O texto que se segue tem duas partes e termina com um alerta. A primeira, reporta à minha experiência na guerra colonial. A segunda, corresponde a um esforço de memória no sentido de recuperar a vivência desse dia claro e limpo, como lhe chamou Sofia. Obviamente, ambas as partes são complementares. O alerta é tão simples quanto isto: o fascismo está de volta. Com base neste tripé, construí uma crónica pessoal do meu 25 de Abril assente na convicção de que cada dia transporta consigo memórias e afectos de outros dias. Só esse quadro de referências, o qual confere espessura e dá sentido ao modo como um acontecimento é vivido, permite compreender a indescritível explosão de júbilo do povo em comunhão com os soldados dos cravos vermelhos no cano das espingardas.
Do turbilhão das emoções desse dia inicial nunca poderia estar ausente a memória dos anos de chumbo, o peso da opressão, o labirinto das incógnitas, as feridas em aberto, os mortos, como se tudo isso fizesse parte de uma sequência cinematográfica, em flashback, necessária à montagem do filme redentor.
Só essa memória justifica tão desmedida alegria, logo feita utopia.
Guerra, 1970-1973: calendário e melancolia
Em Furancungo, uma pequena vila perdida no distrito de Tete, em Moçambique, há pouco mais de dúzia e meia de casas e um quartel onde estaciona um batalhão de Caçadores do Exército Português. A um quilómetro de distância fica a base da Força Aérea ocupada por reduzida guarnição, mas apta para o apoio a operações militares em larga escala. Uma vez por semana aterra na pista de terra batida do aeroporto o avião com mantimentos, material médico e o mais valioso de todos os bens, os aerogramas com notícias que todos aguardam com ansiedade. Volta e meia passam por ali helicópteros utilizados em combate, prenúncio ou consequência de dias mais agitados quando deles desembarcam militares das tropas especiais.
Sou alferes miliciano. Tenho um pequeno gabinete situado no extremo do enorme barracão onde se situa a área do Comando, no quartel. Partilho-o com dois subalternos, um furriel e um cabo, igualmente milicianos, de quem seria cúmplice nas ideias e de quem haveria de ficar amigo. Trato da papelada de assuntos correntes com o auxílio de ambos. Na parede, afixamos um calendário, no qual vamos descontando, dia a dia, o tempo em falta para regressar a casa, eles a Lisboa, eu a Lourenço Marques.
Não fosse a guerra, Furancungo seria um lugar aprazível. Fica num planalto a mil e duzentos metros de altitude e regista temperaturas amenas. Para os lados de Tete, os termómetros sobem facilmente acima dos quarenta graus. Na periferia do povoado amontoam-se as palhotas miseráveis do chamado aldeamento indígena onde vivem centenas de negros cuja relação com a tropa é distante, dir-se-ia de silenciosa suspeição ou de disfarçada hostilidade. A pequena casa colonial onde estou alojado, partilhada com mais alguns camaradas de armas, é modesta. Não tem mobília, à excepção das camas atribuídas a cada um, de uma pequena mesa de madeira de tampo quadrado e quatro cadeiras, mas tem uma bela varanda ao longo da qual, a curta distância, rua abaixo, há jacarandás lilases e buganvílias vermelhas, uma dádiva de cores, esplendorosa, a vibrar no ar dos dias.
Passo longas tardes de fim-de-semana nessa varanda, sentado num banco corrido, as costas apoiadas na parede, a ler. Nos livros encontro o antídoto da circunstância, a vastidão do mundo que a imaginação permite. Furancungo é, na verdade, um lugar cercado. De quando em vez, ao longe, ouvem-se tiros. Explosões. Dou comigo a pensar. Não fosse a minha mãe ter adoecido gravemente, estaria agora, provavelmente, em Estocolmo, na companhia dos três camaradas que optaram por desertar, após a fase da recruta, em Boane. Boane, a curta distância de Lourenço Marques, foi um tempo e um lugar de muitos sinais. Alguns, premonitórios. Lá irei.
Apesar do isolamento, Furancungo é bem melhor do que outros aquartelamentos na zona de Tete onde a Frelimo, de há três ou quatro anos a esta parte, intensificou as acções de guerrilha. Há dias bons e dias maus. O convívio com os oficiais do quadro, as mais das vezes, é uma rotina obrigatória que serve para iludir o tempo. Com os milicianos, pelo menos com alguns deles, é diferente. Há maior proximidade, por vezes, cumplicidade. Também acontece o inesperado. Um sargento da velha guarda, veterano de todas as frentes da guerra colonial, ébrio, sai da sua messe a disparar em todas as direcções. Estou na linha de tiro. Sem consequências. Os soldados têm as suas particularidades. Alguns, transitaram da inocência trazida de aldeias remotas de Portugal para a dureza implacável exigida no combate. É uma questão de sobrevivência. Outros, entram em depressão. Sofrem à distância com as más notícias que chegam de casa, sem poder acudir. Outros, ainda, organizam farras frequentes. Animados pela bebida e acompanhados do violão, soltam as estrofes de um cancioneiro cada vez mais anti-colonial. Há um denominador comum: todos, de uma maneira ou de outra, passam, aqui, por uma metamorfose.
Do quartel avisto o morro do elefante, uma saliência rochosa que se ergue da paisagem como se fosse um paquiderme. É o único elefante destas paragens, um enorme elefante de pedra. Abundam cobras sinuosas disfarçadas no interstício das pedras ou na folhagem das árvores. Felinos esfomeados espreitam à distância a possibilidade de uma presa. Hienas, há muitas. Invadem o povoado adormecido, à noite, com as suas gargalhadas sinistras, à procura de despojos no meio dos lixos. Procuram, também, animais mais pequenos como as galinhas, em tempos numerosas ao ponto de no aldeamento indígena haver um obelisco à sua memória, pasme-se, um monumento à galinha. Agora, até o frango, que há-de ser no churrasco, a única iguaria servida nas cantinas onde os soldados se encharcam em cerveja, chega congelado de avião da cidade de Tete.
Entretanto, recebo más notícias. Sentado no banco corrido da varanda onde habitualmente leio, as costas encostadas à parede, seguro nas mãos, não um livro, mas um aerograma recebido na véspera. Li-o vezes sem conta como se a repetição da leitura pudesse mudar o que lá está. Diz-me a minha mãe ter sido diagnosticada ao meu pai a mesma doença da qual ela mesma padece. Um pequeno nódulo no pulmão, em fase precoce, escreve, de prognóstico favorável. Em todo o caso, acrescenta, tendo ela de ir a Joanesburgo para exames de rotina, o pai, que é médico, decidiu ser também observado. A notícia atinge-me com a violência de um murro no coração. Ainda me faltam, pelo menos, doze meses para cumprir a missão em Furancungo e, além desses, outros seis para completar o tempo total de serviço militar.
Em Boane, durante a recruta, recordo, tive um alferes instrutor peculiar. Com sentido de humor dizia o que tinha a dizer através de aforismos como se estivesse a sinalizar possibilidades de futuro. No meio do exercício extenuante de marchas prolongadas, em fila de combate, sob a canícula, tinha por hábito fazer pausas à sombra da copa das árvores, em lugares discretos, afastados do quartel, para conversar. A conversa ia sempre bater na política. E na guerra. A maioria dos futuros oficiais limitava-se a ouvir. Só em grupos mais restritos alguns expressavam opinião. Uns, sendo cautelosos, eram abertamente contra o regime. Outros, filhos de colonos há muito estabelecidos em Moçambique, defendiam a solução militar. Juntando fantasia à fantasia, acreditavam, por exemplo, no apoio incondicional do exército da África do Sul em caso de necessidade. Eu e mais três, sempre os mesmos, falávamos, embora com cautela retórica. Havia suspeitos entre nós. Um deles viria a ser destacado dirigente da Renamo.
Para mim, o quadro era claro. Vigorava um regime apodrecido, crente na mística de um passado mitológico, isolado no concerto das nações, inevitavelmente condenado a soçobrar. Por incapacidade de entender os sinais do tempo, perderia as colónias da pior maneira, porventura, de forma trágica para a maioria dos colonos brancos, em estado de negação, numa espécie de torpor alimentado pelo modo de vida e pelo protocolo do simbólico sujeito ao espartilho da censura, bem como à propagação da mentira. O que tinha sido a célebre operação Nó Górdio? Um sucesso, dizia a propaganda oficial. Falso, dizíamos nós. Iniciada a 1 de julho de 1970, sob o comando do general Kaúlza de Arriaga, mobilizara mais de oito mil homens do Exército, Marinha e Força Aérea. Mas, ao contrário do propalado por uma imprensa moçambicana habitualmente impedida de se referir à guerra, a Frelimo não fora erradicada das áreas por ela controladas. Pelo contrário, sob o comando de Samora Machel, parecia ter avançado para novas direcções. E, no crepúsculo do domínio colonial, seria ainda possível matar a ideia de independência? Assim íamos falando, falando, falando, em Boane.
Nas cantinas de Furancungo, falam outros. De quando em vez, no meio da algazarra, circulam boatos, rumores, fragmentos de histórias do outro mundo. Por gabarolice, ou toldados pelo álcool, ou por ambas as razões, soldados de passagem fazem-se eco de massacres de negros no distrito de Tete. Uns mais recentes, outros mais antigos, mas todos com participação de torcionários da polícia política, por vezes, com o apoio de tropas da Rodésia do Sul de Ian Smith. No ar saturado do fumo dos cigarros, do cheiro a suor, do hálito a vinho, ficam a pairar nomes de lugares como Mucumbura, Marara e outros que a memória não reteve. Também o nome de um tal Chico, de apelido Kachavi, torturador negro da polícia política de Tete, circula com insistência. Chico é conhecido por “o matar todos”. Esses nomes, de lugares ou de pessoas, de algozes ou de vítimas, estão ligados a atrocidades inimagináveis tais como lançar fogo a palhotas com pessoas dentro, fuzilamento sumário de velhos, mulheres e crianças, mutilações, espancamentos, violações e, até, massacres por engano.
Entretanto, novo aerograma dá conta da necessidade da mudança dos meus pais para Portugal. Vão ser observados num hospital em Londres. Não devem regressar a Moçambique. Consigo autorização para estar com eles uns dias antes da partida. Aproveito a boleia do bimotor que nos traz o correio para seguir para Tete onde irei aguardar o voo para Lourenço Marques do dia seguinte. Não há outra cidade como Tete. Chega-se e está-se no faroeste. O sol morde, os termómetros atingem temperaturas impensáveis. Sob uma poeirada espessa que mal deixa respirar circulam viaturas militares a alta velocidade quase atropelando soldados apressados, desleixados, vindos do mato, prontos a irromper pelas portas de batentes dos bares que ladeiam as ruas em busca de cerveja e putas, ou não fosse essa a razão de ser que ali os traz após meses de castidade forçada.
O jipe que me foi buscar ao aeroporto deixa-me no Hotel Zambeze, um luxo que me concedo a pensar em ar condicionado, num banho demorado e numa refeição com direito às opções da carta do publicitado melhor restaurante do lugar. Na recepção sou informado de que o ar condicionado não funciona, mas que o quarto é excelente. É decrépito. Do chuveiro saem apenas uns pingos de água castanha. No famoso restaurante panorâmico do último andar, sugerem-me uma lagosta acabada de chegar. A lagosta, seca como palha, é devolvida à procedência. Vem um bife. Duro como corno. Mas o vinho é bom. E o avião, boa notícia, parte manhã cedo. Em Lourenço Marques, um amigo faz a que será a última fotografia da minha família, todos juntos, pai, mãe, irmão, eu próprio. Parecemos bem-dispostos.
Feito num trapo, estou de novo em Furancungo. Ao cair da tarde de um dia como os outros, pouco antes de anoitecer, a guerrilha nacionalista desencadeia um ataque furioso. Dias antes, o general Kaúlza de Arriaga, numa demonstração arrogante de poder, tinha estado de visita a uma Companhia de Comandos envolvida em operações na zona. Lembro-me de ter comentado: “Veio provar que está a ganhar a guerra, quando for embora aparece a Frelimo a provar o contrário.” Assim foi. O ataque dura dez minutos, talvez um pouco mais. Parece-me uma eternidade. Sou o oficial de dia. O barulho das explosões é ensurdecedor. Sinto medo. Os soldados alinhados a meu lado na trincheira, alguns das tropas especiais, apesar da experiência, parece também não se sentirem à vontade. Alguém do nosso lado responde fazendo fogo de morteiro. Tal como começou, tudo acaba. Sem consequências de maior. De repente. Só o solitário morro do elefante foi atingido.
Se pouco me recordo dos detalhes desse dia de há mais de cinquenta anos, nem por isso a memória deixou de reter duas coisas. Uma, a melancolia que me invadiu ao pensar na família. Outra, a chamada, via rádio, no início do bombardeamento, já com a confusão instalada, de um oficial superior instalado na messe de oficiais, a 500 metros de distância, que perguntava: “Ó nosso alferes, o que é que está aí a acontecer?” Esplêndida metáfora.
Ao fim de dois anos de Furancungo, até do Hotel Zambeze sinto saudade. Sei que da próxima vez que por lá passar, não mais voltarei. Será a última. Entretanto, quase deixei de ler, já não reparo nas buganvílias e nos jacarandás, é como se as cores tivessem esmorecido, falo pouco, o morro do elefante não me interessa e o monumento à galinha ainda menos. As hienas continuam a aparecer à noite, soltando gargalhadas sinistras, e o tipo da polícia política anda de um lado para o outro dando ideia de não ter mãos a medir. Raramente vou às cantinas. Frequento a messe de oficiais à hora das refeições. De quando em vez jogo póquer. Sou péssimo jogador. Há um tenente-coronel por quem nutro estima. Anda muitas vezes com um livro debaixo do braço, é educado, de bom trato, extremamente discreto. Nunca lhe ouço um comentário sobre os rumores que circulam cada vez com maior insistência. Um dia, pergunta-me se conheço o Crime e Castigo de Dostoievsky. Digo-lhe que sim. Ele acha extraordinário, eu também: Raskolnikov e o sentido da punição. Não dizemos muito mais. Ficamos a olhar um para o outro.
Abril de 1974: júbilo e redenção
Sou jornalista de O Comércio do Porto desde o dia 10 de abril. Fundado em meados do século XIX, é dos mais prestigiados e o mais antigo dos grandes jornais portugueses. Nele colaboraram inúmeros grandes vultos das letras e das artes como Guerra Junqueiro, João de Deus, Bordalo Pinheiro, Malhoa, Roque Gameiro, Vianna da Motta, Camilo Castelo Branco e tantos mais. O jornal fica na Avenida dos Aliados, no centro da cidade, instalado num edifício de linhas clássicas da autoria do arquiteto Rogério de Azevedo. Tem uma redação experiente, porventura, condicionada por anos de observância de rotinas censórias. Mas também tem um grupo de jornalistas mais novos, certamente mais ousados. Uns e outros recebem-me bem, disponíveis para ajudar o estagiário acabado de chegar. Estou grato a quem me proporcionou a oportunidade de cumprir um sonho antigo. Assisto, sem surpresa, ao protocolo associado ao lápis azul. Sinais do tempo. Começo a frequentar tertúlias, na companhia de colegas do meu e de outros jornais, em bares abertos noite dentro que são espaços de liberdade e cumplicidades.
No dia 25, por volta das onze horas da manhã, acordo. Vou até à varanda do apartamento. Está um belo dia de Primavera. Sempre me intrigou a presença de um pastor que por ali anda com as suas ovelhas, num descampado, não muito longe da foz do Douro, onde vivo. Há uma explicação. Em tempos, esta foi uma zona periférica, predominantemente rural. Muitas casas têm ainda pequenas hortas. Um dia em que estivemos à conversa, disse-me: sou o último.
Vou arranjar-me para mais um dia de trabalho. O meu turno começa a meio da tarde. Lembro-me que ao início da madrugada, a caminho de casa, ao passar junto do quartel-general, na Praça da República, pareceu-me haver movimento fora do habitual. Não lhe atribuí importância de maior até porque o revés do levantamento das Caldas da Rainha de 16 de março esfriara a expectativa de um golpe militar contra o regime no curto prazo. Enquanto faço a barba, ouço rádio. Estranho. Está a emitir marchas militares. Presto atenção. São lidos comunicados das Forças Armadas pedindo às pessoas para ficarem em casa. Apresso-me. Temo o pior, um golpe da extrema-direita, eventualmente liderado pelo meu velho conhecido general Kaúlza de Arriaga. Enquanto me visto precipitadamente, pego no telefone. Começo a fazer contactos. Gostaria de ter visto a minha cara naquela ocasião. Custa-me a acreditar, está em marcha uma acção armada para derrubar o fascismo. Uma coluna militar vinda de Santarém ocupara o Terreiro do Paço, em Lisboa. Respiro fundo. Saio a correr como se estivesse dentro de um filme.
Em alvoroço, procurando manter a calma, ao volante de um velho Citroen Ami 6, comprado em segunda mão, conduzo cautelosamente pelas ruas da cidade. Avanço rumo ao centro. Constato a presença de um número cada vez maior de pessoas, por vezes hesitantes, por vezes mais afoitas, que se juntam nos passeios. Pela cabeça passam-me imagens desordenadas da vertigem dos últimos tempos. São flashes. Fragmentos. Sem cronologia. Ocorrem-me frases curtas que de tanto ouvidas se atropelam não respeitando o tempo dos verbos nem os advérbios do lugar. É o sibilar de Salazar, Tomás e Caetano, são murmúrios de conversas em segredo nos cafés, palavras de ordem em manifestações, em plenários, cargas policiais em câmara livre, o eco do latejar em surdina de armas ao longe, muito ao longe. Puxo atrás a fita. Estou em Portugal há meia dúzia de meses. O meu pai faleceu estava eu ainda em Lourenço Marques a cumprir o tempo em falta do serviço militar. Já desmobilizado, no Porto, acompanhei as últimas semanas de vida da minha mãe. Eu e o meu irmão, rodeados de familiares e amigos, levamo-la para junto do nosso pai na Senhora da Aparecida, Lousada, num dia do inverno de 1973. Chovia copiosamente. Abalado, à deriva, sem meios, comecei a procurar trabalho. Voltei à universidade. Fiz novos amigos. Embrenhei-me na vida cultural.
Olhando em volta, girando o volante de um lado para o outro como quem manivela uma moviola, ensaio os primeiros passos da montagem de um filme experimental. No monitor imaginado sucedem-se as imagens. Na película há pequenas luzes que acendem e apagam. Revertem em súbitos clarões. Vejo a guerra do Yom Kippur. Fez disparar os preços dos combustíveis. Há longas filas de automóveis junto das estações de serviço. O governo decretou o racionamento. Em Santiago do Chile, o presidente Salvador Allende cai de armas na mão no bombardeamento do Palácio de La Moneda. O golpe militar, apoiado pelos Estados Unidos, coloca no poder um déspota sanguinário, Pinochet. O Palácio de La Moneda está em chamas. Da já distante vigília da Capela do Rato não há imagens. Há palavras que passam de boca em boca. Convocada para meditar sobre a paz, o que vale por dizer, sobre a guerra colonial, a vigília faz deflagrar uma espiral da repressão. As cadeias enchem-se de presos políticos. Em Londres, é possível ver que o The Times faz notícia de primeira página com o massacre de Wiriyamu, em Moçambique, perpetrado por tropas portuguesas. Correm rumores da detenção na Machava, perto de Lourenço Marques, dos padres que o denunciaram. Nas matas de Madina do Boé, o PAIGC proclama a independência da Guiné-Bissau. Ouve-se na BBC, na Rádio Portugal Livre, em Argel. Fala-se do regime do apartheid da África do Sul. De Nelson Mandela. Do Vietname. Das greves. Da fraude que foram as eleições para a Assembleia Nacional no Outono de 1973. Das associações de estudantes, todas elas encerradas à excepção de duas, uma em Lisboa, outra no Porto. Revejo em câmara lenta imagens da polícia de choque a entrar à bastonada no Café Piolho, na Praça dos Leões. Eu estava lá. Revejo a polícia montada a invadir o átrio da Faculdade de Ciências fazendo empinar os cavalos. Eu estava lá.
Deixo ficar o carro na famosa garagem de O Comércio do Porto, um projeto de arquitectura modernista. Tenho tempo. Vou a pé para a tasca onde habitualmente almoço numa viela apertada perpendicular à fachada do quartel da GNR, a cinquenta metros do Hospital de Santo António. Apesar dos apelos na rádio, a presença das pessoas nas ruas continua a crescer. Há como que o gradual nascimento de uma outra cidade, uma cidade na qual os papeis sociais estão a inverter-se. Não é a polícia a abordar as pessoas, são as pessoas a irem ter com os agentes que dão mostras de desorientação. Manifestamente, não cumprem ordens que terão recebido. Aparece uma ou outra viatura militar. São dos nossos, gritam uns festejando os soldados. Outros permanecem calados, olhando com desconfiança. Na tasca, frequentada por companheiros de todos os dias. reina a excitação. Ainda sem certezas trocam-se informações, rumores, o que se ouviu, o que se sabe de fonte segura. A coluna militar do Terreiro do Paço está agora a pôr cerco ao Quartel do Carmo onde se julga estar refugiado Marcelo Caetano. A RTP estará ocupada por um denominado Movimento das Forças Armadas. Juntando as peças, ligando antecedentes, tudo começa a fazer sentido.
Subo as escadas que conduzem à redacção. Ambiente, tenso. Hesitante. Alguém diz que é preciso ter calma, ainda não se sabe ao certo o que se passa. Uns parecem incomodados. Outros mantém uma atitude expectante. Outros, ainda, exibem largos sorrisos. Há quem se interrogue quanto a enviar ou não o material para a censura. No dia seguinte, dissipadas as dúvidas, o jornal faz uma segunda edição. Na primeira página, do lado direito, há a foto de um tanque do Regimento de Cavalaria sob aclamação dos populares, que tomara o quartel do Comando Distrital do Porto da Legião Portuguesa. Na legenda fala-se em missão cumprida. Abaixo, em grandes parangonas, lê-se, em maiúsculas, RESTAURADAS AS LIBERDADES FUNDAMENTAIS. Em 24 horas, multidões nunca vistas inundaram as ruas e uma explosão de cravos vermelhos cobriu a cidade das cores da Revolução.
O texto poderia ficar por aqui, mas tenho ainda duas ou três breves notas a fazer. A primeira é de mágoa. Lamento profundamente que os meus pais não tenham podido estar na festa. Como eles teriam gostado! A segunda nota prende-se com a vivência pessoal desse tempo tão extraordinário. Dois ou três dias após a madrugada redentora de Abril vou em serviço do jornal ao quartel-general do Porto. Encontro o tenente-coronel de Furancungo que gostava de Dostoievsky. Folgo em vê-lo, trocamos um aperto de mão, faço-lhe uma série de perguntas. Não sei responder-lhe, diz ele, discreto, educado como sempre, vai ter de falar com os oficiais que estão ali ao fundo da sala. À excepção de um major, eram todos jovens capitães e alferes. Não voltei a ver o tenente-coronel. Tenho pena. Duas ou três semanas mais tarde, não consigo precisar, de novo no quartel-general, na mesma sala, está um homem de meia-idade, estatura meã, que fala energicamente com um pequeno grupo de militares. Usa um boné à velha maneira bolchevique, tem pêra e bigode, faz lembrar Lenine. Aproximo-me do grupo. O homem do boné olha-me fixamente. Faz-se silêncio. Até que ele diz: tu és o Jorge. Ele é o irmão mais novo da minha mãe, o meu tio Carlos Costa, militante histórico do Partido Comunista Português, preso ou na clandestinidade desde o fim da adolescência até ao dia da Revolução. Vira-o pela última vez no forte de Peniche, antes da célebre fuga de 3 de Janeiro de 1960. A última nota, faço-a a contragosto. Dou um salto no tempo. Mudo de parágrafo.
Durante a campanha para as eleições legislativas de 2024 entrou-me pela casa dentro, através de uma reportagem televisiva, a porta-voz para a juventude do partido da extrema-direita. Trazia afivelada a máscara capaz de transformar um rosto agradável num pesadelo tumular, ou seja, a máscara do fanatismo, da crença absoluta em algo de transcendente gravado na pedra como se tudo o mais fosse simplesmente desprezível. Perante uma sala onde alguns faziam a saudação fascista, proclamou: “Nós sabemos que somos superiores, esteticamente, moralmente, politicamente, historicamente, nós sabemos que somos superiores.” Ela repetiu palavras de Javier Milei, presidente da Argentina. Talvez não soubesse que aquelas mesmas palavras eram, basicamente, as de Mussolini após a famigerada Marcha sobre Roma de 1922. Um século mais tarde, quando se comemoram os 50 anos da Revolução de Abril, os velhos manuais da peçonha, o fascismo, estão de volta. Em defesa da Liberdade, cada um fará o que lhe aprouver. De preferência, na rua. Sem tréguas.
Jorge Campos
Porto, 7 de abril de 2024
P.S. Este texto foi originalmente publicado, numa versão mais reduzida, na revista Ecossocialismo de Abril de 2024. Resulta de um convite que me foi dirigido para fazer um relato pessoal do meu dia 25 de Abril de 1974.
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