Quando Paul Thomas Anderson fez Magnolia não tinha ainda completado 30 anos. Eu tinha chegado aos 50, preparava-me para uma nova aventura profissional e estava farto de trabalhar em jornalismo de televisão. Adiante ver-se-á a razão pela qual falo de mim a propósito deste filme cuja percepção, na altura, foi declinada de múltiplas maneiras, ficando até a ideia de ninguém o ter entendido muito bem. Salvo, talvez, João Benard da Costa.
Estou bem lembrado da celeuma levantada pela chuva de sapos que desaba perto do final, bem como da dificuldade em encontrar um fio condutor naquela narrativa onde tudo acontece em simultâneo ao longo de 24 horas de um dia como os outros, feito de coincidências e acasos sem, todavia, nada acontecer por coincidência ou acaso. O filme começa, aliás, com citações sobre a coincidência e o acaso. Mas vejam a imagem abaixo.
Ao fundo, do lado esquerdo, estão três homens. O do meio é “Quiz Kid” Donnie Smith (William H. Macy) que disputa ao homem mais velho, à direita, o jovem barman, à esquerda, de um bar frequentado por gays. “Quiz Kid” é carente de amor e só pensa em arranjar o dinheiro necessário para o dentista que lhe há-de colocar uma dentadura irresistível. Herdou a alcunha por ter ganho em miúdo um concurso de televisão campeão de audiências. É essa a sua glória. Ameaçado de despedimento, passa o tempo a lembrá-la ao patrão.
O polícia (John C. Reilly) intervém nos pequenos casos do dia a dia em San Fernando Valley procurando cumprir a sua missão o melhor possível. Tem uma vida solitária, foi abandonado pela mulher, frequenta sites que prometem relações sérias e apaixona-se à primeira vista por Claudia (Melora Walters), à direita, quando é chamado pelos vizinhos da jovem, queixosos da estridência da música em casa dela. Claudia, viciada em drogas duras, há muito perdeu o controle da vida. É filha de Jimmy Gator (Philip Baker Hall), um astro da televisão há 30 anos a fazer o quiz show que opõe crianças a adultos chamado What the Kids Know. O médico acabou de lhe comunicar ter apenas dois meses de vida. Cancro. Claudia não fala com o pai por quem foi abusada.
Também abusado pelo pai, mas de outra maneira, é Stanley Spector (Jeremy Blackman) o miúdo prodígio que não falha uma pergunta no What the Kids Know e passa os dias enfiado numa biblioteca a meter informação na cabeça para o desempenho televisivo. É essa a vida que o pai lhe proporciona. Horas a fio isolado e corridas para o estúdio. O miúdo é infalível. Até ao dia em que se nega a responder às perguntas por não o terem deixado ir à casa de banho antes do início do programa.
Em primeiro plano está Linda Partridge (Jullianne Moore), uma mulher com os nervos destroçados, permanentemente assistida por um psiquiatra, dependente de medicação sem a qual não consegue viver. Linda é casada com um homem muito mais velho, “Big Earl” Partridge (Jason Robards), que abandonou a primeira mulher para casar com ela. “Big Earl” é o homem deitado na cama, entubado. Está em fase terminal. Cancro. É o produtor de What the Kids Know. Sabe que Linda casou com ele por interesse e vai morrer atormentado pelos remorsos, inesperadamente, com o filho Frank Mackey (Tom Cruise) a seu lado.
Frank é um guru sexual de homens incapazes de seduzir mulheres, uma espécie de pregador religioso. Aconselha a brutalidade. A sua máxima é “Respect the Cock and Tame the Cunt”. Há anos não vê o pai nem o pai sabe dele, posto que mudou de nome. Mas, após uma entrevista catastrófica em que é levado a expor-se na televisão, cede ao pedido de Phil (Philip Seymour Hoffman), que o encontra por acaso, e vai a casa do progenitor para se reconciliar e despedir. Phil, o dedicado enfermeiro à cabeceira do moribundo trata dele o melhor que pode num quarto enorme onde ao fundo há um aparelho de televisão onde passa o programa de “Big Earl” apresentado por Jimmy Gator.
Voltem agora à imagem. Atentem no discreto lugar da televisão. E como tudo parece girar à sua volta.
Gostei do filme quando há 20 anos o vi pela primeira vez. Senti, é verdade, uma estranha incomodidade perante aquela fantasmagoria de seres à deriva, perdidos de si mesmos, capitulando perante a sua própria circunstância, ou, quando muito, ensaiando a busca de uma hipotética tábua de salvação nem que fosse através da aquisição de uns dentes postiços. Também não me apropriei por inteiro da narrativa que subverte o cânone - coisa que habitualmente não me põe problemas, bem pelo contrário - e espantosamente dá coerência ao emaranhado das histórias dos protagonistas. Fosse como fosse, na altura, não me apeteceu pensar muito no assunto. Passei à frente.
Magnolia é do mesmo ano de American Beauty de Sam Mendes que conta com uma notável interpretação de Kevin Spacey no papel de Lester Burnham, um homem na crise da meia idade apaixonado pela melhor amiga da filha adolescente. Gostei de American Beauty - estaria eu a passar por uma crise da meia idade? - e disse-o ao João Benard da Costa numa daquelas com ele sempre inevitáveis conversas sobre cinema. Foi entre cafés e cigarros no bar do Hotel New York, em Roterdão, um espaço magnífico criado a partir da recuperação do edifício de onde, noutros tempos, embarcaram os emigrantes holandeses com destino à América.
Sempre um cavalheiro, sempre candidamente um pouco perverso, sempre divertido, o Benard tinha algumas reservas a meu respeito. Nunca fiz questão de saber porquê, mas tinha. Levava muito a sério o exercício de tutela de um certo gosto cinéfilo, não gostava do documentário, detestava os filmes de Joris Ivens e no primeiro encontro na Cinemateca para tratar da Programação da Odisseia nas Imagens do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, ao tomar conhecimento do papel atribuído ao cinema documental, perguntou: então, e o grande cinema? Além disso, apesar de ter chegado a fazer parte do Júri de um festival internacional de documentários para televisão, o MAT, deixou logo claro que com ele “televisão nem pensar”. Talvez esse fosse outro ponto a meu desfavor, não sei. Quanto ao mais, era um conversador e um contador de histórias fantástico, escrevia muitíssimo bem e tinha verdadeira paixão pelo Cinema. Eu adorava ouvi-lo. Por isso, quando ele torceu um pouco o nariz a American Beauty e contrapôs Magnolia como um dos grandes filmes do final do século XX, muito complexo, decidi voltar a vê-lo. Pois só aconteceu agora. Andava eu ocupado na recuperação de arquivos e cadernos e eis que num deles encontro as notas dessa viagem a Roterdão, designadamente da conversa no bar do Hotel New York. Tratei de rever o filme. Fiquei agarrado ao ecrã.
Ao contrário da maioria da produção americana da época não há uma ou duas personagens centrais. Há sim vários protagonistas, com exposição episódica no ecrã, que Paul Thomas Anderson transformou em personagens. Todas elas são essenciais à coerência do mosaico. Criar personagens no cinema é sempre um exercício difícil. Obedece a opções num quadro relacional que convergem no sentido de urdir a espessura dramática sem a qual não é possível operar a metamorfose que transforma meros protagonistas em verdadeiras personagens. Em Magnolia, essa metamorfose passa pela montagem de momentos vividos em paralelo pelos diversos protagonistas, momentos esses cuja intensidade dramática se expressa em crescendo e tem como horizonte ora a busca cega de algo que ainda valha a pena, nem que seja uma quimera, ora a morte como fim inexorável de todas as ilusões.
Numa versão livre, o clímax do filme é mais ou menos como segue. “Quiz Kid", em desespero de causa, rouba o dinheiro escondido pelo patrão para poder comprar uns dentes novos, Linda, talvez à procura da redenção, descobre que afinal ama o homem com quem casou por conveniência enquanto ele, “Big Earl”, morre atormentado pelo remorso tendo a seu lado o filho Frank banhado em lágrimas, o tal que ensina a maltratar mulheres como Claudia, a junkie abusada pelo pai, Jimmy Gator, a estrela moribunda do show televisivo What the Kids Know onde o miúdo prodígio Stanley, farto do papel que representa, acaba de urinar nas calças deixando o pai que o explora à beira de um ataque de nervos. E quando o Polícia salva “Quiz Kid” levando-o a devolver o dinheiro roubado, e quando os percursos de todos se cruzam desaba uma chuva de sapos. Bíblica. Exodus 8:2 “And if thou refuse to let them go, behold, I will smite your whole territory with frogs.”
Há ainda um miúdo, um rapper. No contexto da narrativa, ele, sim, parece surgir por acaso. Mas não é assim. O miúdo interpela o polícia depois de uma detenção em casa de uma negra e diz-lhe que escute bem, porque é ele quem tem a chave de tudo:
"Try to listen and learn. Check that ego. Come off it, I’m the prophet, the professor, I’m-a teach you about the Worm, who eventually turned to catch wreck with the neck of a long-time oppre’’ssor. And he’s running from the devil, but the debt is always gaining, and if he’s worth being hurt, he’s worth bringing pain in. When the sunshine don’t work, the good Lord bring the rain in.”
Um grandíssimo filme, digo eu, agora, quando passaram 20 anos sobre a estreia de Magnolia e também da minha saída desse estranho mundo da televisão. Estranho porque tendo andado por aquele aquário um quarto de século, a par das horas boas que por lá vivi, fiquei a perceber demasiado bem os seus meandros, o jogo de figuras de palha que põe em marcha as suas engrenagens. Digo isto porque Magnolia, não sendo um filme sobre a televisão é um filme que tudo tem a ver com ela e com a sociedade esquizofrénica que ajudou a criar. Todas as personagens, direta ou indiretamente, lhe estão ligadas. Ou porque são os donos, ou celebridades, ou porque a ela são chamados, ou dela fazem parte desde miúdos como “Quiz Kid” e Stanley, ou porque, simplesmente, vendo-a, a tomaram sempre demasiado à letra.
O fim do século passado terá sido também o fim do ciclo existencial de algum modo induzido pela televisão. Talvez isso esteja em Magnolia, naquela praga de sapos, na densa espessura dramática daqueles seres à deriva, todavia profundamente humanos, não sei. Sei que a centralidade da televisão passou ao lado de dezenas de críticas feitas à época, embora me pareça absurdo admitir que Paul Thomas Anderson não tenha pensado na carga simbólica nela contida. Muito pelo contrário. Na verdade, pelas conexões narrativas, rompendo no plano formal com as convenções da indústria de Hollywood, Magnolia já não é um filme do tempo da televisão. É já um filme de outro tempo, um filme de hipertexto.
Quando vemos uma obra cinematográfica não podemos evitar vê-la na companhia de tudo quanto em nós habita. Por isso, todos a vemos de maneira diferente. Quando nessa longínqua noite no Hotel New York em Roterdão nos despedimos, Benard da Costa disse-me: olhe, pense no Magnolia. Tinha razão. E eu estive demasiado tempo no interior do aquário.
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