Há hoje tendência para não fazer distinção entre o cinema documental e o chamado cinema ficcional. É tudo cinema, diz-se. De acordo. Mas, dito assim, sem mais, pode ser enganador. Há um mapa de décadas de história e teoria, cuja presença, queira-se ou não, tanto perdura naquilo que se faz quanto resiste a simplificações apressadas. O que se segue é uma breve declinação em torno do contexto no qual surgiu o debate sobre o filme documentário protagonizado, entre outros, por John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico. Sendo o ponto de partida o campo dos media, não o cinema, a ideia pode parecer deslocada. Não é. Há um território comum, contaminações, fronteiras imprecisas que vale a pena explorar. Ainda hoje. Este texto reporta a um tempo em que, também no cinema documental, a palavra ameaçou tomar o lugar da imagem. Parte dele está na minha tese de doutoramento. A restante, num caderno de apontamentos acompanhado da bibliografia que aparece no final. De modo que acaba por ser uma espécie de colagem sobre quando o som chegou ao cinema de newsreels e o jornalismo se cruzou com o documentário. Na rádio e no cinema.
Da arte à ciência, da política ao desporto, em todos os domínios os anos 20 do século passado foram anos de euforia. Nas atualidades cinematográficas, porém, essa euforia foi, muitas vezes, sinónimo de frivolidade. Os compromissos com as salas obrigavam os produtores de newsreels a prepararem semanalmente blocos de dez minutos, nos quais, devido a uma concorrência sem regras, cabia tudo. Sem alinhamentos coerentes, multiplicavam-se aleatoriamente acontecimentos improváveis, extravagâncias de celebridades, proezas de todo o tipo. Por vezes, os produtores nem sequer se coibiam de arranjar pretextos para provocar notícias. Durante algum tempo o grande público não atribuiu qualquer importância a estes procedimentos.
No final da década, porém, começaram a surgir protestos, cuja razão de ser era não tanto a exigência de rigor, mas motivações de natureza política. A Grande Depressão trouxera a instabilidade. A instabilidade abrira campo aos fascismos. A rádio atingira a maioridade e a introdução do som no cinema abria novos horizontes. Estavam maduros os tempos para outro tipo de jornais de imagens em movimento. March of Time combinou a rádio com o cinema documental. Os anos 30 seriam os anos de ouro das atualidades cinematográficas.
Mas foram também os anos da rádio. As suas vozes e o seu estilo tornaram-se omnipresentes invadindo quer newsreels quer o filme documentário. A força da palavra tornou-se determinante.
Anos da Rádio
A rádio transforma-se num medium de massas no início dos anos 20. É certo que os noticiários radiofónicos têm dificuldade em impor-se. No Reino Unido, por exemplo, os patrões dos grandes títulos da imprensa movem-lhes uma luta sem quartel, por duas razões principais. Por um lado, pensam que o jornalismo tem nos jornais o seu habitat natural; por outro, a concorrência das estações radiofónicas põe em risco o ingresso de publicidade, fonte de financiamento indispensável à imprensa. Acresce que as estações, na maioria dos casos, pertencem a fabricantes de equipamentos desejosos de os vender e, também por isso, sentindo a necessidade premente de produzir conteúdos, designadamente, notícias.
As primeiras soluções encontradas no sentido de compatibilizar interesses impõem horários tardios à difusão de informação radiofónica, ao fim da tarde ou à noite, de modo a eliminar a concorrência com os matutinos e vespertinos da imprensa. É o que acontece em Inglaterra. Mas vai-se mais longe. Muitos blocos noticiosos são obrigatoriamente fornecidos quer pela imprensa quer por agências, seguindo o exemplo de parcerias anteriores entre os proprietários de jornais e os produtores de actualidades cinematográficas.
O caso da BBC é paradigmático. Quando começou as emissões em 1922, sob a liderança de John Reith, foi obrigada a não dar notícias antes das 19.00 horas, as quais, por sua vez, se limitavam a resumos com origem nas agências noticiosas. A greve geral de 1926, afetando a saída dos jornais, trouxe a informação radiofónica para a ribalta. A BBC emitiu então cinco blocos informativos diários com início às dez da manhã. Mas, uma vez terminada a greve, voltou-se ao ponto de partida. No ano seguinte, as notícias foram antecipadas para as 18.30. Apesar da turbulência política e social que caracterizou a época no plano internacional, raramente foi concedido à rádio maior protagonismo. O departamento de notícias da BBC só foi autonomizado em 1934 e as restrições só foram totalmente levantadas em 1939, no início da II Guerra Mundial. A partir de então, devido ao rigor e contenção dos seus blocos informativos, a BBC começou a construir uma imagem de credibilidade em contraste, por exemplo, com os noticiários alemão e italiano, ambos fortemente dramatizados ao serviço de uma propaganda agressiva, muitas vezes baseada na mentira.
Diferente foi a situação nos Estados Unidos. Muitas estações pertenciam a magnatas da imprensa. Mesmo assim, a partir de 1930, a difusão de notícias radiofónicas atingiu tais proporções que as receitas publicitárias dos jornais caíram a pique. Chegou a ser encarada a hipótese de impor restrições semelhantes às vigentes do outro lado do Atlântico. A expansão já alcançada pela rádio, porém, condenou a tentativa ao fracasso. Nos Estados Unidos operavam mais de 700 estações, nas quais prevalecia a lógica do entertainment, aliás, extensiva à informação.
Com efeito, numa fase inicial, tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha nem sempre informação na rádio foi sinónimo de notícias. Primeiro porque, à semelhança das atualidades cinematográficas, nunca deixou de puxar pelos faits divers para captar o interesse de um público heterogéneo, maioritariamente pouco instruído. Segundo, porque, durante algum tempos, privilegiou aquilo a que o mundo anglo-saxónico designou por talks, traduzido à letra, conversas. Por vezes, essas conversas eram, na verdade, monólogos de personalidades conhecidas dirigindo-se diretamente aos ouvintes, ora em termos mais coloquiais, ora adoptando um tom mais didático. Roosevelt, Mussolini, Trotsky e Bernard Shaw, por exemplo, foram colaboradores da rádio. A popularidade dos talos, bem como o prestígio e relevância dos seus protagonistas, são parte da explicação de, à época, serem raros os jornalistas de rádio. Predominavam os produtores cuja função era a de atraírem convidados com prestígio e notoriedade para os seus programas. E assim se ficava a saber das notícias do mundo.
A dada altura, porém, quer por razões de ordem política, quer por razões tecnológicas como a expansão da onda curta, soprou um forte vento de mudança. Na vertigem de uma espiral por onde passavam a Grande Depressão, a ascensão e triunfo dos fascismos, a consolidação do poder soviético e a crise dos impérios coloniais, gradualmente, a rádio passou a ser encarada não apenas como um meio de informação e entretenimento, mas, sobretudo, como arma de propaganda.
Estaline desencadeou a primeira grande ofensiva neste domínio. Em 1929, a União Soviética deu início às emissões regulares em alemão e em francês e, no ano seguinte, em inglês e holandês. Foi o corolário de uma estratégia de exportação da Revolução resultante das teses do III Congresso da Internacional Comunista que previa uma rede de comunicações à escala global. A partir de 1931, a Rádio Vaticano imitava o exemplo soviético e passava a ter emissões em várias línguas. Igualmente poliglota, a rádio na Alemanha tornou-se num instrumento de guerra psicológica. Em 1933, o III Reich inaugurou as suas emissões em onda curta a partir de Zeesen, nos arredores da capital. Três anos mais tarde, por altura da realização dos Jogos Olímpicos de Berlim, já difundia em 28 línguas. Em 1935, Mussolini ordenou o início de emissões em árabe para a África e o Médio Oriente.
Dado o clima de crispação, ingleses e americanos começaram igualmente a tomar medidas no plano da propaganda. Em 1938, a BBC passou a emitir em 23 línguas. Posteriormente, esse número aumentou consideravelmente. Nos Estados Unidos, onde predominava uma forte corrente isolacionista, a reação foi mais tardia e só após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 7 de Dezembro de 1941, portanto já em plena II Guerra Mundial, a Casa Branca decidiu criar a Voz da América. Pelo meio, todas as tentativas da Sociedade das Nações no sentido de fomentar pactos radiofónicos de não agressão foram frustradas.
O documentário de rádio: dar a conhecer o mundo interpelando os homens
Foi neste contexto que a rádio levou a cabo experiências narrativas cuja importância, embora reconhecidas à época, viriam depois a resvalar para o esquecimento. Uma delas é o aparecimento de March of Time, um jornal radiofónico de notícias dramatizadas - como veremos, mais tarde, também, de cinema - que teve tremendo impacto. A outra é o documentário de rádio, aliás, indissociável de March of Time.
Em Documentary in American Television (1965), o autor, William Bluem, recorre a uma obra hoje praticamente invisível intitulada The Radio Play (1951) de Martin Maloney para definir o documentário de rádio:
“Tal como a biografia, o documentário (de rádio) é um texto apresentado dramaticamente. É suposto dramatizar a vida real por forma a dissecar os problemas da maioria das pessoas e expor ideias. O documentário assemelha-se ao drama na forma de apresentação; os factos não são meramente relatados, são antes organizados como se de ficção se tratasse”.
A alusão à biografia não é casual. Por volta de 1926 apareceram na rádio biografias de figuras históricas. Um pouco mais tarde, em 1932, a Time, Inc. lançou March of Time, um novo tipo de programa jornalístico cuja abordagem da atualidade não enjeitava o recurso a atores. Fazia uso da voz humana combinada com música e efeitos sonoros. Neste caso a voz era de Westbrook Van Voorhis, o radialista mais famoso do seu tempo, posteriormente figura de proa dos jornais cinematográficos. A enorme popularidade do programa ficou também a dever-se à utilização de técnicas de dramatização, designadamente a recriação de acontecimentos em estúdio, com o intuito de aprofundar os assuntos. Um dos artifícios mais utilizados consistia em imitar vozes de líderes mundiais por via de atores como, por exemplo, Ted de Corsia, o italo-americano que encarnava Mussolini. Corsia saiu-se tão bem do desempenho que, onde quer que fosse, o chamavam não pelo nome próprio, mas por Mussolini.
Encarando as notícias como tendo uma componente de entretenimento e na impossibilidade, por razões de ordem técnica ou logística, de se deslocar aos locais dos acontecimentos, March of Time viria a ter uma importância determinante na evolução do discurso jornalístico, aproximando-o do documentário. Esse efeito, no entanto, terá resultado mais das circunstâncias e do espírito da época – com todas as incidências de carácter social decorrentes da Grande Depressão – do que propriamente de um intuito renovador. Era um programa feito com poucos meios visando motivar uma audiência tão alargada quanto possível. Tendo deixado de ser emitido pela CBS em 1939, March of Time reapareceu durante a guerra, passando a incluir depoimentos dos verdadeiros protagonistas e já não de actores, método, entretanto, introduzido por alguns dos seus imitadores, nomeadamente We the People, também da CBS, o qual valorizava a tensão e o conflito e procurava contar as suas histórias do ponto de vista das personagens envolvidas.
É verdade que nos primeiros tempos da rádio e, pelo menos até à eclosão da II Guerra Mundial, não houve grande consenso, se é que chegou a haver algum, em torno da natureza e definição do documentário de rádio. De qualquer modo, a sua influência e reputação viriam a ser gradualmente reconhecidos. Assim, no final dos anos 30, multiplicaram-se os trabalhos cujo enfoque ia ao encontro das necessidades sociais como, por exemplo, Democracy in Acetino emitido pela CBS com patrocínio governamental. Outros programas, como Roof over America, sobre problemas da habitação ou Municipal Government, sobre as funções do poder local, desempenharam um papel semelhante ao dos filmes do movimento documentarista na América e no Reino Unido.
Como tal, e porque neles havia sinais de uma estrutura narrativa dramática, o termo documentário, segundo Bluem, pode ser legitimamente aplicado a estes programas:
“Tal como os filmes documentários da época, eles procuraram dar a conhecer o mundo interpelando os homens. Procuraram mudar atitudes e alargar pontos de vista e perspetivas; e, atendendo às circunstâncias, as considerações de ordem técnica seriam sempre secundárias face à presença evidente dos objetivos propostos pelo documentário”.
Newsreels: a arte da narração
Apesar de tentativas anteriores remontando a 1924, o primeiro noticiário filmado integralmente sonoro só foi exibido pela Fox Movietone News em Outubro de 1927. Mês e meio mais tarde os jornais cinematográficos da Fox estavam presentes semanalmente em todo o mundo, o que levou a Pathé, a Gaumont, a MGM e a Paramount a equiparem-se com som.
A determinada altura, a popularidade crescente das notícias levou à abertura de salas - normalmente situadas nos locais de passagem mais movimentados como as estações ferroviárias e as principais artérias das grandes cidades - para exibição quase exclusiva de newsreels. Em França e noutros países francófonos essas salas ficaram conhecidas por Cinéac, um neologismo criado a partir das palavras cinéma e actualité. No início da II Guerra Mundial, a Fox, a maior companhia, estava habilitada a fazer imagens com meios próprios em 51 países e dispunha de delegações nas principais capitais do mundo.
Três ordens de razões, aliás indissociáveis, convergiram para fazer dos anos 30 os anos de ouro das atualidades cinematográficas: primeiro, a conjuntura política, carregada de ameaças, e a consequente necessidade de informação; segundo a inovação tecnológica e os efeitos da rádio; terceiro, o impacto da versão cinematográfica de March of Time.
Em relação ao primeiro ponto, importa anotar a resistência inicial dos produtores em investir em noticiários. Encaravam-nos como mero complemento dos filmes de fundo. Contudo, na Europa, a determinada altura, setores operários começaram a insurgir-se contra a futilidade dos assuntos. Promoveram estridentes manifestações de assobios, obrigando à interrupção das sessões. Nos Estados Unidos, por outro lado, o público - na verdade, só parte dele - dava sinais de não entender os motivos pelos quais, por exemplo, as deploráveis condições de vida de muitas famílias americanas, em consequência da Grande Depressão de 1929, eram simplesmente ignoradas.
Também a situação internacional suscitava preocupação, dando argumentos a quantos se insurgiam contra a tendência para o entretenimento dominante nas atualidades. Na Europa intensificava-se a luta política, à esquerda e à direita, com a consolidação do poder soviético e a ascensão dos fascismos. Em Portugal era instaurada a ditadura do Estado Novo. Em Espanha, após um conturbado período republicano, estalava a Guerra Civil, cujo desfecho permitiria ao general Francisco Franco governar em ditadura tendo como aliados a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler. Mussolini alimentava o desígnio de restaurar o antigo império romano. Hitler, numa Alemanha renascida da humilhação imposta pelos ditames do Tratado de Versalhes, propunha-se criar um império de mil anos.
Quanto ao segundo ponto, a inovação tecnológica disponibilizava equipamentos cada vez mais ajustados à velocidade exigida pela informação. Ainda antes do cinema sonoro as câmaras de filmar já eram mais leves, com maior autonomia e capacidade ampliada de armazenamento de bobines. Substituídas as manivelas por motores, o cinema mudara de ritmo, passando de 16 para 24 imagens por segundo. Dadas as dificuldades da captação do som direto - entre outras, os equipamentos, pesados e complexos, retiravam mobilidade ao operador de câmara - o poder enunciativo da palavra gravada em estúdio passou a ocupar um lugar central. O comentário impôs-se a ponto de, muitas vezes, substituir as próprias imagens, dando origem a uma verdadeira arte da narração. Comentadores como Lowell Thomas tornaram-se celebridades mundiais.
Um exemplo dessa arte de narrar encontra-se na cobertura que a Fox fez, em 1934, do assassínio do rei Alexandre da Jugoslávia durante uma visita a França. O rei seguia numa viatura com o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Barthou, quando da multidão apinhada nas ruas de Paris saiu um homem que disparou sobre os dois estadistas. O atirador pôs-se em fuga, mas foi logo detido. As imagens não mostram os disparos. A narração, contudo, compõe um quadro de tal modo impressivo que se fica com a sensação de se ter assistido à integralidade da ação. Para produzir tamanho efeito os textos tinham de ser imaginativos, redigidos para serem ditos e não lidos, e as vozes adequadas ao intuito de sugerir continuidade visual onde, na verdade, ela não existia.
Finalmente, a influência de March of Time. Numa altura em que os talks e os blocos noticiosos proliferavam nas estações de rádio americanas, recolhendo a preferência dos patrocinadores, foi lançada a versão cinematográfica de March of Time, a qual, tal como o programa radiofónico do mesmo nome, tratava os temas da atualidade através de narrativas altamente dramatizadas.
March of Time no cinema
Henry Luce, fundador da Time Inc. e proprietário de March of Time, quis transportar para o ecrã um jornalismo que tratasse as matérias em profundidade sem, no entanto, prescindir de uma parcela de entretenimento. Entregou a tarefa de encontrar a solução a dois produtores, Louis de Rochemont e Roy Larsen, ambos partidários da observância dos critérios jornalísticos, o primeiro com experiência de Hollywood, o segundo da rádio. Uma mistura explosiva, dir-se-ia. Em conjunto, propuseram-se revolucionar os jornais cinematográficos.
Rochemont fora repórter de imagem de diversas companhias e as suas ideias eram pouco ortodoxas. Não se coibia, a par da utilização recorrente de imagens de arquivo, de promover a encenação de acontecimentos e, eventualmente, até a reconstrução, por forma a tornar as peças mais apelativas. Os operadores de March of Time tanto recorriam à câmara oculta quanto faziam os protagonistas representar diante dela, embora recusando, por norma, a participação de atores profissionais. Figuras públicas começaram a ser dirigidas por March of Time com o intuito de as fazer melhorar os seus desempenhos. O general McArthur, por exemplo, não só deu instruções para unidades das forças armadas americanas colaborarem, mas também, ele próprio, aprendeu a representar-se a si mesmo. Henry Luce chegou a justificar estes procedimentos como sendo afins do cinema documental, invocando, inclusivamente, semelhanças com o método de Robert Flaherty, ou seja, tratar-se-ia de encenar de modo a chegar o mais próximo possível da verdade, portanto, em nome da verdade.
A primeira exibição de March of Time teve lugar a 1 de Fevereiro de 1935 no Teatro Capitólio, em Nova Iorque. Um ano mais tarde o magazine era exibido em mais de 5.000 salas dos Estados Unidos e em 709 no Reino Unido, sendo visto por mais de quarenta milhões de pessoas em todo o mundo. Na sua primeira edição cobriu seis assuntos em vinte e dois minutos, o que não diferia substancialmente do que faziam outros jornais de atualidades. Na edição seguinte, os temas tratados foram cinco e na quinta edição apenas dois. Desde essa altura, durante três anos, March of Time abordou dois a quatro temas até que, em Janeiro de 1938, dedicou a sua atenção a um único assunto num filme intitulado Dentro da Alemanha Nazi.
O filme mostrava o quotidiano no III Reich. A sua exibição foi recusada por alguns distribuidores, aliás, por razões contraditórias visto ser acusado de pró-nazi por uns e anti-nazi por outros, o que só pode ser compreendido devido à peculiar situação interna dos Estados Unidos. Por um lado, a embaixada alemã exercia pressão constante sobre a indústria do cinema americano ameaçando suspender a importação de filmes de Hollywood, por outro, o movimento isolacionista rejeitava qualquer tipo de ação que pudesse comprometer o país na eventualidade de uma guerra.
Neste caso, porém, colocava-se ainda um outro problema. Boa parte de Dentro da Alemanha Nazi tinha sido rodada e encenada na América com protagonistas escolhidos entre os membros de uma comunidade germânica com padrões de vida tradicionais. March of Time foi acusado de falta de ética e a polémica estalou. Se a acusação não era inocente, a polémica foi criativa. O filme alertou a opinião pública americana para a ameaça nazi e marcou o ponto de viragem com a prática tradicional de newsreels. Diria Louis de Rochemont, citado por Fielding:
“Esta expansão do tempo no processo de reportagem foi importante principalmente porque permitiu um estilo jornalístico no qual a ênfase se dividia entre o drama inerente ao acontecimento e a técnica dramática da sua representação”.
March of Time estabelecia, assim, uma ordem discursiva na qual a apresentação dos factos avançava rumo a um clímax dramático, o qual, por sua vez, assegurava a continuidade narrativa. Admitia-se pela primeira vez num medium audiovisual, observados determinados limites, a legitimidade do recurso à encenação de acontecimentos em trabalhos jornalísticos. Era essa a sua força, mas, também, a sua maior debilidade. À época, do ponto de vista da ideologia da objectividade, em crescendo desde o início dos anos 20, o programa foi acusado de risco de inconsistência, visto as reconstruções serem dificilmente compatíveis com os critérios jornalísticos. Reservas foram igualmente colocadas ao método de dramatização.
Seja como for, com ou sem reservas, March of Time impôs-se a ponto de conquistar os grandes de Hollywood, de Darryl Z. Zanuck a Walter Wanger, de Irving Thalberg a David O. Salznick. Ganhou até um Oscar da Academia. Expressando a sua admiração, Salznick afirmou: “Sinto que o aparecimento de March of Time – com a sua coragem e novidade – é a mais importante inovação cinematográfica desde a invenção do som ”.
No seu ensaio The Course of Realism, depois de criticar a leviandade e irrelevância da generalidade dos noticiários cinematográficos, John Grierson dizia que March of Time ganhava onde até então todos os outros tinham falhado:
“Vai para além da notícia, analisa os factores de influência e confere uma perspectiva aos acontecimentos. Não são já os exércitos em parada, mas a corrida ao armamento; não é apenas a inauguração de uma barragem, mas a história completa das experiências da administração Roosevelt em Tennessee Valley; não se limita a noticiar o lançamento à água do Queen Mary, antes faz o levantamento da navegação britânica a partir de 1918. Tudo feito de um modo penetrante, em profundidade, e, como tal, dramático”.
March of Time foi certamente um produto da sua época. O seu estilo tinha muitos pontos em comum com o documentário da rádio. Parte do movimento documentarista britânico, a mais próxima do registo jornalístico, dar-lhe-ia grande atenção, como, de resto, sucedeu com o próprio Grierson, um conhecedor e entusiasta do campo dos media.
De um modo geral, March of Time assumiu posições antifascistas, embora não tivesse desempenhado um papel militante. Esse papel, no entanto, foi assumido por outros, nos Estados Unidos e na Europa, que contribuíram para o sucesso da propaganda e para a denúncia das injustiças sociais. Constituíram uma espécie de newsreels alternativo, promovendo, em simultâneo, uma via paralela de institucionalização do cinema de não-ficção.
Atualidades de combate, cineclubes militantes
Se a crítica da frivolidade dos jornais de atualidades americanos chegou a ser feroz, na Europa iria ainda mais longe. A dada altura, chegou a envolver o movimento comunista internacional.
Bert Hogenkamp, professor de Estudos de Cinema da Universidade de Amesterdão e autor de Film and the Left in Britain 1950-1970, recupera um texto de 1929 de um crítico cinematográfico de The New Leader no qual se resumia o programa de newsreels acabado de ver:
“Primeiro, o resumo de um jogo de futebol entre duas equipas escolares na disputa de um troféu; segundo, a princesa Mary inaugurando um edifício; terceiro, a construção de um pavilhão num campo de corridas de cavalos com alguns animais a percorrerem a pista; quarto, o príncipe de Gales inaugurando a Exposição de Newcastle; quinto, o capitão Campbell a falhar a tentativa de bater o recorde de velocidade automóvel do major Segrave; sexto, o rei a ser transportado de Bognor para Windsor onde iria convalescer de uma doença”.
No mesmo texto, fazendo eco das preocupações sociais da época, o crítico dava conta do que, em seu entender, deveria ser a alternativa:
“Podemos ter newsreels que mostrem manifestações políticas e de trabalhadores da indústria; as causas sociais que levam às greves; actividades de cooperativas; os efeitos das oito horas de trabalho nos mineiros e nas suas famílias; o contraste entre as nove pessoas que são obrigadas a partilhar um quarto numa habitação de trabalhadores e a pessoa das classes abastadas que dispõe só para si de nove divisões”.
Entre 1928 e 1939, em diversos países, este estado de espírito levou à produção de newsreels por iniciativa ou de organizações de trabalhadores, de algum modo dando expressão à ideia de Vertov de multiplicar as redes de Kinoks, ou de associações radicais como a Nykino nos Estados unidos. Umas e outras fazem parte da história dos anos de ouro das atualidades cinematográficas.
Na década de 30 assistiu-se, igualmente, à afirmação dos cineclubes. O movimento teve frequentemente motivações políticas. Havendo censura institucional, mesmo em países cuja tradição democrática levaria a supor o contrário, casos do Reino Unido e dos Estados Unidos, os filmes soviéticos raramente podiam ser vistos fora de circuitos alternativos. O Socorro Vermelho Internacional, uma organização comunista animada por Willi Münzenberg, no quadro do Komintern, procurou contornar a situação. No final dos anos 20, na Alemanha, Münzenberg começou a desenvolver esforços para difundir a produção soviética considerada da maior importância para ganhar o operariado e a intelectualidade do ocidente. Para tanto, fundou uma distribuidora, a Prometheus Films - também produtora de newsreels -, contando com o apoio de uma rede de publicações associada aos sindicatos e outras organizações de trabalhadores.
Em breve, os cineclubes operários estavam a produzir os seus próprios noticiários e documentários. Coube à Alemanha um papel pioneiro. Antes da subida de Hitler ao poder, os socialistas alemães mostraram ter aprendido a lição dos kinoks de Dziga Vertov ao utilizarem imagens retiradas dos jornais de atualidades da UFA dando-lhes sentido revolucionário. Joris Ivens fez o mesmo na Holanda. Outros repetiram a experiência no Reino Unido, nos Estados Unidos e em França onde, durante a Frente Popular, se multiplicaram as iniciativas levadas a cabo por comunistas e socialistas com a colaboração de artistas e intelectuais como Jacques Prévert, Louis Aragon, Jean Renoir e Germaine Dulac. De um modo geral, as produções eram de orçamento reduzido. Contudo, episodicamente, fizeram-se filmes mais ambiciosos como La vie est à nous (1936), um trabalho colectivo para o Partido Comunista Francês sob a orientação de Jean Renoir, cujo argumento se serve das atualidades cinematográficas para legitimar a retórica ficcional.
As raízes desta luta pelas imagens mergulham nos primeiros tempos do poder soviético quando Vertov alertou para a impossibilidade do cinema revolucionário coexistir com narrativas construídas a partir dos códigos da burguesia. Logo após a tomada do poder pelos bolcheviques, Vertov colocou-se ao lado de Lenine quando este defendeu a atribuição de 75 por cento dos recursos destinados ao cinema aos filmes de não-ficção. Em causa, segundo Seth Feldman, da Universidade de York, Canadá, e autor de dois livros sobre Vertov, estava a atenção que deveria ser prestada ao dia a dia homem comum:
“Ideologicamente, esta ênfase do homem comum nas notícias tem ramificações quer na arte socialista, quer na história do cinema. Embora o cinema em si mesmo não constituísse qualquer novidade para o povo russo, a verdade é que colocar esse mesmo povo no lugar até então reservado no ecrã a actores e gente famosa era não só uma novidade sem precedentes, mas também um modo de celebrar a sua vitória na luta de classes. (...) Para Vertov, isto quis dizer que o cineasta devia ser aceite na nova sociedade como um camarada-trabalhador e não como o patrão (que era na produção dos filmes de estúdio) ou o observador desapaixonado (que era suposto ser nos jornais cinematográficos da época)”.
Sendo esta a linha de rumo da produção mais radical no movimento socialista, nem por isso deixaram de existir outras manifestações visando a utilização do cinema como arma política. Bem pelo contrário. A partir da introdução do som, foi até nos países fascistas, primeiro na Itália, depois, como se viu, na Alemanha, com Deutsche Wochenschau que cinema e newsrels mais se identificaram com a propaganda. No caso alemão, fica até registo de obras extraordinárias como os documentários de Leni Riefenstahl.
O sonho interrompido de Buster Keaton
É certo que parte significativa da produção de newsreels dos anos 30 era rotineira, subordinada ao entretenimento e de má qualidade. No entanto, apesar das reservas e independentemente de March of Time, os jornais cinematográficos eram parte integrante da cultura popular tendo criado à sua volta, ainda antes do advento do som, uma aura e um mito que Buster Keaton iria desmontar magistralmente em The Cameraman (1928).
Keaton é um fotógrafo ambulante que ganha a vida fazendo o retrato de transeuntes. No dia em que Charles Lindbergh é recebido em apoteose em Nova Iorque, depois do seu famoso voo transatlântico, perde-se de amores pela namorada de um operador de newsreels, actividade a que ela própria se dedica como funcionária de agenda. Para a impressionar, resolve tentar também ele a sua sorte. Vende a velha máquina fotográfica e compra um antiquado modelo de máquina de filmar do qual todos fazem troça. Depois de clamorosos fracassos, acaba por ser protagonista de um episódio acidental em que é obrigado a ficar com o macaco de um pedinte. O macaco passa a acompanhá-lo na sua deambulação em busca de furos jornalísticos. A história, obviamente com origem na visão glamourizada que então se tinha do mundo dos operadores de newsreels, é, daí em diante, premonitória.
Buster Keaton é informado pela jovem de que algo de importante vai acontecer no bairro chinês, estando iminente um confronto entre bandos rivais. Assim é. E o cameraman depressa descobre como proceder. Primeiro, inadvertidamente, porque é desastrado, no meio de um tiroteio cai em situações que, sendo perigosas, são espetaculares. Apercebendo-se disso, rapidamente começa a induzir ele próprio ainda maior violência entre os bandos, de modo a conseguir imagens que sabe irão agradar ao patrão. Deixa, portanto, de agir como repórter para se transformar em alguém que cria a notícia. Porém, de modo acidental, e hilariante, quem acaba por ficar com os louros é o seu rival. “As melhores imagens que já vi na minha vida”, exclama o patrão.
No dia seguinte, rival e rapariga da agenda estão a bordo de um pequeno barco num lago a ver uma corrida de motonáutica. Na margem, Buster Keaton filma a prova com o macaco pendurado nos ombros. A determinada altura o barco em do par é abalroado. O companheiro da jovem nada para a praia abandonando-a à sua sorte. Buster Keaton atira-se à água e consegue trazê-la para terra aonde chega inanimada. Corre em busca de ajuda. Quando regressa com auxílio a sua amada está nos braços do rival que se vangloria de a ter salvo. Ela não se cansa de agradecer a bravura do parceiro. Mas o filme tem um final feliz. O macaco, por efeito de imitação, apossara-se da câmara e filmara tudo, mostrando a coragem do dono e a cobardia do impostor...
Crítica social do mundo das notícias cinematográficas e do glamour a ele associado The Cameraman, deixando de lado a trama romanesca e o gigantesco talento de comediante de Buster Keaton, coloca basicamente três tipos de questões e permite uma conclusão. Em primeiro lugar, expõe a lógica dos produtores de newsreels que faziam da espetacularidade da imagem uma espécie de valor notícia, se necessário anulando qualquer critério jornalístico. Em segundo lugar, pondo a nu procedimentos de cameramen capazes de fabricar situações para corresponder às expetativas de patrões e público. Em terceiro lugar, o papel da câmara enquanto agente de revelação da verdade. Por alguma razão Vertov dizia que o olho da câmara é mais perfeito do que o olho humano para efeito do conhecimento do real e não foi certamente por acaso que o seu O Homem da Câmara de Filmar faz citações de The Cameraman. Conclusão: a câmara tanto pode ser usada para elucidar e fazer ver, quanto pode, se entregue à frivolidade, dar lugar ao desastre.
Nos anos de ouro das atualidades cinematográficas, desde o advento do cinema sonoro até ao final da II Guerra Mundial, houve de tudo. Para o bem e para o mal. A imagem conheceu diferentes formas de combinação com o som, por vezes, cedendo o primado da enunciação à palavra. Multiplicaram-se as hipóteses narrativas. Talvez por isso mesmo, o filme documentário adquiriu, durante este período, adquiriu considerável arsenal teórico no meio de acesas controvérsias. O movimento documentarista britânico nasceu e cresceu neste contexto.
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– Documentary Film, Faber and Faber, London, 1952.
- Documentary Diary, Hill and Wang, New York, 1973.
- Television in the Making, edited by Paul Rotha, The Focal Press, London and New York, 1956.
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