Apocalípticos e Integrados, o terceiro módulo de Odisseia nas Imagens, marca uma viragem na programação dos documentários. Observando os critérios de cinema de excelência de O Olhar de Ulisses, cuja autonomia se manteve inalterada, abriram-se novas janelas tendo em vista contemplar narrativas que, de outro modo, teriam ficado omissas, com prejuízo de uma visão mais abrangente. Deste modo, Apocalípticos e Integrados, face aos episódios anteriores, tornou-se mais imprevisível e ganhou novos públicos por duas ordens de razões. Por um lado, o princípio de montagem cinematográfica já amplamente testado no diálogo entre os filmes em O Olhar de Ulisses, tornou-se extensivo a toda a programação da Odisseia nas Imagens. Por outro, a introdução e cruzamento de novas linguagens, permitiu acentuar contrastes, criar diferentes atmosferas e complexificar a relação entre o público e os filmes escolhidos para os diferentes momentos.
Vejamos, então, a programação dos documentários neste módulo, constante da avaliação feita pelo programador responsável no Relatório de Avaliação Final.
Documentários de O Olhar de Ulisses – A Utopia do Real
No texto introdutório do catálogo do episódio de O Olhar de Ulisses, designado por A Utopia do Real, retoma-se uma frase de António Reis de há um quarto de século: “o cinema é um caso de vida ou de morte”. Evoca-se a circunstância do ciclo coincidir com “o cinquentenário da fundação de uma revista – Cahiers du Cinema – criada por André Bazin – que marcou profundamente a evolução do cinema e o acompanhou no seu devir durante as décadas seguintes”. E assume-se – fazendo lembrar, de novo, Serge Daney – que desde que o mesmo Bazin viu o cinema como “uma janela aberta para o mundo” o cinema dominante “tem vindo a manifestar uma assustadora tendência para se transformar num jogo de vídeo em grande ecrã enquanto o ecrã de televisão toma cada vez mais a forma de um buraco de fechadura”. Razão bastante para anunciar:
“Nesse contexto, o quarto e último acto de O Olhar de Ulisses, em Outubro de 2001, esforçar-se-á por construir redes de relação e leitura entre os filmes - faróis da história do cinema, pontos de referência indispensáveis, e as obras contemporâneas que teimam em respeitar quem as vê. A esse derradeiro andamento só podíamos por isso dar o título de RESISTÊNCIA ”.
O catálogo de O Olhar de Ulisses - A Utopia do Real tem 441 páginas com 86 textos, nos quais não estão incluídos nem os textos introdutórios, nem os textos respeitantes ao ciclo Imagens da Ciência de Jean-Michel Arnold e Annick Demeule. Desses 86 textos 48 (55,81%) são de origem francófona, 25 são originais e os restantes reedições com origem fundamentalmente nas folhas e catálogos da Cinemateca Portuguesa, nos Cahiers do Cinema e na revista Trafic – foi a partir dela, recorde-se, que Serge Daney pretendeu lançar o seu projecto, justamente, designado Resistência.
O ciclo decorreu entre 15 e 22 de Março de 2001, mas, desta vez, convivendo com um leque de iniciativas obedecendo ao diálogo multidisciplinar previsto desde o início pela Odisseia nas Imagens, cuja sessão inaugural ocorreu a 14 de Março com a exposição dos fotógrafos da Magnum sobre a rodagem de Misfits e, logo no dia seguinte, no espaço onde iria decorrer O Olhar de Ulisses, contou com um conjunto de masterclasses centrado nos Lugares da Imagem.
A Utopia do Real começou com Farrebique (1946) de Georges Rouquier, passou para Les Inconnus de la Terre (1961) de Mario Ruspoli, considerado o pioneiro do cinema directo na Europa, centrou-se em La Terra Trema (1948) de Luchino Visconti, fez a estreia de Cinema (2001) de Fernando Lopes e fechou o primeiro dia com O Desprezo (1963) de Jean-Godard. O filme de Rouquier, um admirador de Flaherty, mostra a vida no campo através de uma leitura lírica e descontextualizada – não há nele sinais do tempo, por exemplo, da guerra cujo epílogo se tinha acabado de verificar – proporcionando uma visão poética onde actores não profissionais, a família de Farrebique, desempenham os seus próprios papeis na vida real, mas com plena consciência de estarem a representar.
A questão dos actores e a forma como a presença da câmara afecta os seus desempenhos é, aliás, transversal a todo o ciclo. Sucede com o filme de Ruspoli sobre os camponeses de Larzac, em relação aos quais a proximidade da câmara permite revelar na paisagem dos rostos o impasse a que os conduziu a sua condição e, claro, também com o filme de Visconti, obra obrigatória do neo-realismo italiano. O filme de Fernando Lopes – o realizador classificou-o como uma litania – é uma celebração do cinema de alguma forma reiterada (e problematizada) no filme de Godard onde Fritz Lang se representa a si mesmo enquanto realizador de um filme chamado Odisseia – magnífica alegoria: um poeta cego revisto por um cineasta com um só olho –, cujo produtor, o americano Jack Palance surge como intérprete de uma lógica industrial simultaneamente ambígua e pragmática, ameaçadora e estimulante.
As sessões do dia seguinte começaram com Georges Franju: Le Sang des Bêtes (1948), sobre os matadouros de Paris, Hotel des Invalides (1951), uma subtil crítica anti-militarista a propósito de uma visita guiada ao museu de guerra com texto dito pelo mais irreverente dos actores franceses, Michel Simon, e Os Olhos sem Rosto (1959) uma inquietante obra-prima do cinema fantástico onde o medo e o belo estão sempre presentes e em confronto na escala das emoções inerentes à natureza humana. Franju, apesar de ter colaborado com Langlois na criação da Cinemateca Francesa, foi sempre um cineasta marginal, nunca se tendo identificado com a nouvelle vague. Fez 13 curtas metragens. Tal como aconteceu com muitos dos cineastas do pós-guerra, nomeadamente aqueles que integraram o Grupo dos 30, trabalhou por encomenda, mas conseguiu sempre transmitir o seu ponto de vista. Nos seus filmes, particularmente em Les Sang des Bêtes, as imagens parecem escapar ao real elevando-se a um plano pictórico quase surreal. A narração faz lembrar a de Las Hurdes de Buñuel.
Na sessão intermédia verificou-se o regresso de Flaherty com Louisiana Story (1948), provavelmente o mais complexo dos seus filmes, seguido de uma incursão no cinema de cunho documental de Abbas Kiarostami com Onde fica a casa do meu amigo (1987). Qualquer dos filmes tem como protagonistas dois rapazinhos e o sentido de uma aprendizagem que pode ser feita independentemente de quem é suposto ensinar. Na última sessão, uma montagem de filmes com enfoque nas relações dos homens entre si e dos homens com a natureza: A Caça (1963) de Manoel de Oliveira, Os Habitantes (1970) de Artavazd Pelechian e a Floresta Interdita (1958) de Nicholas Ray.
No dia 17, a cada uma das sessões correspondeu apenas um filme e o ciclo propôs três modos de olhar a Índia - correspondentes a outros tantos modos de olhar o outro - através de três clássicos da cinematografia universal: o documentário de Rosselini, Índia Matri Bhumi (1958), filme charneira da obra do realizador com uma estrutura narrativa
de algum modo semelhante a Paisà (1946) e que antecipa o seu trabalho para a televisão, O Rio Sagrado (1951) de Jean Renoir e a Balada da Estrada (1955) de Satyajit Ray, seguido de um concerto de música indiana pelos Bauls de Bengala
Não foi ainda no quarto dia de A Utopia do Real que se anunciaram os filmes, em princípio, mais previsíveis tendo em conta o espaço cronológico convocado. Pelo contrário, o programa seguiu a via experimental, colocando o problema da criação artística e estabelecendo pontes com outros filmes já exibidos ou a exibir. Assim: Jaime (1974) de António Reis, sobre um doente esquizofrénico que ao cabo de 30 anos de internamento começou a pintar e escrever compulsivamente, e depois dois filmes de Jean-Daniel Pollet, Le Horla (1966) e L’Ordre (1973), cujo denominador comum remete tanto para um sentimento de exclusão por parte dos protagonistas quanto para a consciência crítica de uma narrativa da qual se exclui qualquer discurso convencional, sendo que o último filme coloca um leproso, Raimondakis – cujo rosto deformado faz lembrar as gloriosas ruínas do mundo clássico recorrentemente filmadas por Pollet – a interpelar o espectador, cúmplice de uma ordem que exclui. Sessão intermédia: Méditerrannée (1963) de Jean-Daniel Pollet e um singular Al Mummia (1969), única longa metragem de um discípulo de Rosselini, o egípcio Chadi Abdel As-Salam. Sobre o primeiro filme o realizador e Gerard Leblanc afirmam: “Trata-se de uma série de imagens captadas durante um ‘itinerário mediterrânico’ com a única preocupação de que cada imagem mostre, signifique, apenas uma coisa, uma só ideia de modo a ser uitilizada como uma palavra (que apenas adquire um significado definitivo em função do lugar que vai ocupar numa frase”. Finalmente: Le Mystère Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot sobre o método de criação do pintor e as sucessivas metamorfoses da sua pintura; e Un Monde Agité (2000) do escritor, fotógrafo e cineasta francês Alain Fleischer sobre o cinema da Belle Époque a partir de uma colagem de imagens de 124 filmes feitos entre 1900 e 1920. O catálogo de A Utopia do Real dedica a este último bloco de filmes 80 páginas com textos de João Bénard da Costa, Manuel Hermínio Monteiro, José Manuel Costa, João César Monteiro, António Reis, Jean-Luc Godard, Jean-Daniel Pollet, Philipe Solers (autor do texto de Méditerrannée), Gerard Leblanc, Dominique Païni, André Bazin, Saguenail e José Navarro de Andrade, o que permite atribuir-lhe um lugar charneira no contexto do ciclo.
Em contrapartida, ao Free Cinema, apesar de se tratar de um movimento essencial para o entendimento do documentário contemporâneo, nomeadamente devido à crítica das posições reformistas de John Grierson, ao radicalismo formal e político e à liberdade de observação concedida às câmaras de filmar de 16mm, são dedicadas apenas três páginas, duas das quais apenas com ilustrações e uma com um texto não assinado. Do Free Cinema foram mostrados, na primeira sessão do dia 19 de Setembro, O Dreamland (1953) de Lindsay Anderson, Nice Time (1958) de Alain Tanner e Claude Goretta e We are the Lambeth boys (1958) de Karel Reisz. A estes filmes juntou-se On the Bowery (1957) de Lionel Rogosin sobre essa rua de Nova Iorque onde costumava reunir-se a escória humana da cidade.
Os filmes seguintes, dando continuidade ao bloco anterior, apontavam para o cinema independente americano do final da década de 50 e princípios da década de 60: Pull my Daisy (1959) de Robert Frank e Alfred Leslie e The Connection (1961) de Shirley Clarke. O primeiro estreou juntamente com Shadows (1959) de John Cassavetes e é uma espécie de home video passado num apartamento da Bowery onde o senhorio, um funcionário dos caminhos de ferro, é surpreendido pela visita de um bispo, sentindo-se embaraçado com a presença dos seus amigos boémios. Estes são figuras tutelares de beat generation como Allen Gingsberg, Gregory Corso, Peter Orlovsky. Delphine Seyrig aparece aqui no seu primeiro papel. O filme tem narração de Jack Kerouac. Durante anos, à semelhança, aliás, do que aconteceu com Shadows (1959), instalou-se a ideia do filme ter sido totalmente improvisado. Da narração de Kerouack, dando voz a todas as personagens, correu a versão de ter sido absolutamente espontânea. Contudo, em Novembro de 1968, num artigo da Village Voice, Alfred Leslie revelou tudo ter sido pensado e encenado ao pormenor, “tal como um filme de Hitchcock”.
The Connection, por sua vez, recria uma peça de Jack Gelber para o Living Theatre. O nome de Shirley Clarke, uma bailarina que trabalhou com Martha Graham e Doris Humphrey, está associado ao cinema de vanguarda americano e a nomes como os de Stan Brakhage e Maya Deren. No início dos anos 60 fundou com Jonas Mekas a Filmmakers Cooperative e, mais tarde, dedicou-se à coreografia das imagens e ao vídeo experimental dando corpo ao T.P. Videospace Groupe. O seu filme mostra um grupo de junkies que aguarda a chegada do elemento de ligação da droga, mas enquanto isso acontece vão sendo desmontados os mecanismos de um outro filme que supostamente está a ser feito a propósito dessa espera e cujo realizador, na sua tentativa de encontrar “the man behind the man” acaba, ele próprio, por drogar-se. Para a última sessão, integrando-se coerentemente na atmosfera cinéfila do dia, estava reservado Belarmino (1964) de Fernando Lopes.
O dia 20 de Março começou por acolher outro admirador de Robert Flaherty, o italiano Vittorio Se Seta – Martin Scorcese disse ver na sua obra a essência do cinema –, com dois filmes trazendo de volta os camponeses e o mundo rural: Pastor di Orgoloso (1958), sobre o quotidiano dos pastores da Sicília e o poderoso Banditi a Orgoloso (1961), a história de um pastor injustamente acusado de roubo e perseguido, juntamente com um irmão mais novo, na paisagem agreste das montanhas da Sardenha, como se esse fosse o seu destimo inelutável. Seguiram-se Les Hommes de la Baleine (1956) de Mario Ruspoli, um filme sobre a caça à baleia nos Açores que teve a colaboração de Chris Marker e o incontornável Pour La Suite du Monde (1963) de Pierre Perrault e Michel Brault. A última sessão programou três filmes portugueses: O Senhor (1965) de António Campos, A Invenção do Amor (1965) igualmente de António Campos e uma obra essencial do novo cinema português Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha.
A 21 de Março surgiu finalmente o confronto direct cinema - cinema vérité (o catálogo não faz qualquer referência a essa controvérsia) com algumas, poucas, das suas obras mais representativas. A primeira sessão, que contou com a presença de Albert Maysles: Primary (1960) dos Drew Associates, seguindo-se dois filmes de propósito social de Santiago Alvarez, Now (1956) e LBJ (1967) e, finalmente, Salesman (1969) dos irmãos Maysles e Charlotte Zwerin. A meio da tarde, três filmes franceses: Du Côté de la Côte (1958) de Agnes Varda, Blue Jeans (1958) de Jacques Rozier e o filme pioneiro do cinema-vérité de Jean Rouch e Edgar Morin Chronique d’un Été (1960). À noite Mário Ruspoli regressava com Regards sur la Folie (1962) em complemento do polémico Titicut Follies (1967) de Frederick Wiseman.
O último dia de A Utopia do Real: Les Statues meurent aussi (1953) de Alain Resnais e Chris Marker, Moi, un Noir (1957) de Jean Rouch e Paris vu par...episódio Montparnasse-Levallois (1965) de Jean-Luc Godard ; Vilarinho das Furnas (1970) de António Reis e Nós (1967) de Artavazd Pelechian; Les Maîtres Fous (1954) de Jean Rouch e O Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira.
No total, o terceiro episódio de O Olhar de Ulisses, excluindo as Imagens da Ciência, ciclo onde, aliás, apareceram alguns documentários feitos para a televisão, mostrou 53 filmes, assim distribuídos em função da origem: França – 21 (39,62%), Portugal – 9 (16,98%), Estados Unidos da América – 9 (16,98%), Reino Unido – 3 (5,66%), Itália – 3 (5,66%), URSS (incluindo a Arménia) – 2 (3,77%), Cuba – 2 (3,77%), Canadá – 1 (1,88%), Irão – 1 (1,88%), Índia – 1 (188%), Egipto – 1 (1,88%).
A percentagem do cinema francês confirma os propósitos do texto introdutório e num episódio cronológicamente marcado não apenas pela nouvelle vague, mas também pelo novo cinema português, constata-se a presença de 56% de filmes de ambos os países. Em contrapartida, apesar de presentes, pouca relevância é dada ao cinema directo americano e ao documentário do Quebeque, o que, aliás, se reflecte nos textos do catálogo, e passa-se ao lado da produção documental americana mais politizada – a ausência de Emile de Antonio será, porventura, a mais notória. Do mesmo modo, não há referência às experiências cinematográficas encetadas em função da televisão das quais, uma das mais interessantes foi, certamente, The Candid Eye, no Canadá.
Voltando a Nichols, a maioria dos filmes é suficientemente singular para escapar a qualquer tentativa de catalogação. Procedendo de forma idêntica à dos episódios anteriores, excluímos: La Terra Trema, O Desprezo, Onde Fica a Casa do Meu Amigo, A Floresta Interdita, O Rio Sagrado, A Balada da Estrada, Al Mummia e Mudar de Vida. Contudo, neste conjunto há filmes de cunho marcadamente documental, nomeadamente os de Visconti, Kiarostami e Paulo Rocha. De resto, parece ser evidente neste episódio de O Olhar de Ulisses, a par do problema dos actores, uma tendência para debater, no plano das narrativas, a dicotomia ficção/documentário.
Os restantes filmes foram alinhados em função de uma interpretação que apenas procurou identificar tendências dominantes. Assim, modo poético: Farrebique, Les Inconnus de la Terre, Louisiana Story, Les Hommes de la Baleine, Pour la Suíte du Monde, Pastor di Orgoloso, Banditi a Orgoloso, Vilarinho das Furnas e O Acto da Primavera; modo expositivo: Le Sang des Bêtes, Hotel des Invalides, Now e LBJ; modo de observação: Les Inconnus de la Terre, Nice Time, O Dreamland, Pour la Suite du Monde, Primary, Salesman, Regard Sur La Folie e Titicut Folies; modo participativo: L’Ordre, Pull my Daisy, The Conncetion e Chronique d’un Été; modo reflexivo: Cinema, A Caça, Índia, Jaime, Le Horla, Méditerrannée, Du Coté de la Côte, Blue Jeans, O Senhor, A Invenção do Amor, Les Statues meurent aussi, Moi, un Noir, Paris vu par... e Les Maîtres Fous; modo performativo: Le Sang des Bêtes, Hotel des Invalides, Nice Time, O Dreamland, We are the Lambeth Boys, Os Habitantes, L’Ordre, Le Mystère Picasso, Un Monde Agité, On The Bowery, Belarmino e Pull My Daisy.
De novo, a maioria dos filmes cabe em mais de uma categoria e, em rigor, a maioria deles tem um pouco de todas elas. Por exemplo, mesmo considerando Le Sang des Bêtes um documentário expositivo, como faz Nichols, é evidente que o filme de Franju suscita inúmeras questões e tem ressonância muito para além da mera exposição. Invocando Plantinga há um predomínio claro da voz aberta no conjunto dos filmes. As tendências dominantes consolidam, aliás, a impressão recolhida dos módulos anteriores: a aposta num tipo de documentário essencialmente inscrito no âmbito do cinema de arte e ensaio.
Por essa razão, se neste módulo se impõe uma perspectiva essencialmente informada pela crítica dos Cahiers du Cinéma dos anos 50/ 60 – excepção feita à vertente maoísta – e pela política do gosto a ela associada, o seguinte, como se viu, teria de ser construído à maneira de uma trincheira, a partir da qual, esgrimindo argumentos recorrentes, se defende um ponto de vista tido como indiscutível.
Outros documentários - Apocalípticos e Integrados, A América de Errol Morris
Como se depreende do texto introdutório de Apocalípticos e Integrados, onde se alude à necessidade de “inflectir o debate” deslocando-o “para um espaço mais interpelativo e menos integrado”, a Odisseia nas Imagens, cumprida a primeira fase da programação, principiou a dar corpo a outras iniciativas igualmente centradas no documentário ou incluindo documentários, arriscando incursões em domínios conexos, como, por exemplo, a fotografia documental – caso da exposição da Magnum a propósito da rodagem de Misfits de John Huston.
A América de Errol Morris, retrospectiva integral de um autor contemporâneo praticamente desconhecido em Portugal, obedeceu, portanto, ao princípio da diversidade sempre presente na História e reflexão sobre o Documentário. Decorreu nos dias 23, 24 e 31 de Março de 2001, no Auditório da Fundação de Serralves.
Em Mr. Death: A América de Errol Morris alerta-se para a dificuldade de classificar os filmes de um autor a quem habitualmente se coloca a indesejável, para o próprio, etiqueta de documentarista. Na verdade, nas suas longas metragens, bem como nos seriados e filmes para a televisão, são reiteradamente utilizados processos narrativos da ficção. Nesse sentido, poder-se-ia pensar esta retrospectiva como um complemento do terceiro acto de O Olhar de Ulisses, tanto mais que Morris manifesta preferência por cineastas como Robert Bresson e Frederick Wiseman. Contudo, não é bem assim. Basta ponderar o seu método de trabalho e os temas de que se ocupa para essa ideia se dissipar.
As longas metragens exibidas – estreias absolutas – foram: Gates of Heaven (1978), um retrato excêntrico do sonho americano a partir da história de dois cemitérios de animais na Califórnia com sorte diversa; Vernon, Florida (1882), um fresco agridoce sobre um determinado tipo de comunidade branca americana, cujos protagonistas são, ente outros, um criador de minhocas, um padre que filosofa em sermões de 10 minutos sobre a palavra therefore (portanto) e um obsessivo caçador de perus; The Thin Blue Line (1988), filme da desconstrução de um crime que iria permitir inocentar um condenado à morte; Fast, Cheap and Out of Control (1997), uma história em quatro partes sobre o mito de Sísifo, cujas personagens discorrem apaixonadamente sobre as suas estranhas profissões, ou seja, domar animais selvagens, controlar o crescimento das plantas, classificar uma espécie animal em permanente mutação e construir robots que imitam os movimentos dos animais; e Mr. Death: The Rise and Fall of Fred A. Leuchter, Jr. (1999), a história de um pretenso especialista em tecnologias aplicadas às execuções da pena de morte, nomeadamente a cadeira eléctrica, que é levado por grupos neo-nazis a investigar e negar o Holocausto.
Em complemento, alternando com as longas metragens, foram exibidos todos os episódios de First Person Series (2000), um seriado documental para televisão cujos protagonistas, sendo reais, surgem como figuras radicalmente improváveis. Todas as sessões contaram com painéis de especialistas a quem coube problematizar e debater quer o método do cineasta, quer os temas e as personagens dos seus filmes. No catálogo de 109 páginas, 28 das quais inteiramente preenchidas com fotografias, há três textos originais e outros tantos recuperados de outras publicações. Na contracapa surgem duas citações, uma das quais de Marshall McLuhan: “All media are extensions of some human faculty – psychic or physical”. Num dos textos originais, João Lopes escreveu:
“Se quisermos ser irónicos, diremos que Morris tem o poder, também ele insólito, de abordar personagens e situações que, a serem produto da imaginação de um qualquer argumentista de Hollywood, seriam muito provavelmente menosprezadas como delírios gratuitos e inverosímeis. Por exemplo, (num) filme da mesma série, The Parrot, a personagem central é Max, nada mais nada menos que um papagaio que terá assistido a um crime violento (...): The Parrot termina com a claríssima sugestão de que algo ficou por esclarecer, algo de que o papagaio conservaria, se não o segredo , pelo menos um significativo indício de culpabilidade”.
Sublinhando que se algo é “dito-exposto-filmado no cinema de Morris é a sua resistência a qualquer inocência primordial do olhar – olhar é, por definição seleccionar e reconstruir o real”, João Lopes interroga-se:
“O que é o olhar no interior do universo de Errol Morris? Jogando com a ambiguidade vital dos infinitos, poderemos dizer que, com o cinema de Morris, ‘olhar’ e ‘ver’ são, de facto, coisas fundamentalmente diversas. Ou melhor: o excercício de ver pode ser algo de tão radical – e, se não tivermos medo da palavra, tão revolucionário – que se pode chegar ao ponto de ver sem, sequer, exercer um olhar”.
No ciclo esteve presente, como convidada, a RTP, numa tentativa de estabelecer um diálogo com vista a uma colaboração que permitisse fazer chegar ao pequeno écrã toda a diversidade das vozes do documentário. Daí resultaria a extensão em antena da Odisseia nas Imagens no canal 2 do serviço público no ano de 2002, tendo ficado em aberto a possibilidade de novos ciclos, nomeadamente do documentarismo português, que não viria a concretizar-se.
Continua
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