantagens”. Entre as vantagens assinalava “a possibilidade de dar a ver o rosto humano em situações limite proporcionando momentos de excitação potenciados por planos desfocados e movimentos desenfreados que naturalmente fazem subir a intensidade das emoções.” Sobre as desvantagens sustentava que a tradição vérité “demonstrou que pode anular ou dificultar a componente essencialmente intelectual da mensagem” porque interfere com a racionalidade e, sendo assim, colocar-se-ia sempre o problema de saber se o seu método seria ou não legítimo no documentário jornalístico.
Para responder a esta questão, Bluem convocava outros dois filmes dos Drew Associates sobre os direitos cívicos dos negros. Um deles era The Children Were Watching (1960) sobre o qual não hesitava em condenar os procedimentos de Richard Leacock, cujo ponto de vista é explicitado sem qualquer ambiguidade. Neste filme, dizia ele, “testemunhamos não apenas o drama, mas participamos dele. Nesta produção de Drew o envolvimento emocional não é mais um método auxiliar do envolvimento intelectual, mas um fim em si mesmo. Quando assim utilizado o cinema-vérité é a negação da virtude subjacente à ideia de documentário.” Mais, segundo Bluem, tendo em conta que o documentário, pelo menos parcialmente, obedece a um propósito social, deve discernir com maior clareza, visão e compaixão os problemas que são colocados. Como tal, se essa possibilidade é revogada não abrindo espaço à clareza, explorando apenas o instinto ou fazendo da técnica um inimigo da razão, o documentário não cumpre a sua função. Bluem conclui que o jornalismo televisivo pode dizer com segurança “This is the way it was” ou mesmo “This is the way it is”, mas nunca “This is it”.
Como é evidente, a posição de William Bluem, autor do primeiro livro publicado sobre o documentário jornalístico de televisão, parte de pressupostos convencionais. O livro, além do mais, vem a lume durante os chamados anos de ouro do documentário jornalístico na América, um período temporal situado sensivelmente entre o final dos anos 50 e meados dos anos 60. A Bluem não se colocava a questão do cinema, como, de resto, só marginalmente se colocava a Drew nesta fase, embora fosse uma preocupação central dos seus associados. Interessava-lhe, sim, o papel do documentário durante os anos da New Frontier do presidente Kennedy. É matéria para um próximo artigo. De momento importa recordar que o aparecimento do documentário jornalístico coincide, e não por acaso, com o McCarthismo, sendo consolidado essencialmente a partir do trabalho de Edward R. Murrow em See It Now da CBS (ver neste blogue See It Now I - O combate do século: Murrow vs McCarthy, bem com os artigos seguintes, nos quais a matéria é tratada). Em Bluem, há também evidência do vínculo instrumental do documentário, mas num outro tempo político.
Espontaneidade e pesquisa. Um terceiro problema respeita a uma questão essencial do jornalismo, a necessidade de pesquisa, ou seja, de conhecer com detalhe as matérias em agenda. No cinema directo esta ideia não colhe. Pelo contrário, a pesquisa tornar-se-ia suspeita visto poder vir a exercer influência na observação, anulando a espontaneidade, ela sim, capaz de proporcionar a revelação. Do ponto de vista estritamente jornalístico há aqui uma óbvia contradição. Como se constatou, o contacto permanente com os protagonistas acaba por condicionar o rumo do filme. Eles tornam-se mais importantes do que os problemas sobre os quais é suposto manifestarem-se. Sucede não apenas em Primary, mas também, por exemplo, em Crisis: Behind a Presidential Commitment (1963). Neste último, a história de uma decisão presidencial no sentido de fazer respeitar a Constituição americana face à recusa do governador do estado do Alabama, George Wallace, em admitir a inscrição de dois estudantes negros na Universidade de Birmingham, a atenção prestada a Robert Kennedy – é famosa a sequência da conversa telefónica com o procurador-geral interrompida pela filha mais nova de cinco anos – acaba por transformá-lo na personagem central do filme, ultrapassando todas as demais personagens, o presidente incluído. Uma vez mais, a espontaneidade, sendo eficaz em termos de dramatização da narrativa, não permite superar o défice da informação requerida para conhecer o problema em profundidade.
D. A. Pennebaker, um dos operadores de câmara que juntamente com Leacock registou a conversa telefónica, manifestou-se reiteradamente contra a pesquisa. Porém, a sua actividade posterior como documentarista trouxe questões correlacionadas. No seu primeiro de muitos filmes sobre figuras da música pop, o emblemático Dont Look Back (1965), em que acompanha Bob Dylan durante uma digressão no Reino Unido, parece evidente ter utilizado Dylan e a sua aversão aos jornalistas e ao jornalismo convencionais – típica da contra-cultura americana da época – para sublinhar o seu próprio ponto de vista sobre os media. Posteriormente, tendo trabalhado recorrentemente na área da música popular, querendo ou não, tornou-se um profundo conhecedor e, nessa medida, certamente poderia dispensar a pesquisa. Em Crisis: Behind a Presidential Commitment, sendo que a questão dos direitos cívicos era facilmente identificável na agenda da New Frontier de Kennedy, a narrativa vive da tensão de se saber quem cede, se Wallace se o presidente, se este faz ou não avançar a Guarda Nacional. Aos estudantes negros e à sua causa resta apenas um papel subsidiário.
Conclusão
Na revisão que tem vindo a ser feita do cinéma-vérité verifica-se a tendência para enquadrar os filmes em categorias mais amplas do que aquelas que cabem numa avaliação estritamente cinematográfica. Devido à especificidade de um mundo digital em rede em que as preocupações com os critérios de verdade ganham nova actualidade é natural que assim seja. A tendência de valorizar os contextos na apreciação dos filmes, porém, não é nova. Está em linha com os estudos de Raymond Williams cuja análise crítica, de base materialista, assenta num conceito de cultura que considera as práticas culturais como parte de um processo histórico, activo e dinâmico.
Stella Bruzzi, por exemplo, problematiza a mediatização da política chamando a atenção para o facto da fabricação da imagem do político ser pensada em função de um espectador, podendo não existir correlação entre essa imagem e aquilo que, enquanto pessoa, o político efectivamente é. Isso explicaria a aura que continua a existir em torno da figura de Kennedy, mesmo depois de conhecidos os aspectos mais negativos da sua política como o episódio da Baía dos Porcos, o fracasso da conferência de Viena com o líder soviético Nikita Krushchev e a responsabilidade de levar os Estados Unidos a entrarem na guerra do Vietname, para já não falar dos escândalos sexuais que envolveram a sua vida pessoal. Bruzzi vê na persistência do mito de Kennedy sinais de uma deslocação daquilo que é factual para a esfera do desejo concentrado numa imagem construída para nela caberem as convicções, esperanças e até os medos mais profundos dos americanos.
McLuhan, reportando ao famoso debate televisivo entre Kennedy e Nixon na campanha presidencial de 1960, portanto, pouco tempo depois da experiência de Primary, diria que a supremacia do primeiro sobre o segundo ficara a dever-se à compatibilidade cool da sua personalidade com a natureza igualmente cool da televisão, em contraste com a personalidade hot de Nixon, televisivamente disfuncional. No fundo, a questão era a facilidade de representação de Kennedy comportando-se justamente como se não estivesse a representar e, nessa medida, possibilitando uma identificação imediata do público com alguém cuja autenticidade parecia inquestionável.
Resta saber se, na altura, Drew disso se terá percebido. Brian Winston considera que sim. Na sua opinião, Primary acabaria por cumprir um papel radicalmente oposto ao pretendido, ou seja, o observado, afinal, teria tido sempre o controle da situação. Mais do que qualquer ideia ou programa político de fundo, o que prevalece é então o efeito de uma cultura simbólica de ressonância afectiva, de que fala Pierre Babin. Sendo assim, resulta profundamente irónico o comentário de Kennedy a propósito da possibilidade de repetir a experiência num outro contexto quando disse candidamente a Robert Drew que não sabia se seria capaz de voltar a não representar diante da câmara depois da experiência de Primary.
Como se compreenderá Primary, pela controvérsia criada, mas sobretudo devido à multiplicidade de pontos de vista que gerou, tanto no Cinema quanto no Jornalismo, fez de Robert Drew uma figura de referência em ambas as áreas. A eficácia do filme quanto ao desfecho da eleição foi simplesmente nula. Apesar de ter, inadvertidamente ou não, beneficiado Kennedy, o vencedor improvável das primárias democratas no Wisconsin, a verdade é que o filme pouco foi visto. A entidade que o produziu, a Time-LIFE Broadcasting, nem sequer o passou na sua network. Só mais tarde começou a chamar a atenção. Hoje é obrigatório.
Continua
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