Não sei bem o que possa ser o jornalismo cultural, agora. Em tempos, os principais jornais portugueses tiveram excelentes páginas culturais. No Porto, por exemplo, o Primeiro de Janeiro publicou o suplemento das Artes e das Letras e O Comércio do Porto o Cultura e Arte. São meros exemplos. Houve mais. De um modo geral, todos tiveram entre os seus colaboradores alguns dos mais destacados escritores de uma época durante a qual a Literatura foi hegemónica. Posteriormente, o foco diversificou-se. A atenção também passou a incidir sobre outras artes. Consequência da inexorabilidade do tempo, jornais foram morrendo, caso dos dois mencionados, mas outros foram aparecendo, observando, as mais da vezes, a tendência de aproximação ao cada vez mais apetecível mercado dos bens simbólicos. Notar: ainda há suplementos culturais com matérias relevantes, fazendo prova, embora cada vez mais raramente, da presença de profissionais especializados em áreas culturais. Assinala-se a resiliência de um sobrevivente de qualidade, o Jornal de Letras. Quanto à televisão, a pública faz o que pode, as outras, também, embora nunca de forma desinteressada. Com a rádio sucede o mesmo.
Esta paisagem não se esgota, porém, na visão um tanto arcaica plasmada no parágrafo anterior. Pelo contrário, também nela é forçoso assinalar o grande tumulto resultante do mundo digital emergente com a sua miríade de plataformas, no qual coexistem, por um lado, o espetáculo grotesco do vale tudo, fake news e pós-verdade e, por outro, objectos culturais fascinantes, pensamento elaborado, propostas arrojadas e possibilidades de conhecimento praticamente ilimitadas. Na verdade, há de tudo. Mas, para já, o grotesco, de resto, igualmente presente nos media tradicionais, parece levar vantagem. Isto é parte do problema. Não se trata apenas de conteúdos, trata-se, igualmente, de consequências em profundidade, de ordem antropológica, que resultam da utilização generalizada dos meios digitais. Eles alteram o modo de pensar e de agir, condicionam a utilização do tempo, promovem alterações na linguagem e impõem linguagens novas. Disseminados em rede, tanto abrem janelas de liberdade quanto espaço a processos de vigilância que nem as distopias mais radicais conseguiram prever. McLuhan falava dos media enquanto extensão dos sentidos do homem. Assim parece ser. Acrescente-se: este mundo novo tem impacto brutal no jornalismo, especializado ou não, e já maioritariamente on line,
Dito isto, suponho ter resumido o que seria expectável ouvir num encontro deste género. Poderia, evidentemente, desenvolver de seguida cada um dos tópicos, mas não é esse o meu propósito. O jornalismo, seja qual for o designativo que se lhe queira associar, ou é jornalismo ou é outra coisa. E este parece ser mais o tempo da outra coisa. Esse é o meu ponto. Farei por isso uma digressão à volta de questões que suscitam perplexidade e interrogações. Antes, porém, de me aventurar no estado da arte, devo fazer uma declaração de interesse.
Há mais de vinte anos comuniquei aos meus alunos a intenção de “mudar de ramo” - foi esta a expressão que utilizei - porque me sentia desconfortável não só com a ideia de continuar a lidar com algo cujo futuro me parecia comprometido, mas, também, e sobretudo, por não querer falhar, por falta de convicção, junto de quem bem merecia sonhar. O jornalismo parecia-me cada vez mais uma atividade metafórica. Decidira, por isso, fazer outras coisas. Não por não gostar da utopia do jornalismo, tão pouco por capitulação, posto que continuaria a intervir publicamente, mas por estar cansado, necessitado de novos desafios. O que se segue é uma espécie de regresso ao passado, back to the basics, onde retomo questões clássicas, as quais, a meu ver, continuam atuais. Os jovens futuros jornalistas precisam de saber que não há jornalismo sem memória, critérios e pensamento. Também não há jornalismo sem cultura. Por isso, ao invés de falar em jornalismo cultural, opto por dar prioridade ao jornalismo enquanto atividade cultural. E, por razões óbvias, tendo um quarto de século de experiência de televisão, falarei, sobretudo, dela.
1. As notícias são como são: mosaico, dialéctica, constrangimentos
Começo, então, por um quadro de referências em torno daquilo que é a matéria prima do jornalismo, a notícia. A fabricação das notícias obedece a constrangimentos tanto de ordem institucional quanto narrativa. No plano institucional há os dispositivos organizacionais, com as suas hierarquias, às quais compete zelar pela observância das normas destinadas a impor uma determinada ordem jornalística. No plano narrativo, trata-se de disponibilizar um conjunto de técnicas habitualmente associadas aos diferentes géneros jornalísticos, as quais permitem encarar a codificação numa perspectiva previsível, embora alguns géneros autorizem uma maior liberdade criativa do que outros. Em qualquer dos casos, estão presentes mecanismos de controle que não se exercem apenas através de processos de gatekeeping, antes correspondem a uma lógica determinista sem a qual se acredita que a própria produção de notícias seria inviabilizada. Esse é o campo do newsmaking. Por isso, as notícias são como são.
Michael Schudson aponta três ordens de razão para que assim seja: a acção pessoal, a acção social e a acção cultural. No primeiro caso, as notícias são encaradas com um produto das pessoas e das suas intenções; no segundo, resultam das organizações e dos seus constrangimentos; no terceiro, são um produto dos contextos culturais e dos seus limites. Assim, as notícias resultam de um conjunto de interações: do repórter, director e editor; dos constrangimentos inerentes à organização das redações; da necessidade de manter os vínculos com as fontes; do interesse dos leitores e das audiências; das poderosas convenções culturais dentro das quais, frequentemente, os jornalistas operam sem delas terem consciência. Tendo noção dos conflitos existentes entre eles próprios e as chefias pelo controlo das peças, muitas vezes, não estariam inteiramente conscientes do controlo exercido quer no âmbito da organização social, quer do mosaico cultural. Para que tal se verificasse, seria necessário ir à origem dos constrangimentos, de todos eles. Isso permitiria criar um sobressalto cognitivo do lado dos profissionais, bem como um cepticismo saudável junto público no sentido de o levar a exigir maior variedade e qualidade no tratamento das notícias.
Apesar de um número crescente de episódios parecer desmenti-lo, é razoável supor que os departamentos de informação continuam a reger-se basicamente pelo chamado valor notícia, tal como foi elucidado por Galtung e Ruge, em 1965. Aludindo à significatividade, os autores argumentaram haver relação entre a cobertura noticiosa e a importância dos acontecimentos. Parece óbvio, embora a natureza dessa relação seja bem mais complexa. É igualmente necessário que os jornalistas disponham de ferramentas, técnicas e teóricas, bem como de um código ético, cujo domínio lhes permita lidar quotidianamente com as pressões e constrangimentos. Sendo certo que ninguém hoje reclama uma objectividade noticiosa absoluta, a verdade é que a confiança do público, apesar de abalada, continua a depender da observância de determinadas normas. Elas existem. Portanto, em princípio, é possível escrutinar os acontecimentos de modo a dar deles uma versão plural, credível, verosímil e, portanto, objectiva.
Do normativo constam, igualmente, procedimentos clássicos como verificar os factos, confirmar a idoneidade das fontes, distinguir informação de opinião e apresentar de forma equilibrada pontos de vista divergentes respeitantes a uma mesma matéria. Apesar desta ideologia da objectividade continuar bastante arreigada sendo, de algum modo, referência, a verdade é que os reguladores do fluxo noticioso evitam, cada vez mais, fazer-lhe menção explícita. Preferem falar, por exemplo, de imparcialidade e razoabilidade, certamente menos problemáticos e mais consensuais em termos do dia a dia condicionado quer por agendas interessadas, resvalando para a publicidade e propaganda, quer pela contaminação do entretenimento, uma tendência que, sendo transversal à generalidade dos meios tradicionais, salta à vista na televisão.
Neste último caso, multiplicaram-se os formatos patrocinados de índole informativa, bastante diversificados, alguns dos quais dispensam o protocolo da informação. Regra geral, obedecem à chamada ideologia da programação, na expressão de Dominique Mehl, a qual, atenta à pressão dos anunciantes, não só pensa os programas em função dos comportamentos e gostos do público, mas também exige, por vezes, a presença e a participação desse mesmo público num registo de convivialidade. Iminentemente sensorial, a televisão precisa dessa ilusão de partilha tanto mais presente quanto mais estiver respaldada no mito e nos estereótipos. A eficácia retórica, no mundo mediático, exige a presença do denominador comum da cultura em sentido lato e restrito. Em sentido lato, o uso de uma mesma língua será o caso mais óbvio. Em sentido restrito, por exemplo, a intersecção com diferentes vertentes culturais. A título de meramente ilustrativo, vejamos o cruzamento, por um lado, com a Antropologia, por outro, com a Análise Literária.
A Antropologia dispõe de um arsenal teórico cujas categorias cognitivas permitem perceber uma sociedade se relaciona com o mundo e, designadamente, com o mito acima mencionado, elemento fulcral da coesão comunitária. Regra geral, quem intervém na elaboração das narrativas jornalísticas não tem noção dessa presença, dissimulada atrás da máscara a que convencionou chamar-se senso comum. Há adquiridos, porventura, em função de uma ordem superior, que não se discutem. Mas basta analisar a forma como os jornalistas abordam as suas matérias ou colocam as suas perguntas para entender o seu quadro de referências, presente em latência.
Quanto à Análise Literária, na perspetiva de John G. Cawelti, toda a literatura se encontra entre dois pólos, o mimético, que nos confronta com o mundo tal como o conhecemos e o formalista, que corresponde à elaboração narrativa de um mundo sem a desordem, ambiguidade, incerteza e limitações do mundo da nossa experiência. O mundo assim construído, tanto é o espaço da ficção quanto da notícia. Por associação de ideias, Northrop Frye na sua teoria dos géneros literários, ao interrogar-se sobre se a notícia é romance, tragédia, comédia ou sátira, avança algumas hipóteses. Se os protagonistas se erguem do mundo frustrado da experiência para um ideal mais alto e um mundo desejável, esse será o domínio da comédia. Será do romance quando tudo se passa num mundo altamente desejável. Da tragédia quando a notícia resvala para o desapontamento e assume proporções dramáticas. E assim por diante.
Estas questões - poder-se-iam acrescentar tantas mais - permitem alargar o campo de interpelação dos procedimentos jornalísticos. São como peças de um puzzle que encaixam dialecticamente. O jornalismo não é uma ilha isolada. O puzzle, por certo consequente de convenções e constrangimentos, procede daquilo a que se chama a construção da realidade.
2. A construção da realidade: metamorfose, mentira e propaganda
Quer isto dizer que a realidade, em si mesma, não existe. Só existe enquanto construção. O real, sim, existe. Porém, é percepcionado diferentemente consoante a interpretação que dele se faz e como, a partir dela, é organizado. Nessa avaliação far-se-á sentir, certamente, o peso do senso comum. Seja como for, a interpretação e organização do real só são possíveis através do recurso à linguagem. É à linguagem que cabe operar a metamorfose do real em realidade. Assim sendo, os jornalistas, tendo embora o foco num ponto de partida comum, darão origem a narrativas distintas. A construção da realidade é plural. Tratando-se de jornalismo, porém, o processo de construção só fica completo se associado aos critérios jornalísticos. São eles que garantem fiabilidade e conferem credibilidade.
Na imprensa, a notícia escrita nunca é mimesis posto que, a par dos procedimentos jornalísticos, está sempre sujeita a uma intervenção mais ou menos próxima quer das formas literárias quer, agora, dos conteúdos veiculados através das plataformas digitais, cuja inventariação, tamanha é a diversidade, é praticamente impossível. Poder-se-ia dizer o mesmo em relação aos programas informativos de rádio e televisão. Na gíria mediática, compete-lhes contar estórias. As estórias obedecem a determinadas convenções narrativas. Sendo o mundo da televisão particularmente poroso, no sentido em que absorve diversas estratégias discursivas, a busca de formatos de sucesso dá origem a inesperadas alterações, só estabilizadas a partir do momento em que é atingido um duplo objetivo. Por um lado, garantir audiências capazes de proporcionar receitas publicitárias. Por outro, assegurar a eficácia persuasiva no terreno da regulação e dominação simbólicas. São aspectos complementares. A ilusão de um universo desinteressado de notícias enquanto espelho do mundo acabou há muito.
A metamorfose da paleo-televisão, ainda analógica, com o seu contrato de comunicação plasmado na delimitação dos géneros e numa divisão específica dos públicos, em neo-televisão, já em plena migração para o digital, com a sua perspetiva participativa e de segmentação, teve, desde logo, reflexos no modo de encarar o jornalismo. Abriram-se as portas ao infotainment. Em nome do público, os produtores de informação das network americanas adoptaram procedimentos semelhantes aos dos produtores de Hollywood. As notícias, mesmo se procurando preservar critérios jornalísticos, passaram a ser vistas como News Show. Não por acaso, esta tendência impôs-se com o neoliberalismo, em consonância com as políticas de privatização e desregulação das telecomunicações da era Reagan-Thatcher.
Desde então, a televisão comercial opera em função da seguinte equação: se, pela sua natureza, o medium apela mais à emoção e menos à razão, o enfoque editorial deve incidir mais na esfera privada do que na esfera pública; portanto, é necessária a fulanização das notícias em torno, por exemplo, de celebridades; logo, o habitat das notícias é mais no campo do espetacular e menos do esclarecimento. Os géneros jornalísticos refletem tais pressupostos. Vejamos. A reportagem televisiva, centrada no repórter, tornou-se essencialmente performativa. Ao repórter exige-se que seja um ator. Tendo notoriedade, a sua figura sobrepõe-se à matéria informativa, se a houver, porque, verdade se diga, muitas vezes, não tem nada para dizer. No quadro da atual guerra na Ucrânia, chega a ser confrangedor como na maioria dos casos o jornalista se limita a reproduzir versões oficiais. Vai aonde o levam, filma o que lhe mostram, utiliza os argumentos convenientes, divaga em torno do politicamente correcto. Não é nada de novo. Por altura da guerra do Golfo, Richard Hardwood, editor do Washington Post, suscitou a questão e fustigou algumas das vedetas destacadas para a cobertura, entre as quais Dan Rather, Tom Brokaw e Sam Donaldson. Os seus conhecimentos jornalísticos e académicos sobre o Médio Oriente, escreveu Hardwood, “são modestos ou nulos”. Contudo, acrescentou, é em torno deles que as networks montam as suas operações especiais uma vez que atraem público numeroso e, por conseguinte, publicidade e receitas.
Outra consequência da adopção dos formatos do entretenimento é o risco das notícias resvalarem para o fait divers. As redes sociais vieram agravá-lo. Daí à produção de fake news é - foi - um pequeno passo. Veja-se, a propósito, o documentário Outfoxed: Rupert Murdoch’s War on Journalism, de 2004, no qual Robert Greenwald desmonta as múltiplas faces da americana Fox News, na qual, a mentira era recorrente. Hoje, é habitual. E deixou de ser um exclusivo da Fox. Fake news, aliás, não são uma invenção recente. A sua origem é longínqua. Reportando apenas a episódios mais recentes, vale a pena lembrar duas guerras cujo início esteve ligado à mentira.
A primeira, a guerra hispano-americana travada em Cuba no final do século XIX. William Randolph Hearst, proprietário do New York Journal e um dos criadores da chamada yellow press, fez deslocar a Havana dois dos seus empregados, o jornalista Richard Davis e o ilustrador Frederic Remington, este último famoso pelos seus quadros do oeste americano. Os dois homens levavam a incumbência de reportar a insurreição dos cubanos contra o domínio colonial espanhol. Pelo meio havia rumores sobre a presença de um navio americano pronto a intervir ao largo da capital cubana. Ao fim de uma semana, Remingtom sugeriu o regresso a Nova Iorque, posto que os rumores eram infundados, a ilha estava calma e não havia sinais de guerra iminente. Hearst respondeu através de um telegrama: “Please remain. You furnish the pictures and I’ll furnish the war.” Assim foi. Remington fez diversas ilustrações sensacionalistas, entre as quais do navio a arder. A partir daí, o falso criou as condições para a guerra.
Tal como aconteceu mais tarde, já no século XXI, com a guerra no Golfo, cujo pretexto foi a alegada existência de armas de destruição massiva no Iraque. Podemos imaginar Hearst, de novo, agora declinado pela Administração americana: “You furnish me the proof and I’ll furnish the war”. Como se sabe, nunca houve prova, ou melhor, houve uma prova forjada esgrimida nas Nações Unidas pelo ex-secretário de estado americano Colin Powell. As armas nunca existiram. Porém, a mentira, propalada não pelas redes sociais, mas pela generalidade dos media corporativos, justificaram mais uma guerra feita à revelia das convenções internacionais. No documentário do jornalista Danny Schechter, Weapons of Mass Deception, realizado em 2004, é abordado o processo mediático levado a cabo para condicionar a opinião pública. Uma das vertentes do filme diz respeito respeita à construção da realidade e envolve os procedimentos jornalísticos. A CNN, por causa da guerra no Iraque, passou a fazer emissões diferentes para os Estados Unidos e para o resto do mundo, ou seja, mais “patrióticas” para consumo interno, mais “objetivas” para consumo externo. Um dos seus responsáveis editoriais justificou a decisão falando de pequenas alterações levadas a cabo em nome do respeito pelo público. Churchill tinha razão: em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade.
3. Fábrica de consensos: as ilusões necessárias
A história do jornalismo esteve sempre ligada à equação da verdade e da mentira. Durante muito tempo, podendo embora assumir diferentes enfoques editoriais, o jornalismo teve a seu favor a ideia segundo a qual determinados requisitos, elementarmente descritos na primeira parte deste texto, eram cumpridos. Não o sendo, ou seria mau jornalismo ou não seria sequer jornalismo. É um excelente princípio. De tal modo que o modelo ocidental, baseado numa imprensa livre indissociável do funcionamento do mercado, apesar de questionado por diversas vezes, nunca foi verdadeiramente posto em causa. Contudo, as coisas carecem de revisão.
No plano teórico, a crítica radical de Noam Chomsky, designadamente em Manufacturing Consent; The Political Economy of the Mass Media (1988), abriu uma brecha no edifício do pensamento dominante. Através de múltiplos exemplos, designadamente o da cobertura feita pelo New York Times sobre a situação em Timor-Leste, demonstrou a relação estreita do jornal, por um lado, com os patrocinadores e, por outro, com os interesses defendidos pela Administração americana, da qual a Indonésia, ocupante da antiga colónia portuguesa, era um aliado. Juntamente com Edward S. Herman, co-autor do livro, Chomsky definiu o papel dos media no quadro daquilo a que chamou modelo de propaganda: “The mass media serve as a system for communicating messages to the general populace. It is their function to inculcate individuals with values, beliefs, and codes of behavior that will integrate them into the institutional structures of the larger society. In a world of concentrated wealth and major conflicts of class interest, to fulfill this role requires systematic propaganda.”
Posteriormente, em Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies (1989), Chomsky desenvolveu a reflexão sobre o efeito de agenda-setting. A agenda não se limita a determinar o que deve ser ou não notícia, selecionando ou excluindo acontecimentos. Ao fazê-lo identifica os tópicos que devem merecer atenção na esfera pública. Se o que não consta da agenda, simplesmente, não existe, o que consta, em função dos códigos utilizados, impõe uma maneira de interpretar. Ou seja, a agenda diz-nos tanto sobre o que devemos saber, quanto sobre o modo como devemos pensar. Como corolário, Chomsky acrescenta: “Within the reigning social order, the general public must remain an object of manipulation, not a participant in thought, debate, and decision.”
A asserção é contundente. Todavia, o percurso percorrido pelos media tradicionais parece corroborá-la. Com efeito, no chamado mundo livre a liberdade de imprensa confronta-se com mecanismos censórios, mais ou menos dissimulados, desde logo com raiz na questão essencial da propriedade: quem está no controle? Ninguém é proprietário de media para ler, ouvir e ler o que não quer. Controlar a comunicação social representa negócio e poder. Esse poder deve ser exercido de modo a não erodir as ilusões necessárias quanto à bondade do sistema. A conjuntura, porém, é desfavorável a esse desígnio. Razões de ordem geoestratégica como que obrigam a tomar partido, mas fazê-lo oblitera os critérios jornalísticos, levando as notícias para o domínio da propaganda. O trabalho dos jornalistas, e não apenas nos canais especializados de televisão, resume-se, muitas vezes, a ser o de go-between, enquanto aos comentadores é cometida a tarefa de fabricar os consensos necessários à formação da opinião pública que há-de respaldar as decisões políticas. No caso da guerra na Ucrânia, entra pelos olhos dentro. No Médio Oriente, também. Dito isto, o que só por si daria farta discussão, não quero deixar de anotar que noutros espaços que não o do chamado mundo ocidental, o condicionamento, com diferentes contornos e enquadramentos, é semelhante. Até por isso, quem se reclama do exclusivo da democracia em contraponto com a autocracia, não deveria proibir canais de televisão. Já nem falo do martírio imposto a Julian Assange.
Dito isto, prometo voltar, ainda que abreviadamente, ao tópico do jornalismo cultural, mas não sem antes abordar sumariamente a questão das redes sociais. Poucos como Manuel Castells terão saudado com maior ênfase a explosão da Internet. Disse ele, com razão, que a rede tomou conta da vida quotidiana obrigando a reexaminar todo o transitado da sociedade industrial. De rompante, a tecnologia digital impôs-se nas empresas, na política, no trabalho, na cultura, em suma em todas as áreas de atividade humana. Castells vê na educação o elemento decisivo para tirar partido desse mundo novo. Tem razão, ainda que, apesar de intocadas as possibilidades, o aparecimento dos novos media trouxesse inquietações até então desconhecidas.
A esse respeito, o documentário de Jeff Orlowski The Social Dilemma (2020) é esclarecedor. Lidar com as redes sociais não é um problema menor. Nelas coexistem, de forma latente, utopia e distopia. A utopia do acesso à razão e ao conhecimento sem limites. A distopia da irracionalidade imposta por modelos de negócios cuja busca do lucro não enjeita, antes exige, a par da manipulação, a mentira e a disseminação da ignorância. São aterradores os testemunhos de executivos do Facebook, Instagram, Google e outras plataformas quanto ao mundo novo dos algoritmos. A produção deliberada de fake news é altamente lucrativa. Não falta quem daí tire vantagem seja qual for o domínio, designadamente no campo político. Mais, para funcionar o sistema tem de criar uma espécie de junkies, incapazes de viver sem estarem conectados à rede, uma vez que, só assim, dependentes e dormentes, podem ser vendidos como produto aos anunciantes.
4. Salvar o Jornalismo? Cultura.
Castells distingue três modalidades de comunicação. Interpessoal, de massas e aquilo a que ele chama auto-comunicação de massas, a qual é interactiva e possibilita a circulação de mensagens à escala planetária em tempo real. Esta última é uma consequência da Internet. No que nos ocupa, importa ter em conta o seguinte. As três modalidades não se excluem, pelo contrário coexistem. Sempre foi assim. A História da Comunicação é cumulativa e evolutiva, um novo medium não substitui os anteriores. Todavia, é elementar reconhecer que o impacto da Internet e das plataformas digitais no jornalismo é brutal. Desde logo, por razões óbvias, no plano tecnológico. Depois, na estrutura organizacional das empresas. Por último, na equação do contexto cultural, onde emergem novas relações de poder, seja de ordem política, seja em termos de mercado.
Uma primeira constatação remete, com efeito, para a acelerada perda de anunciantes dos meios tradicionais, da qual resultou uma verdadeira hecatombe no papel com extinção de numerosos títulos da imprensa. O fenómeno é global. As empresas que resistiram, tiveram de adaptar-se ao digital, levar a cabo despedimentos, renovar o pessoal e investir no jornalismo em linha. Algumas dessas experiências foram positivas. Também há notícia de novas publicações digitais, diversificadas, com excelentes resultados. Quem foi bem sucedido, porém, regra geral, não prescindiu de fazer a transição observando os princípios do jornalismo. De facto, só eles garantem a fiabilidade e a credibilidade, salvaguardando a leitura plural propícia ao debate das ideias. É preciso reconhecer, no entanto, que na paisagem mediática abundam armadilhas e tentações. Reside nela um paradoxo: com o espaço da comunicação saturado veio a rarefação do simbólico e uma crescente desrealização do real. Identifico, de passagem, duas ou três razões para isso.
A estonteante velocidade de circulação das informações, muitas vezes, impede os jornalistas, sobrecarregados de tarefas incompatíveis com a sua função mediadora, de assegurar o escrutínio que é a primeira condição da qualidade. Há, evidentemente, exceções. Por exemplo, quando os investimentos são avultados e a aposta é na excelência como garante da credibilidades. O bom jornalismo fica caro. Mas, não é essa a regra. Na maioria dos casos, prevalece a política dos multiskilled jobs que dispensam a especialização. No pressuposto de que os jornalistas têm de adaptar-se às novas maneiras de comunicar adquirindo novas competências, o que é verdade, abriu-se uma caixa de Pandora. Fala-se agora de jornalistas multimodais. Na prática, utilizando o jargão popular, vão a todas, competindo, inclusivamente, com as incontáveis plataformas que veiculam uma avalanche de conteúdos num ambiente de entropia sem precedentes. Na televisão, o infotainment assentou arraiais. Há até quem o considere uma nova categoria jornalística. Também se fala em jornalistas cidadãos, como se qualquer cidadão equipado com meios móveis estivesse habilitado a fazer jornalismo. Não tarda, haverá, quem sabe, jornalistas de realidades alternativas, porventura, especializados em pós-verdade. Se calhar, já há…
Constato, igualmente, o seguinte. Há hoje uma atrofia significativa quer no plano do uso da língua quer no da linguagem. A necessidade de dar resposta quase instantânea às questões da atualidade leva à redução significativa dos textos. São curtos, por vezes, telegráficos, de rápida apreensão. Aproximam-se da lógica da publicidade. Por vezes, recorrem, com prejuízo do estilo, a simplificações gramaticais e vocabulares idênticas às que encontramos nos usuários das redes socais. Escasseia o contexto o que é, também, sintoma de anemia da memória e, certamente, de uma relação frouxa com a Cultura. No âmbito da linguagem, o lastro benigno do cruzamento com outras disciplinas, por exemplo, a Literatura no caso da imprensa, e o Cinema no caso da televisão, parece ter-se esfumado. A reportagem televisiva, por exemplo, não articula as imagens sintacticamente como sucede no cinema. Ilustra os textos previamente gravados ou, como se diz na gíria, “pinta” os textos. Cola planos, enjeita a montagem. E a montagem, como se sabe, tem uma função semântica. Discursos e narrativas pobres, porque disruptivos no campo da significação, favorecem o reforço dos estereótipos. E se os estereótipos têm alguma utilidade em termos da economia do conhecimento, revelam-se contraproducentes quando se trata de exigir a racionalidade indispensável ao relacionamento com o mundo. Em suma, não creio exorbitar se disser que o panorama é preocupante. Em Portugal, por maioria de razão. Todos os números nos atiram para os últimos lugares dos países europeus em termos de literacia mediática e consumo da imprensa - os jornais em papel que subsistem, salvo um ou outro caso, têm tiragens ridículas.
Enfim, não gostaria de terminar sem uma palavra de apreço a quem se dedica ao jornalismo cultural, especializado. Enquanto ideia e prática, não é apenas uma trincheira de resistência. É, apesar de todos os constrangimentos e eventuais cedências, uma centelha que aponta caminhos no sentido de encarar o jornalismo no seu conjunto como atividade cultural indispensável ao funcionamento da democracia. É esse o bom jornalismo. O jornalismo que requer a memória, respeita os critérios, estimula o pensamento, promove o debate e observa a ética e deontologia. O jornalismo que acolhe o novo e se adapta, respeitando-se e, portanto, fazendo-se respeitar. O jornalismo como Cultura. E a Cultura liberta, diz António Lobo Antunes, .
Termino. O que aqui deixei foram breves reflexões do campo da crítica dos media. Para avançar é preciso olhar as coisas para além das máscaras. Pensar, expondo crenças e mitos. Agir dialecticamente. Se o fizermos - esta é a parte retórica na qual gostaria eu de acreditar - apesar dos constrangimentos, as notícias voltarão a ser mesmo notícias. Saberemos identificar o processo da sua construção através da linguagem que permite operar a metamorfose do real em realidade. Evitaremos o grotesco. Seremos capazes de distinguir o verdadeiro do falso, de fazer escolhas conscientes e informadas. Não confundiremos as notícias com a mentira e a propaganda. Teremos um magnífico mosaico de informação plural, com mais jornalistas especializados e menos comentadores, que nos permitirá exercitar o espírito crítico e fazer escolhas conscientes. E, acima de tudo, desvendaremos o segredo das fábricas de consensos que alimentam as ilusões necessárias.
Jorge Campos
Porto, 16 de maio de 2024
Nota: Estes apontamentos serviram de base à minha intervenção no 2º Encontro de Jornalismo Cultural promovido pelo Centro de Formação de Jornalistas, na Fundação António José de Almeida, Porto, em 16 de maio de 2024.
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