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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

 


Nanook of the North(1969) de Robert Flaherty: filme-concerto com Nils Petter Molvaer Foto: Cesário Alves

Como programar documentários é evidentemente uma pergunta para a qual não há uma resposta. Ou poderá haver várias, dependendo do ponto de vista e do ponto de partida. Seja como for, a reflexão sobre uma programação específica como foi a Odisseia nas Imagens talvez possa suscitar questões úteis para os programadores que queiram não apenas divulgar e dar a ver, mas também produzir pensamento e conhecimento ancorados, um e outro, no elemento imprescindível que é a memória. Esta publicação e as seguintes vão nesse sentido.

 

A Odisseia nas Imagens foi encarada com uma viagem pelo cinema, uma aventura pela descoberta, uma tela construída à semelhança de um mosaico na qual as diferentes partes deveriam ir ganhando a autonomia necessária à coesão e coerência do todo. Na verdade, a ideia da Odisseia nas Imagens nasceu de um poema do genial Konstantínos Kaváfis, o poeta grego (1863-1933) de Alexandria, intitulado Ítaca, que a seguir se transcreve na tradução de Jorge de Sena.

 

Ítaca

 

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado - não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria - nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

 

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

 

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola,

âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes o quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora,

senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

 


 Porto 2001-Odisseia nas Imagens, retrospectiva. Sessão no Cinema Batalha, em 2023. Konstantinos Kaváfis e Ítaca em fundo: a viagem de Ulisses.

 

Ora, foi assumido desde o início o intuito de fazer do documentário o eixo dominante em torno do qual deveria estruturar-se a Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Nessa altura, apesar da diversidade de iniciativas similares em toda a Europa, nenhuma parecia susceptível de servir de modelo a um propósito tão exigente e dilatado no tempo quanto se afigurava a Odisseia nas Imagens, pensada para cumprir um calendário de dois anos ao longo dos quais era suposto ser capaz de criar uma rede de parcerias indispensável à sua continuidade no futuro.

 

Por isso, logo se entendeu a necessidade de lhe conferir um carácter experimental como se de uma viagem exploratória, de uma aventura, se tratasse, com um primeiro ano mais circunscrito a uma visão essencialmente cinematográfica, assumindo, portanto, a matriz fundadora do olhar do cinema, e um segundo ano durante o qual, mantendo embora essa mesma matriz como referência, se propunha trabalhá-la em diálogo com outros modos de encarar o documentário. Esperava-se, assim, não só ganhar o público em geral para uma programação de elevada qualidade, recuperando o documentário através de episódios e obras fundamentais da sua História, mas também de promover o acesso ao público escolar de uma perspectiva do Cinema que se sabia ser, em muitos casos, dele praticamente desconhecida.

 

Nesse sentido, O Olhar de Ulisses seria como que uma espécie de parede mestra do edifício em construção. Mas, como também se depreenderá das notas dissonantes introduzidas em diferentes etapas da programação, cedo se vislumbrou a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre as diversas maneiras de encarar o documentário, tanto mais que O Olhar de Ulisses - independentemente da excelência dos filmes e da justeza da prioridade atribuída ao Cinema -, sobretudo a partir do segundo módulo da Odisseia na Imagens dava indícios de relutância quanto à possibilidade de contraponto com narrativas do presente alicerçadas em linguagens recolhendo subsídios de áreas exteriores ao cinema.

 




A lógica da programação do documentário em O Olhar de Ulisses teve como ponto de partida uma organização temporal - tal como a Odisseia nas Imagens no seu conjunto –, em função da qual se identificavam territórios fundamentais do cinema documental sem, todavia, impor qualquer espartilho, antes estimulando cruzamentos que permitissem romper com visões estritamente diacrónicas. O primeiro episódio ocupar-se-ia da História do Documentário até ao advento do cinema sonoro, chamar-se-ia O Homem e a Câmara, numa alusão a Dziga Vertov e a um tempo em que a imagem fora rainha. O segundo episódio, O Som e a Fúria, deveria cobrir a fase compreendida entre o advento do cinema sonoro e o pós-guerra, uma época crítica durante a qual a voz chegou ao documentário, muitas vezes colocado ao serviço da propaganda. O terceiro episódio, centrado fundamentalmente na revolução operada nos anos 60 do século passado, teria como núcleo duro o direct cinema, o cinéma-vérité, bem como outros movimentos precursores ou contemporâneos, dos quais o neo-realismo italiano, o free cinema britânico e a nouvelle vague francesa são exemplos. O quarto e último episódio seria essencialmente dedicado ao cinema documental da actualidade.

 

Todos os módulos da Odisseia nas Imagens, independentemente da ampla divulgação feita através da comunicação social e da edição de catálogos, seriam profusamente publicitados através da edição periódica de um pequeno jornal. Esse jornal, constituindo um guia para o público pretendia ser, igualmente, um espelho da lógica global da programação

 

Ocupando um lugar central na Odisseia nas Imagens, uma vez que para além da programação dos filmes era suposto proporcionar um conjunto de propostas conducente à reflexão sobre o documentário – a publicação de catálogos, bem como a presença de especialistas na introdução e debate das obras deveriam responder a esse propósito – O Olhar de Ulisses tem, naturalmente, prioridade na revisão crítica sobre as opções programáticas. Num segundo momento, reflectir-se-á sobre outros ciclos e iniciativas onde diversos tipos de documentários estiveram, igualmente, presentes.

 

1. O Homem e a Câmara

 

O Olhar de Ulisses I - O Homem e a Câmara principiou a 3 de Maio de 2000 com A Criança Cega (1964) de Johan Van Der Keuken, filme que coloca simbolicamente o problema do olhar através da difícil aprendizagem dos cegos na sua relação com o mundo. Prosseguiu com Louis Lumière (1961) de Eric Rohmer, no qual Jean Renoir e Henri Langlois falam das origens do cinema e retomam a questão do olhar. Seguiram-se quatro filmes de Aurélio da Paz dos Reis (1896), remetendo para as primeiras imagens do cinema português, abrindo passagem para Pela Primeira Vez (1967), um curto documentário do cubano Octávio Cortazar onde se mostra a visita do cinema ambulante a uma aldeia perdida na Sierra Maestra, cujos habitantes nunca tinham visto um filme. Cortazar centra-se nas reacções do público à projecção de Tempos Modernos (1935) de Charlie Chaplin. Os filmes seguintes Citizen Langlois (1994) de Edgardo Cozarinsky e O Olhar de Ulisses (1994) de Theo Angelopoulos completaram a introdução do Ciclo. O filme de Cozarinsky funciona como uma espécie de guia inspirador do que viria a ser uma Programação obedecendo essencialmente a critérios de Cinemateca – o exemplo de Henri Langlois seria recorrentemente invocado –, cabendo ao filme de Angelopoulos como que iniciar a busca de um olhar primordial só ao alcance do Cinema.

 


O Olhar de Ulisses (1995) de Theo Angelopoulos. Uma obra-prima do cineasta grego de cunho autobiográfico, uma espécie de balanço sobre o fim do século XX. A busca de filmes perdidos dos primórdios do Cinema ou a peregrinação pelo encontro com o olhar primordial.


  Louis Lumière (1968), uma conversa entre Henri Langlois e Jean Renoir, conduzida por Eric Rohmer. Fonte: M movie meter

Esse propósito está, aliás, de algum modo expresso no texto introdutório do respectivo Catálogo assinado pelos programadores, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia, quando recuperam uma passagem de L’homme à la caméra de Serge Daney e Louis Skorecki publicado no jornal Líbération: “Os cineastas habitam ainda um país que não figura em nenhum mapa geográfico. Porque ele engloba-os a todos. Esse país é o cinema e ainda estamos a tempo de o explorar - pelo interior.” As páginas seguintes reproduzem excertos de uma troca de correspondência entre Manoel de Oliveira e o principal responsável da Cinemateca Portuguesa João Bénard da Costa a propósito de A Carta (1999), filme de Oliveira com Pedro Abrunhosa, textos esses que incidem sobre o diálogo do cinema com as outras artes.

 

Os blocos seguintes fizeram a passagem para os filmes sinfonia e o cruzamento com as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, tal como sucede na maioria das publicações sobre a História do Documentário ou em textos de clássicos como o de Mark Cousins e Kevin Macdonald Imagining Reality, edição de 1996.

 

As sessões do dia 4 de Maio mostraram os seguintes filmes, assim ordenados: Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, Berlim, Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walther Ruttmann, O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Dziga Vertov, A Ponte (1928) de Joris Ivens, A Chuva (1929) de Joris Ivens, Images d’Ostende (1929-30) de Henri Storck e Douro, Faina Fluvial (1931-1995) de Manoel de Oliveira, na versão com música de Emmanuel Nunes. No dia seguinte: Philips Radio (1931) de Joris Ivens, Novas Terras (1934) de Joris Ivens, Las Hurdes (1932) de Luis Buñuel, Misère au Borinage (1933) de Joris Ivens e Henri Storck, Manhatta (1921) de Paul Strand e Charles Sheeler, L’Étoile de la Mer (1928) de Man Ray, Un Chien Andalou (1929) de Luis Buñuel, Une Idylle à la Plage (1931) de Henri Storck, L’Hippocamp (1934) de Jean Painlevé e La Carosse d’Or (1952) de Jean Renoir.

 


A Saída dos Operários da Camisaria Confiança (1896) de Aurélio Paz dos Reis Fonte: PICRYL  

Misère au Borinage (1933) de Joris Ivens e Henri Storck


Esta selecção, que culmina com a deriva de La Carosse d’Or de Renoir num sublinhado de exclusividade da imaginação – a fita passa-se num país inventado da América do Sul e propõe uma aproximação ‘realista’ a uma situação improvável – segue uma linha coerente em relação à qual prevalece uma ética do olhar, mesmo quando mergulha no surrealismo de Buñuel do qual se pode extrapolar, por exemplo, o sentido metafórico da célebre cena do corte da córnea do olho em Un Chien Andalou. Essa ética reflecte-se particularmente em Misère au Borinage e na sua recusa de emprestar qualquer tipo de glamour às imagens respeitantes às condições de vida miseráveis dos mineiros. Os filmes de Storck inscrevem-se numa dimensão poética, bem como os dois primeiros de Ivens, mas Misère au Borinage revela já outro tipo de preocupações. Apesar de não constar do catálogo, foi ainda exibido o Kino Pravda 21, numa referência à tradição de newsreels, na terminologia de Paul Rotha, que antecedeu Homem da Câmara de Filmar.

 

Nos dias 6 e 7 de Maio o ciclo enveredou pela exploração criativa de outra filiação clássica do filme documentário, à qual surgem genericamente associados o travelogue e as fitas de aventuras. Assim, no dia 6, as sessões começaram com filmes dos irmãos Lumière de 1896 em Roma, depois, em 1897, no Cairo, com fotografia de um dos seus mais famosos operadores, Alexandre Promio. Estes últimos serviram de pretexto para exibir de seguida Le Caire...Raconté par Chahine (1991) de Youssef Chahine, A Estação do Cairo (1958) também de Chahine a que se seguiu A Caminho do Sul (1980-81) de Johan Van Der Keuken e Tabu (1931) de Frederich W. Murnau e Robert Flaherty. No dia seguinte: Descrição de uma Ilha (1977-78) de Rudolf Thome e Cyntia Beatt seguido de dois clássicos de Robert Flaherty, Nanook of the North (1922) e Moana (1926). É significativa a escolha de Le Caire,,,Raconté par Chahine, um filme feito para a televisão, mas que dela se distancia na recusa de estereótipos e evidências, procurando antes assumir um tom reflexivo e, de algum modo, experimental.

 

Nos últimos dias 8, 9 e 10 de Maio – deixamos de lado a programação de Jean-Michel Arnold e Annick Demeule em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, enquadrada com a filosofia de O Olhar de Ulisses – o ciclo, concebido um pouco à imagem do que seria a montagem de um filme, como que cumpre uma trajectória circular, regressando ao olhar, mas culminando com um final em aberto, irónico e divertido, suscitando a questão do real e da ficção e deixando a pairar dúvidas sobre os limites da verdade e da mentira.

 


Moana (1929) de Robert Flaherty

Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/Schoedsack  

Assim, no dia 8, as sessões obedeceram ao seguinte alinhamento: In the Land of the War Canoes (1914) de Edward S. Curtis, para muitos o inspirador do chamado método Flaherty de certo modo já posto em prática neste filme; seguiram-se Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/ Schoedsack desta vez acompanhada pela jornalista e aventureira Marguerite Harrison, reportando a saga da tribo dos Bakthiari, pastores nómadas iranianos que migravam duas vezes por ano em busca de pastagens para os seus gados, Chang (1927), da mesma dupla, sobre a selva mítica da Ásia e o seus perigos e filme do qual resultaria, como corolário, King Kong (1933) igualmente de Merian Cooper e Ernest Schoedsack; a última sessão encerrava com uma nova deriva, agora O Salão de Música (1958) de Satyajit Ray onde, a pretexto do prazer da música se estabelece o confronto da decadente aristocracia feudal indiana com uma burguesia emergente e ávida de poder. Apropriadamente, a noite terminava com um concerto ao vivo de Sharmila Roy.

 

A primeira sessão do dia 9 de Maio começava com outro clássico das aventuras e viagens 90 Degrees South (1933) de Herbert Pointing sobre a trágica expedição de Scott ao Antártico e regressava à câmara de filmar com uma animação de Wladyslaw Starewicz, A Vingança do Cameraman (1911), seguida de The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton, provavelmente o primeiro filme da História do Cinema a colocar a questão dos limites da intervenção jornalística em termos da espectacularização das imagens. A segunda sessão retomava Van Der Keuken com Criança Cega 2 (1966) e fechava com Peeping Tom (1960), filme de culto de Michael Powell sobre um serial killer que regista fotograficamente a morte das suas vítimas e que é uma profunda reflexão sobre o poder do cinema e das imagens.

 

A última sessão do dia 10 compreendia a Arqueologia e Desvios do Cinema Científico e fechava com F for Fake (1975) de Orson Welles, no qual o cineasta se diverte sobre a ideia de falsificação na arte assumindo-se como charlatão...

 

F for Fake (1973) de Orson Welles

No total, excluindo os filmes programados em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, o primeiro episódio de O Olhar de Ulisses mostrou 44 filmes, assim distribuídos em função da origem: Estados Unidos da América – 10 (22,72%), França – 9 (20,45%), Holanda – 7 (15,90%), Bélgica – 3 (6,81%), URSS – 3 (6,81%), Portugal – 2 (4,54%), Reino Unido – 2 (4,54%), Alemanha – 2 (4,54%), Espanha – 1 (2,27%), Egipto – 1 (2,27%), Cuba – 1 (2,27%), Índia – 1 (2,27%), havendo ainda a considerar duas co-produções, uma Egipto/França – 1 (2,27%) e outra Grécia/França/ Itália – 1 (2,27%).

 

Para uma melhor compreensão da lógica da programação de O Olhar de Ulisses – veremos adiante como o ciclo iria evoluir no sentido do cinema de arte e ensaio preconizado, no essencial, pela política dos autores dos Cahiers du Cinéma –, independentemente da origem dos filmes, importa proceder ao escrutínio das tendências dominantes nos documentários exibidos em função de parâmetros conhecidos. Esses parâmetros tanto convocam critérios da historicidade quanto da teoria do documentário. Assim, as categorias de Rotha a propósito da tradição do documentário pareceram apropriadas no sentido de situar as áreas em que se inscrevem os diferentes filmes anteriores ou imediatamente posteriores ao advento do cinema sonoro. No entanto, essas categorias seriam, porventura, desajustadas para filmes posteriores, mais complexos, combinando diferentes formas narrativas. Neste caso, considerou-se preferível recorrer aos modos de Bill Nichols e, pontualmente, a William Guynn e Richard Plantinga, sem perder de vista que um mesmo filme integra, normalmente, uma variedade de vozes e de modos, podendo igualmente corresponder a diferentes tradições em simultâneo. Em qualquer dos casos, porém, sublinha-se que não se trata de avaliar qualitativamente os filmes e, muito menos, a Programação do ciclo no seu conjunto, mas apenas de encontrar elementos que ajudem a entender melhor o percurso feito, quer à luz de contributos da teoria do documentário, quer dos critérios delineados para o conjunto da Odisseia nas Imagens.

 

No caso do presente episódio, retiramos do âmbito da análise os filmes dos pioneiros do cinema, a animação e as obras habitualmente identificadas como sendo de ficção. Apesar do risco de simplificação de questões complexas, desde logo os critérios inerentes à lógica da Programação no seu conjunto, mas, também, as respeitantes ao que é hoje uma questão central da teoria do documenário, ou seja, a dicotomia documentário/ficção, a atenção incidiu unicamente sobre obras historicamente identificadas como documentários. Ficaram, assim, de fora: Os filmes de Paz dos Reis, os filmes dos operadores Lumière, O Olhar de Ulisses, King Kong, O Salão de Música, A Vingança do Cameraman, The Cameraman, La Carosse d’Or e Peeping Tom.

 


 Bill Nichols Foto: Itzel Martínez del Cañizo 

 

 Paul Rotha Fonte: National Portrait Gallery

Aplicando as categorias de Rotha parece razoável a seguinte colocação dos filmes:

 

tradição naturalista ou romântica: Tabu, Nanook of the North, Moana, In the Land of War Canoes, Grass: a Nation Battle for Fight e Chang;

 

tradição realista com filiação avant-gardeRien que Les Heures, Berlim, O Homem da Câmara de Filmar, A Ponte, Chuva, Images d’Ostende, A Propos de Nice, Douro, Faina Fluvial, Philips Radio, Novas Terras, Las Hurdes, Manhatta, L’ Étoile de Mer, Un Chien Andalou, Une Ydylle à la Plage e L’ Hippocampe;

 

tradição de newsreels: Kino Pravda 21 e O Homem da Câmara de Filmar; tradição da propaganda: Kino Pravda 21, O Homem da Câmara de Filmar, eventualmente Misére au Borinage, cujos autores, influenciados pela Revolução de Outubro e pelo cinema soviético fizeram a transição das vanguardas artísticas para os propósitos políticos e sociais.

 

A maioria destes filmes poderia caber também nos modos poético e reflexivo de Nichols. O mesmo poderia dizer-se dos dois filmes de Van Der Keuken sobre as crianças cegas. Os dois filmes de Chahine sobre o Cairo, Descrição de uma Ilha, A Caminho do Sul e Louis Lumière e F for Fake são predominantemente reflexivos. O cubano Pela Primeira Vez privilegia a observação e Citizen Langlois é expositivo. Desta cartografia resulta evidente a prioridade atribuída a um cinema de dominante poética, no sentido aristotélico, indissociável de elevado padrão de exigência estética.

 

Do conjunto de filmes apresentados ressalta a reduzida presença do cinema soviético - que nesta fase era de cunho essencialmente documental - com propósitos sociais e de propaganda ligados às vanguardas artísticas, constituindo, porventura, o mais estimulante laboratório cinematográfico do período anterior ao advento do cinema sonoro. Todos os filmes do ciclo – ou quase todos – eram acompanhados por textos publicados no catálogo O Homem e a Câmara de 336 páginas: “inéditos ou reedições, textos teóricos, críticos, entrevistas, cartas ou ainda poemas pretendendo “acompanhar as projecções dos filmes, mas também prolongá-las tornando-se um instrumento de reflexão.” Autores dos textos originais foram frequentemente destacados para introduzir o debate sobre os filmes durante as sessões.

 

Para este primeiro módulo de O Olhar de Ulisses foram convidados, para além de especialistas e cineastas portugueses, um número significativo de personalidades francófonas, nomeadamente Alok Nandi (autor e realizador), Gerald Collas (produtor de documentários), Gerald Leblanc (poeta e crítico de cinema), Jean-Louis Comolli (realizador e ensaísta), Jean-Michel Arnold (director do CNRS Images/medias), Olivier Smolders (realizador), Saguenail (realizador) e Serge Meurant (poeta, responsável do Festival de Cinema Documental “Filmer à tout Prix”).

 

Tanto quanto uma leitura do catálogo permite apurar, naquilo que respeita aos textos respeitantes aos filmes, excluindo, portanto, introduções, correspondência epistolar e a parte reservada às Imagens da Ciência, há 29 originais, na sua maioria curtas, mas pertinentes notas sobre os filmes em apreço, e 24 reedições cuja proveniência é, na maioria dos casos, ou as Folhas da Cinemateca Portuguesa ou publicações francesas ou em língua francesa, com destaque para os Cahiers du Cinéma. Os textos de pendor mais teórico são fundamentalmente dois, um sobre Vertov e O Homem da Câmara de Filmar intitulado O Futuro do Homem da autoria de Jean-Louis Comolli, originalmente publicado no número de Verão da Trafic nº 15, o outro de José Manuel Costa intitulado Grandeza de Flaherty publicado pela primeira vez no catálogo Robert Flaherty da Cinemateca Portuguesa em 1984.


 




 


Continua

 

 


 

 

 

 

 

Atualizado: 11 de nov. de 2023


Douro, Faina Fluvial (1931) de Manoel de Oliveira

Que a Programação da Odisseia nas Imagens do Porto 2001 foi de uma amplitude sem paralelo no que ao Cinema, Audiovisual e Multimédia diz respeito à cidade do Porto é hoje uma evidência. Sobre o impacto que teve haverá, certamente, diferentes opiniões, muitas vezes formuladas, diga-se em abono da verdade, sem conhecimento de causa. Na próxima publicação falaremos disso, do que foi e do que poderia ter sido, através da publicitação daquilo que é mensurável, mas também daquilo que não o sendo talvez permita formular melhores hipóteses no campo das tais Pontes Para O Futuro da Capital Europeia da Cultura.


Para já, fica um resumo de algo já dito por forma a clarificar o sentido de work in progress assumido desde a primeira hora, sentido esse que obrigou, em função das dinâmicas inerentes, às mudanças de rumo e às correções indispensáveis no quadro de referências previamente estabelecido.


F For Fake (1973) de Orson Welles, um filme indispensável quando se lida com documentários. Fonte: BFI

Lembrar ainda que a Odisseia nas Imagens privilegiou o Cinema Documental, bem como o Cinema de Animação e as Curtas-Metragens, procurando estimular políticas culturais associadas à Inovação e Desenvolvimento e tendo como pano de fundo a vontade de melhorar a produção em nichos de mercado.


Os quatro módulos da Programação são a seguir sumariamente explicitados: O Homem e a Câmara; O Som e a Fúria; Apocalípticos e Integrados; Como Salvar O Capitalismo - Outras Paisagens.


O Homem e a Câmara


O primeiro módulo da Programação - O Homem e a Câmara - decorreu de 2 a 10 de Maio de 2000. Anteriormente, por razões de ordem simbólica e dada a importância atribuída ao ensino e à formação, principiara na Universidade Católica a 1ª Pós-Graduação em Documentário e Curtas Metragens de Ficção e tivera lugar uma iniciativa da Coordenação Europeia de Festivais Europeus denominada 15x15: O Património Cinematográfico Europeu. Esta juntou diversos realizadores e especialistas entre os quais André Delvaux, Paulo Rocha e o representante da Coordenação François Ballay. Ambas as iniciativas resultavam de protocolos assinados pela Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura em nome da Odisseia nas Imagens.


O evento inaugural foi agendado para o Coliseu do Porto, a maior sala de espectáculos da cidade: o filme O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Dziga Vertov com partitura original da Cinematic Orchestra executada ao vivo.


O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Dziga Vertov com música ao vivo da Cinematic Orchestra. A crítica foi unânime. Para citar apenas dois exemplos, no Diário de Notícias, Marcos Cruz escrevia: “Uma noite mágica caiu sobre o Porto fazendo com que todos os caminhos do encantamento fossem dar ao Coliseu”. No Público, Amílcar Correia: “Sete décadas separam O Homem da Câmara de Filmar realizado por Dziga Vertov em 1929 e Motion a banda sonora para um filme imaginário que a Cinematic Orchestra editou no ano passado. Apesar da distância temporal e estética entre as duas obras, a equipa responsável pela programação audiovisual do Porto 2001 vislumbrou eventuais pontos de confluência entre o vanguardismo do cineasta russo e o jazz heterodoxo do colectivo de Jason Swinscoe. E o resultado não podia ter sido mais surpreendente”.


Foi também o início do primeiro módulo de O Olhar de Ulisses, em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, cuja programação deveria incidir essencialmente sobre o filme documentário, mas investindo também em olhares cruzados, por vezes inesperados, com filmes marcantes do cinema de autor. Este ciclo, de pendor manifestamente cinéfilo, adoptou o título do filme homónimo do grego Theo Angelopoulos, realizado em 1995, sobre a viagem de um cineasta (Harvey Keitel) em busca daquele que seria o filme seminal da cinematografia helénica. O Olhar de Ulisses transformar-se-ia, desde logo, numa referência do conjunto da Programação.



No seu primeiro catálogo, a par de informações detalhadas sobre filmes e participantes, explicitavam-se os propósitos da Odisseia nas Imagens:

“A programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura é concebida como um percurso durante o qual o dado a ver exige a participação, promove a descoberta e estimula a aventura. É um desafio centrado na Imagem enquanto elemento de revelação. Entendida em termos dinâmicos, a Programação é encarada tanto como objecto de prazer, quanto como elemento detonador do saber e do saber fazer. Nela cabe, naturalmente, em primeiro lugar, a cidade de imagens que o Porto sempre foi e, daí, o olhar retrospectivo que permite reconhecer a sua identidade. Mas essa cidade de imagens, sendo também um lugar de futuro, exige, de igual modo, um olhar prospectivo, ousado e universal. (...) À cidade caberá sempre decidir, em função do desafio que lhe foi lançado, sobre os contornos e os limites da mudança que lhe é proposta.”


O Homem e a Câmara, uma declinação do título do filme tese de Dziga Vertov O Homem da Câmara de Filmar (1929), pretendia reeditar, actualizando, a cine-sensação do mundo enquanto factor de descoberta e elemento de elucidação do real, sendo que esse real seria sempre o real imaginado. Reportando sobre a gramática emergente das imagens em movimento e da sua relação com o olho, este programa contemplou uma componente de Imagens da Ciência da autoria de Jean-Michel Arnold, responsável do Centre Nationale de la Recherche Scientifique-Images/ Media, de Paris, a quem foi dada carta branca. Sobre a Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, dizia Jean-Michel Arnold em texto publicado no catálogo:


“Enquanto que os operadores da Société Lumière – meio jornalistas, meio fotógrafos – descobriam a grande reportagem, os cientistas, ao apoderarem-se do cinema, afirmaram a modernidade deste. (...) O programa proposto tentará, pois, contar por imagens esta maravilhosa aventura: a invenção do cinema (instrumentos e linguagem) pelos cientistas. É formado por partes de documentos raros e preciosos, conservados nos institutos de investigação ou nos arquivos internacionais especializados. Estas obras são, na sua maioria, desconhecidas do grande público e, muitas vezes até, da comunidade científica apesar de, no início do século, terem sido fonte de investigação.”


A cineasta Teresa Garcia que juntamente com Pierre-Marie Goulet e a Cinemateca Portuguesa esteve na programação de O Olhar de Ulisses.

Este primeiro módulo teve ainda um filme concerto, Berlim, Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walter Ruttmann com música ao vivo de DJ Spooky & Freight Elevator Quartet, bem como uma extensão do Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde denominada O Nosso Século. Tratando-se da primeira grande iniciativa da Programação Cultural do Porto 2001 a Comunicação Social dedicou-lhe relevante espaço. De um modo geral, as apreciações foram positivas. A título de exemplo, na Visão, João Mário Grilo escreveu: “Com um arriscado, mas imaginativo, figurino de programação, começou, no Porto, a Odisseia nas Imagens, o programa audiovisual da Capital da Cultura.” Escrutinadas dezenas de recortes de jornais da época, as reservas surgiram apenas em relação ao modo como DJ Spooky equacionou a partitura para Berlim, Sinfonia de uma Cidade.


(Para informação detalhada sobre o primeiro módulo ver neste blogue: Porto 2001 - Odisseia nas Imagens VI: O Homem e a Câmara 1; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens VI: O Homem e a Câmara 2)


DJ Spooky ao vivo em Berlim, Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walter Ruttmann

ANEXOS









O Som e a Fúria


O segundo módulo O Som e a Fúria, cujo núcleo principal decorreu entre 17 e 25 de Setembro de 2000, mas que em rigor se diversificou em iniciativas até meados de Março de 2001, poderia ter tomado de empréstimo o título da obra homónima de William Faulkner, mas a verdade é que foi a pensar no II capítulo da História do Documentário de Erik Barnow que se chegou a essa designação.


No catálogo de O Olhar de Ulisses, igualmente intitulado O Som e a Fúria, escrevia-se:

“Se o primeiro módulo O Homem e a Câmara remetia para as teses vertovianas da cine-sensação do mundo no quadro de uma gramática emergente das imagens em movimento, agora, em O Som e a Fúria, a elucidação e organização do real apontam para um conjunto de sinais, bem com das regras de articulação desses mesmos sinais, relacionados quer com o olho, quer com o ouvido.”



Como se depreende, este módulo refletiu sobre a introdução do som no Cinema, em particular no cinema documental, e das suas múltiplas consequências. Nele iria entrar, também, o primeiro texto de fundo sobre a questão do filme documentário da autoria de João Bénard da Costa intitulado Os filmes que nos vêem/ os olhos que nos filmam. Contestando premissas teóricas da ideia do documentário, desvalorizando os filmes do movimento documentarista britânico ou simplesmente destruindo, por exemplo, os filmes de Joris Ivens, Bénard da Costa concluía, dizendo: “Este texto, muito provavelmente, vai arranjar-me mais inimigos do que todos quantos escrevi na minha vida.”


Metropolis (1927) de Fritz Lang. O Som e a Fúria teve já uma Programação bastante diversificada. Incluía o Fantasporto (já na fase de transição para o terceiro módulo, Apocalípticos e Integrados, porque, em rigor, lhe coube inaugurar oficialmente a Odisseia nas Imagens no ano 2001), uma primeira grande retrospectiva de cinema de animação dos Estúdios Aardman, um filme-concerto, Metrópolis (1925-26) de Fritz Lang com música ao vivo de MuteLifeDept., o colóquio Tendências do Audiovisual Europeu, a estreia mundial da série Estórias de Duas Cidades, iniciativas preliminares do Museu da Pessoa e ainda um número significativo de workshops e de acções de formação.

O Som e a Fúria espelhava já, por um lado, as dinâmicas anunciadas na fase de preparação, mas não deixando, por outro lado, de revelar os primeiros indícios de contradições ou, pelo menos, de diferentes concepções sobre a História e Teoria do Documentário, cujas repercussões se fariam sentir nos módulos seguintes. Um primeiro sinal terá sido o artigo mencionado de Bénard da Costa. Outro, a introdução de workshops sobre o documentário de televisão, naturalmente ausente de O Olhar de Ulisses, mas cuja relevância no plano das relações institucionais, nomeadamente com a RTP e as universidades, não podia ser ignorado.


Esse seria, aliás, também, um ponto de partida para a discussão do lugar do filme documentário na programação televisiva, tanto mais que, em simultâneo, era lançada uma iniciativa denominada Tendências do Audiovisual Europeu na qual, a par do papel do serviço público de televisão encarado numa perspectiva de descentralização, se procurava introduzir o debate em torno de nichos de mercado pensados em função dos documentários, curtas-metragens e cinema da animação.



Numa entrevista ao Jornal de Notícias de 7 de Dezembro de 2000, Manuela Melo, a responsável pelo conjunto da Programação Cultural do Porto 2001 falava até da possibilidade de um grande centro de produção audiovisual e admitia a hipótese de criação de um Media Park, afirmando a determinada altura:

“Nos últimos anos criou-se uma dinâmica que faz com que haja cada vez mais cineastas, actores, técnicos e outros profissionais que, também pelo apoio logístico conseguido, se vão valorizando. O audiovisual, nesta altura mais do que nunca, sintetiza uma série de expressões artísticas. E, para nós, não interessa apenas a sobrevivência de todas elas, mas também a possibilidade de criar emprego qualificado e estável. A aposta da Porto 2001 nesta área foi lançar desafios e proporcionar meios, em termos de acções de formação, que pudessem oferecer alguma coerência a este conjunto disperso de coisas.”



Na mesma linha de pensamento, no final do ano 2000, o relatório do Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001, ao fazer o balanço do trabalho desenvolvido até então, avançava um prognóstico, bem como algumas condições para a sua concretização:

“Através do envolvimento universitário, das parcerias institucionais que têm vindo a ser levadas a cabo, nomeadamente com a Cinemateca Portuguesa e com o serviço público de Televisão, e dos múltiplos contactos internacionais já estabelecidos, o Porto passará a ter condições para se afirmar de uma forma progressiva e sustentada como uma Cidade dos Media. Para tanto, a par da ligação dos eventos programados a uma lógica de produção, entende-se como fundamental a abertura a novas iniciativas tendentes a fomentar actividades empresariais capazes de gerar negócios orientados em função da identificação de nichos de mercado.”


O Som e a Fúria teve com convidada Marceline-Loridan Ivens, a viúva de Joris Ivens. Ente muitos outros foram também convidados Alberto Seixas Santos, Antoine De Baecque, Dominique Paini, Fernando Lopes, Gerald Collas, José Manuel Costa e Pedro Costa. Fonte: DN

Em função da experiência adquirida, do trabalho realizado e do feedback proveniente tanto de parceiros externos quanto do interior da própria Capital da Cultura, o ano de 2000 terminava com legítimas expectativas, mas deixava no ar algumas questões sobre os conteúdos, das quais resultava evidente a necessidade de alargar e diversificar a Programação com novos ciclos e iniciativas como, aliás, se destacava no relatório de balanço mencionado.


De um modo geral, a imprensa, sem deixar de referir os problemas existentes, nomeadamente os atrasos verificados quanto à Casa da Animação, reflectia uma atitude positiva e, embora mostrando-se pouco sensível a eventos menos espectaculares do ponto de vista mediático, traçava um quadro optimista para o ano de 2001.


(Para informação detalhada sobre o segundo módulo ver neste blogue: Porto 2001 - Odisseia nas Imagens VI: O Som e Fúria 1; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens VI: O Som e Fúria 2)




ANEXOS














Apocalípticos e Integrados


O terceiro módulo da Odisseia nas Imagens, que decorreu entre 14 de Março e 19 de Julho de 2001, adoptou a designação de Apocalípticos e Integrados. Num texto introdutório do catálogo de O Olhar de Ulisses remetido para as últimas páginas, afirmava-se:


Apocalípticos e Integrados, o clássico de Umberto Eco sobre a cultura de massas publicado em 1964 é hoje muito mais do que um título: é uma expressão recorrente em função da qual se perspectivam posições antagónicas a respeito do modo de relacionamento do homem com o mundo e dos homens entre si. Do lado do Apocalíptico, perfila-se a insubmissão: subjaz ao conceito um intuito redentor. Do lado do Integrado, emerge o conformismo: o paradigma é a norma.”




Reportando a Eco:


“O Apocalipse é uma obsessão do dissenter, a Integração é a realidade concreta daqueles que não dissentem”. É isto que fundamentalmente nos interessa, mas entendido num sentido literal que se não prescinde do quadro de referências do debate da época sobre a cultura de massas também não faz dele, longe disso, o centro das preocupações do 3º módulo da Odisseia nas Imagens.”


Acrescentava-se:


“Por exemplo, a partir da exposição da Magnum a propósito da rodagem de Misfits, de John Huston, é possível empreender um percurso através do qual seguramente se deparam muitos dos temas abordados não apenas por Eco, mas também por Morin ou Barthes, como sejam o Olimpo das estrelas de cinema ou o lugar do mito no quotidiano. Mas para além desse catálogo do óbvio importa sobretudo alargar a dimensão conotativa de Apocalípticos e Integrados a outros territórios, seja no domínio da relação entre o eu e o outro, que é uma das entradas da Programação do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura e que tem expressão em ciclos como os de Visconti e Errol Morris, seja na esfera do trabalho de criação, designadamente quanto às linguagens de ruptura da tecnologia digital, seja, ainda, em torno dos temas das masterclasses que integram os Lugares da Imagem.”


Um filme como Misfits (1961) realizado por John Huston, com argumento de Arthur Miller, numa altura em que os estúdios começavam a investir na produção de séries televisivas, é um exemplo de experimentação à margem das grandes produções. Pela sua circunstância, relevância temática e conteúdo icónico, pareceu especialmente indicado para abrir um debate necessário. O mesmo é aplicável à exposição da Magnum com 48 fotografias de oito fotógrafos (Cornell Capa, Eve Arnold, Henri Cartier-Bresson, Bruce Davidson, Elliott Erwitt, Ernst Haas, Erich Hartmann, Inge Morath e Dennis Stock) respeitantes à rodagem do filme cujos principais protagonistas eram Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift. Por razões semelhantes se justificava a exposição de fotografias de Gerard Malanga e Andy Warhol, bem como o ciclo de masterclasses designado por Lugares da Imagem, sempre com lotações esgotadas, no qual participaram Joan Fuentecuberta, Margarida Ledo Andión, António Pedro Vasconcelos e Román Gobern.


Portanto, ter tomado de empréstimo o título da obra de Umberto Eco obedeceu a razões de vária ordem, todas elas convergindo no sentido de explicitar plenamente os intuitos previamente delineados. Assim, pela primeira vez, um módulo da Odisseia nas Imagens deixava de ter um título comum a O Olhar de Ulisses, cuja designação - A Utopia do Real - aparecia em sub-título. Sem retirar importância à iniciativa apoiada pela Cinemateca Portuguesa, na verdade valorizando-a posto que ficava com maior autonomia, chamava-se a atenção para o carácter multidisciplinar da Programação, até então quase exclusivamente centrada no Cinema, e procurava-se, não só chegar a novos públicos, mas também ir ao encontro de expectativas reiteradamente feitas sentir por outros parceiros da Odisseia nas Imagens.


Em suma, se, por um lado, Apocalípticos e Integrados recuperava um determinado tempo histórico - os anos 60 - por outro, investia num olhar contemporâneo, sem complacência e sem nostalgia, por forma a evitar a tentação de alimentar mitos instalados, procurando, antes, proceder a uma interpelação no quadro dos desafios da arte e comunicação do novo milénio.


Lugares da Imagem. Ocupando a imagem um lugar central no mundo contemporâneo: “Que relação estabelecemos nós com as imagens? Como contribuem elas para a construção da realidade e o conhecimento do mundo? E o olhar? Que códigos subjazem às modalidades discursivas que remetem para o olhar? E não convergem estas interrogações para o plano da cidadania? E da Arte?”


Nesse sentido, foram programadas múltiplas iniciativas no âmbito das artes digitais, bem como duas grandes retrospectivas. Uma, questionando o cinema moderno a partir de uma das suas figuras de referência, Luchino Visconti, que se dividia pelos dois últimos módulos da Programação, sobrando para o módulo final O Leopardo (1963) destinado a encerrar simbolicamente a Odisseia nas Imagens. A outra, de Errol Morris, uma novidade para o público português, cujos filmes não com os critérios de O Olhar de Ulisses.


Quanto a Violência e Paixão: os Filmes de Luchino Visconti, ciclo organizado em colaboração com a Scuola Nazionale de Cine de Roma e a Cinemateca Portuguesa, procurou-se, antes de mais, dar a conhecer a um público mais vasto e, sobretudo, às novas gerações, um autor controverso, cujos filmes foram objecto de acesa discussão e de avaliações contraditórias, demonstrando, nessa medida, a contingência dos critérios do gosto. Talvez por isso, fora dos círculos cinéfilos, Visconti permanecia ainda relativamente mal conhecido em Portugal.


Retrospectiva. Cartaz de La Terra Trema (1948) de Luchino Visconti. “Alguns dos seus filmes anteriores a 1974 não estrearam em Portugal, tendo acontecido mais que uma vez a sua apresentação pública com cortes da censura. Para tanto muito contribuiu a sua filiação no pensamento marxista. Mas é bom não esquecer que estamos perante um cineasta sem dogmas, nos antípodas do panfletário que subverte o primado da arte para sustentar o jogo da batota ideológica. Por isso, quando entrou em ruptura com o Partido Comunista Italiano, também não faltou quem pretendesse colar-lhe o labéu de fascista. Agora, de uma forma mais serena, a obra completa de Visconti é dada a ver tal qual é: uma profunda reflexão sobre o Homem e sobre a História de uma assombrosa e, por vezes, pungente beleza.”

The Thin Blue Line (1988) de Errol Morris. “Uma Programação aberta, como esta, para além de atender à diversidade dos públicos, não pode deixar de ser interpelativa e provocatória. Por isso, neste capítulo da Odisseia nas Imagens (...) procurou jogar-se um jogo de contrários quer no plano da diversidade das abordagens temáticas, quer no plano das linguagens que suportam os discursos propostos. Será Morris um produto da cultura de massas? E será apocalíptico, porque tudo põe em causa, ou, pelo contrário, será integrado na medida em que os seus filmes suscitam a adesão do grande público e parecem responder a uma procura que se identifica com as estratégias desenvolvidas no contexto dos dispositivos da televisão? Quem é, afinal, Errol Morris?”

Além de diversas outras iniciativas, Apocalípticos e Integrados contou participação desenhada para o efeito do Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde, bem como duas iniciativas com a RTP e uma com a Federação Internacional de Cineclubes. No primeiro caso tratava-se de dar seguimento à política de apoio a áreas de intervenção estratégicas como eram as curtas-metragens. Quanto à RTP, dado o intuito de prosseguir o debate quer em torno da descentralização do serviço público de televisão quer do lugar do documentário na programação, foram integradas na Programação duas iniciativas: a Mostra Atlântica de Televisão (MAT) e o CIRCOM.



Habitualmente organizado pela RTP/Açores o MAT era um festival de documentários de Televisão tendo o mar como temática central. Realizava-se anualmente nos Açores com o apoio do governo regional, nele participando habitualmente todos os principais operadores de televisão europeus, públicos e privados, nomeadamente a BBC, RAI, TVE, FR3, televisões públicas escandinavas, bem como canais temáticos, como o Arte e produtoras especializados, como a Thalassa. Havia ainda uma presença significativa dos países africanos de língua oficial portuguesa e do Brasil. No âmbito do protocolo assinado entre a Capital Europeia da Cultura e a RTP o MAT 2001 teve lugar no Porto e nele discutiu-se, efectivamente, com repercussão na comunicação social, O Espaço Regional no Contexto Europeu. Já a reunião do CIRCOM, fechada sobre si própria, não teve qualquer ressonância.



Quanto a O Olhar de Ulisses, obedecendo a sua programação a uma ordem temporal dos principais episódios da História do Documentário, cruzando embora diferentes obras de autor deslocadas dos espaços diacrónicos de referência, também a ideia de Apocalípticos e Integrados parecia poder ser explorada, tanto mais que permitia enquadrar as inovações narrativas resultantes das tecnologias de som e imagem desenvolvidas a partir do final dos anos 50 que foram determinantes para o aparecimento de uma geração de iconoclastas nos Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido. Contudo, o ciclo optou por uma outra designação, aliás, igualmente coerente com o espírito da época e, porventura, mais de acordo com uma abordagem estritamente do domínio da cinefilia: A Utopia do Real.


Finisterra de Jean Epstein (1929). Do catálogo Utopia do Real: “A Utopia do Real propõe filmes que questionam a relação do cinema com o real uma vez que, cronologicamente, a programação aborda um período particularmente rico em que se verifica, por exemplo, o reforço da utilização do não actor (Rouquier, Visconti), a deslocação do cinema para as áreas urbanas populares deixando as princesas de lado para filmar os operários e os marginais (Rogosin, Free Cinema) etc. O confronto com outros filmes sensivelmente do mesmo período, mas com abordagens radicalmente diferentes (Pollet, Reis, Pelechian) permite descobrir outros modos de revelação do real, seja através do recurso à poesia, seja através da própria ficção.”

Este módulo foi amplamente noticiado recolhendo referências positivas em toda a imprensa. Os Cahiers du Cinema colocaram on line no seu sítio a programação de O Olhar de Ulisses, na verdade excelente, e da qual se falará em detalhe a partir da próxima publicação. Na televisão, a RTP proporcionou uma visibilidade sistemática à Odisseia nas Imagens através do programa diário sobre a Capital Cultural acordado nos termos do protocolo assinado com a Sociedade Porto 2001.


Fernando Lopes, sempre presente em A Odisseia nas Imagens. O seu filme Cinema (2001), uma homenagem a Aurélio Paz dos Reis, abriu o ciclo O Olhar de Ulisses - Utopia do Real. Fonte: esquerda.net

Algumas lições foram igualmente extraídas. Como se previra, uma programação delineada nos termos em que esta o estava a ser corria o risco de assumir contornos imprevistos em função das dinâmicas que ela própria ia criando. Uma das dificuldades resultava da necessidade de dotar o modelo de organização da flexibilidade adequada aos ajustamentos tidos por aconselháveis. Isto, também, porque o desenvolvimento de algumas iniciativas acabou por ser consequência de uma receptividade sempre crescente em relação à Programação – muitos eventos como O Olhar de Ulisses, os filmes concerto, as masterclasses de Os Lugares da Imagem e o ciclo Visconti, para citar apenas alguns, tiveram lotações esgotadas ou perto disso – o que terá contribuído para múltiplas novas solicitações por parte de parceiros e agentes sociais e culturais.


(Para informação detalhada sobre o terceiro módulo ver neste blogue: Porto 2001 - Odisseia nas Imagens VII: Apocalípticos e Integrados 1)



ANEXOS












Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens



O último módulo da Odisseia nas Imagens decorreu em vários espaços da cidade entre 10 de Setembro e 17 de Novembro de 2001. Abriu simbolicamente com o documentário O Porto da minha Infância (2001) de Manoel de Oliveira e obedecia às orientações traçadas num texto introdutório denominado Pensar Glocal, Projectar o Futuro se afirmava:


“Obedecendo a uma estratégia de criação de novos públicos, de dinamização do debate em torno das questões da imagem e dos novos modos de significar, de reflexão a propósito de um sector audiovisual cuja afirmação regional repercute em termos da afirmação global da realidade local, a Programação foi sendo ampliada e diversificada de módulo para módulo, aliando a componente lúdica a um quadro conceptual exigente, dando a ver aquilo que habitualmente não é visto e questionando aquilo que habitualmente não é questionado.”




O texto prosseguia em jeito de balanço dos módulos anteriores:


“Assim, ao mesmo tempo que no ciclo O Olhar de Ulisses, em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, se fazia a História do Documentário e se mostrava o Grande Cinema, eram dados incentivos às produções escolares e lançados numerosos ateliers, workshops e masterclasses nas áreas do Cinema, da Televisão e do Multimédia, todos eles com pedidos de inscrição muito superiores às vagas disponibilizadas. Retrospectivas de autor permitiram revisitar Visconti e dar a conhecer Errol Morris. Ciclos temáticos no domínio do digital e das imagens em 3D, instalações e filmes-concerto, a partir dos quais se projectou um olhar renovado sobre os clássicos, deram corpo a um olhar experimental. Relevando o papel estruturante dos festivais, assumindo a indispensável ligação às universidades e apontado o caminho para uma política local de incentivo à produção e exibição de documentários, animação e curtas-metragens de ficção abriram-se pistas para o futuro.”


Adiante:


“Ponto de encontro de realizadores, produtores, operadores de televisão e outros agentes culturais, a Odisseia nas Imagens foi estruturada a pensar numa política virada para a identificação e aposta em nichos de mercado assente em critérios de racionalidade económica e de excelência ao nível do discurso. É uma forma de pensar local e agir global. É a política do glocal. Ou seja, estes nichos de mercado não se esgotam em produções de difusão limitada, antes são encarados como parte integrante de um mercado consequente, por um lado, da segmentação e especialização televisivas, as quais abrem novas janelas de oportunidades e, por outro, do impacto produzido pelos festivais internacionais de cinema, televisão e artes digitais nas indústrias culturais e no tecido económico dos países da União Europeia.”



Em suma, em função do trabalho desenvolvido nos dois anos anteriores, das parcerias estabelecidas e do processo de internacionalização levado a cabo, caminhava-se no sentido de dar forma a um festival de novo tipo, cuja presença ficaria assinalada não apenas através de uma grande iniciativa anual fortemente mediática com a duração de uma semana, mas também através de iniciativas escalonadas ao longo do ano resultantes do acordo com os vários parceiros. Foi nesta altura que se chegou a acordo com a RTP por forma a promover uma extensão em antena da Odisseia nas Imagens, que, pela primeira vez, se colocou a possibilidade de uma colaboração regular com a Cinemateca Portuguesa com o intuito de trazer pelo menos parte da sua programação ao Porto, que se intensificaram as acções de formação e que se começou a trabalhar com as universidades em cursos de pós-graduação em documentário.


Um Festival de novo tipo. O modelo do festival Odisseia nas Imagens ficou definido no último módulo Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens: seria centrado no documentário e nas artes digitais apostando, em simultâneo, na ocupação de múltiplos espaços, de modo a tirar partido de factores de proximidade e das capacidades logísticas da rede de parcerias, entretanto concretizadas; teria uma forte componente pedagógica constituída, nomeadamente, por masterclasses e workshops, e faria da excelência o critério exclusivo da sua programação de ciclos de cinema clássico, retrospectivas de autor, ciclos temáticos sobre a actualidade, fórums de reflexão, trabalhos experimentais e, naturalmente, também, de um sector competitivo no qual se enquadraria uma secção de filmes de escolas. Os custos seriam relativamente avultados, mas todo o trabalho de base estava praticamente concluído e tudo indicava, da parte dos poderes públicos, o apoio à continuidade da Programação da Capital Europeia da Cultura após 2001, parecendo igualmente viável a obtenção de patrocínios.

Sobre Como Salvar o Capitalismo propunha-se a seguinte entrada:



“No último quartel do século XX, o que restava da utopia caminhou ao lado de regimes de mãos de ferro, a humanidade envolveu-se em sanguinolentas carnificinas e o homem conheceu um desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes, avançando na aventura do espaço e do ciberespaço. Fazendo uso do mapa genético, criou condições para se multiplicar laboratorialmente. Este admirável mundo novo é, na verdade, um mundo de luz e sombra, porventura de Frankenstein e da sua criatura, seguramente de ecrãs planos transportando dentro de si personagens sem espessura numa espécie de versão pós-moderna da paisagem orwelliana. Ruiram os mitos, tombaram os muros. Em que acreditar? Pois, salve-se, ao menos, o capitalismo! Por entre o amontoado de cacos e telelixo, reminiscências de um tempo que se acreditou poder ser justo, na desordem aparente que sugere uma nova barbárie ou, se preferirmos, nessa ordem aparente que promete uma ordem nova, haja, pois, lugar para um olhar oblíquo, transversal, provocatório.”



Nesta linha foi ponderado um conjunto de iniciativas no qual se destacava uma retrospectiva de filmes de Willliam Klein, associada a exposições fotográficas do mesmo autor, bem como a um conjunto de masterclasses destinadas a discutir o filme documentário no contexto da multiplicação de sinais de regresso ao real em contraponto com a vacuidade da televisão e de um cinema de evasão incapaz de reflectir sobre o mundo. Além de William Klein, as masterclasses foram ministradas por Nina Rosenblum, Dennis Watlington, Llorenç Soler, Javier Rioyo Amir Labaki e Brian Winston.


Como complemento, foi programado um Fórum denominado O Choque das Imagens organizado em três painéis – Imagens Globais, Equilíbrios Instáveis e Propagandas Silenciosas – destinado a debater o estado do mundo e as sua representações mediáticas. Entre outros, teve a participação de Ignacio Ramonet e de Margarida Ledo Andión. O Fórum Choque das Imagens convivia com Imagens de Choque, uma exposição de fotojornalismo do Festival du Scoop et du Journalisme de Angers através da qual “o público pode ficar a conhecer a actualidade mundial do ano que passou: uma espécie de ‘stop and go’ que nos permite determinar o estado em que se encontra a nossa sociedade: documentos frequentemente chocantes, por vezes difíceis, são o reflexo da humanidade: reflexo esse que nunca poderíamos obter sem os jornalistas pois eles têm, como todos nós, o dever de informar.”



Quanto a O Olhar de Ulisses manteve-se no quadro de uma programação cinéfila, compondo um mosaico de filmes, muitos deles raramente vistos em Portugal:


“A partir do momento em que André Bazin viu o cinema como ‘uma janela aberta sobre o mundo’, o cinema dominante teve uma clara tendência a transformar-se num jogo de vídeo em grande ecrã e o ecrã de televisão a tomar cada vez mais a forma de um buraco de fechadura ou seja o ‘visual’ tende a ocupar o lugar da ‘imagem’, como dizia Serge Daney. Nesse contexto, o quarto e último acto de O Olhar de Ulisses procura construir redes de relação e leitura entre os filmes – faróis da história do cinema, pontos de referência indispensáveis – e as obras contemporâneas que teimam em respeitar quem as vê. Por isso. este último andamento de O Olhar de Ulisses chama-se Resistência.”


Legenda: Chantal Akerman Fonte: Mulher no Cinema

A programação do ciclo era encabeçada por uma citação de Jean-Luc Godard, segundo a qual “Não pode haver resistência... sem memória.” Contemplava filmes de Federico Fellini, Jacques Demy, Nicholas Ray, Boris Barnet, Robert Kramer, Luc Moullet, António Reis e Margarida Cordeiro, John Ford, Akira Kurosawa, Charles Laughton, Pedro Costa, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Jacques Tati, Chantal Akerman, Charlie Chaplin, Chris Marker, Jean-Luc Godard, Olivier Smolders, Abbas Kiarostami, Serguei Dvortsevoy e Johan van der Keuken, entre outros. No catálogo, José Manuel Costa introduzia uma nota de polémica – uma das raras em todo o ciclo – ao responder ao artigo de João Bénard da Costa Os filmes que nos vêem/os olhos que nos filmam, anteriormente citado.


Jean-Marie Straub, Pedro Costa e Danièle Huillet Fonte: DN

Explorando o carácter transversal das linguagens o módulo final da Odisseia nas Imagens, apostando na diversidade, ganhou evidência numa multiplicidade de lugares do espaço público, procurando interagir fosse com os frequentadores habituais fosse com os de circunstância. A porta de entrada de Outras Paisagens era a seguinte:


“Que paisagens nos reserva a acção combinada dos media? Outras paisagens? Sim. Mas que paisagens? O limite da intervenção dos novos media é justamente a ausência de limites, porque neste território tudo é experimental. Aqui, o registo criativo é, simultaneamente, um registo de pesquisa gramatical. Da convergência ou da conflitualidade de várias linguagens resulta, pois, um peculiar modo de recriar quer o mundo sensorial, quer o mundo conceptual, abrindo-se as portas da percepção ao reconhecimento de lugares desconhecidos dentro do próprio homem, solicitando a inteligência intuitiva tanto como forma de racionalizar essa mesma experiência, quanto de inquirir sobre o seu destino. Outras paisagens: tão diversas quanto o seu campo de aproximação: do interior do corpo humano ao universo fabuloso das galáxias, do olhar sobre o tempo que passa à interrogação do tempo futuro.”


À semelhança dos módulos anteriores, os filmes-concerto atraíram um público numeroso e um deles, Nosferatu (1919) de Frederich W. Murnau com música ao vivo dos Clã continuou a ser apresentado em diversos pontos do país, pelo menos, até 2005.

Dois outros acontecimentos deixaram ainda uma marca para o futuro. Um respeitante ao cinema de animação. Outro, a um dos projectos externos ao qual foi dado seguimento, o Museu da Pessoa. Quanto ao primeiro, era dada como irreversível a construção da Casa da Animação, circunstância associada à comemoração dos 25 anos do Cinanima, em Espinho. Na ocasião, a Odisseia nas Imagens patrocinou, nomeadamente, o lançamento de um livro e de um CD-ROM ambos intitulados A História do Cinema de Animação em Portugal. Quanto ao segundo, um projecto multimédia preparado ao longo de meses pela Universidade do Minho em colaboração com formadores do Museu da Pessoa de São Paulo, foi oficialmente lançado na Estação de São Bento, no Porto, em 11 de Novembro.



No plano cerimonial o ponto culminante da Odisseia nas Imagens terá sido a sessão de encerramento oficial – que não de facto – com O Leopardo (1963) de Luchino Visconti na presença do Presidente da República, Jorge Sampaio, e da atriz Claudia Cardinali. O evento esgotou com grande antecedência a lotação do Grande Auditório do Rivoli - Teatro Municipal, tendo ocupado durante dias as páginas dos jornais. O filme encerrava, simultaneamente, o Ciclo Visconti iniciado no módulo anterior. No entanto, não seria essa a perspectiva do programador. É o que veremos nas próximas publicações, nas quais se fará uma avaliação dos efeitos do Porto 2001 no Cinema, Audiovisual e Multimédia, bem como uma análise crítica da Programação do(s) documentário(s), afinal o elemento estruturante da Odisseia nas Imagens.


(Para informação detalhada sobre o quarto módulo ver neste blogue: Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IX: Como Salvar o Capitalismo/Outras Paisagens 1; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IX: Como Salvar o Capitalismo/Outras Paisagens 2; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IX: Como Salvar o Capitalismo/Outras Paisagens 3; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IX: Como Salvar o Capitalismo/Outras Paisagens 4; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IX: Como Salvar o Capitalismo/Outras Paisagens 5; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IX: Como Salvar o Capitalismo/Outras Paisagens 6)



ANEXOS














CONTINUA


  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 10 de out. de 2023
  • 13 min de leitura

Atualizado: 20 de out. de 2023


Sessão de encerramento da Odisseia nas Imagens no Teatro Rivoli onde será exibida a cópia restaurada de O Leopardo (1966) de Luchino Visconti. Responsáveis da Capital Europeia da Cultura aguardam a chegada de Claudia Cardinale e do Presidente da República Jorge Sampaio.

Chegou a altura de fazer o balanço possível da Odisseia nas Imagens com base na avaliação que então fiz como responsável pela Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Nota prévia. Medir o impacto de políticas culturais exige ter em conta quer uma vertente de ordem quantitativa quer uma outra de ordem qualitativa. Sendo indissociáveis não podem ser equacionadas no mesmo plano. Se a primeira remete para o domínio do material e, como tal, as mais das vezes, pode ser ilustrada com números, a segunda, sendo do domínio do imaterial, encerra elevado grau de subjectividade. Assim sendo, cada um formará a opinião que entender sobre a importância - ou falta dela - dessa aventura que marcou a viragem do milénio à qual foi dado o nome de Odisseia na Imagens.


Até agora fiz 17 publicações sobre esta temática, todas elas extensas e profusamente ilustradas. Esta, a número 18, principia com um resumo esquemático de objectivos e premissas já largamente desenvolvidos em publicações anteriores por forma a facilitar a leitura de quem delas não tenha conhecimento. A segunda e terceira publicações farão um balanço genérico do modo como decorreu a Odisseia na Imagens. Finalmente, far-se-á a revisão crítica da programação de cinema documental que era, ao cabo e ao resto, o eixo da maioria das iniciativas.


Para já, impõe-se situar a consigna Pontes para o Futuro comum a toda a Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. O que se segue é um curto resumo do documento de base da candidatura, no qual Poro também referenciado como uma cidade das imagens.


Nadir Afonso - Ponte Luís I, c. 1940. Pontes para o Futuro. O Porto é a cidade das pontes sobre o rio Douro. Todas elas correspondem a momentos determinantes da sua história. A ponte de Gustave Eiffel (1887) é um dos raros exemplares da arquitectura do ferro associado à revolução industrial tardia que o Porto conheceu e marca tanto o imaginário da cidade quanto a sua representação simbólica. O mesmo sucede com a ponte Luís I (1886), inseparável da memória de uma época de prosperidade mercantil. A ponte da Arrábida (1963) coincide com outro momento de expansão da área metropolitana e com a afirmação vencedora da lógica do automóvel. Da autoria de Edgar Cardoso, o seu arco de betão armado foi, à época, o maior do mundo. Trinta anos mais tarde, o mesmo Edgar Cardoso construiu uma nova ponte, desta vez ajustada às necessidades dos comboios de alta velocidade. Em suma, “a metáfora das pontes, e dos rios que sob eles correm, possui uma coerência e uma riqueza que a criatividade cultural pode explorar, quase explorar infinitamente.” As pontes do Porto, portanto, “são expressão da particularidade do sítio e das vicissitudes históricas da cidade que aqui se instalou e, ao mesmo tempo, impregnam uma mensagem universalista e inovadora que lhes conferem as suas características e os seus criadores; um, Gustave Eiffel, europeu e universal; outro, Edgar Cardoso, portuense e, porque não arriscar, também europeu e também universal. Excertos do documento de candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura. Fonte: Fundação Nadir Afonso

Sobre as Pontes para o Futuro, duas notas adicionais:


1. “2001 não deverá ser a activação de festividades que alimentem no Porto a ilusão de ser uma Capital Europeia de primeira linha, mas uma escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas, proporcionando-nos a sua fruição e a confrontação com eles próprios.”


2. “2001 deverá activar o cruzamento de equipas e experiências internacionais em projectos que só no Porto possam acontecer. Substituir-se-á, assim, à inscrição conjuntural da cidade no obsessivo mercado internacional, a ideia de um lugar de projectos, de encontros e desencontros que ajudem a firmar os nossos valores como referência e desafio aos criadores, produtores e programadores estrangeiros, cuja rota passará a cruzar-se obrigatória e estruturalmente com a nossa.”


(Para conhecimento detalhado das premissas e posteriores desenvolvimentos ver neste blogue: Porto 2001 - Odisseia nas Imagens I; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens II; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens III; Porto 2001 - Odisseia nas Imagens IV).


1. Odisseia nas Imagens: premissas


No último trimestre de 1999 foi apresentado um draft no qual se procedia a uma primeira abordagem do que poderia viria a ser a Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001. Nele eram abordadas questões relacionadas com a História do Cinema no Porto, os Festivais de Cinema, o Ensino Superior e o Centro de Produção do Porto da RTP. O documento dava conta, a abrir:

“A primeira ideia que ocorre no âmbito dos eventos a programar para o Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura é a ideia da visibilidade. Numa primeira leitura, estaríamos perante um conceito cujo valor instrumental seria testado em função do tempo e do espaço dedicados à divulgação em antena ou através dos circuitos da sociedade da informação do conjunto de iniciativas constantes da programação no seu conjunto. Este pôr o Porto no mapa exige, porém, o entendimento, a um outro nível, de uma vertente complementar. Respeita ao(s) discurso(s), de cuja excelência depende o alcance e o impacto da divulgação pretendida. Só a qualidade a esse nível, ancorada na convergência da criatividade com o domínio das tecnologias e das linguagens, permitirá prosseguir a estratégia de internacionalização consequente dos objectivos delineados.”


Afirmava-se seguidamente:

“Na mesma linha importa reconhecer o Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura como potencial e, porventura, decisivo agente de mudança da paisagem audiovisual considerando não apenas a capacidade de produção instalada, mas também os saberes dispersos pelos diversos protagonistas, sejam eles da área empresarial, pública ou privada, ou das áreas dos festivais e da universidade. A mudança pretendida, no sentido de conferir maior e melhor presença à globalidade do sector, se recusa práticas de intervencionismo, aliás, ilegítimas, nem por isso deixa de exigir, da parte Sociedade Porto 2001, a capacidade de lançar um conjunto de desafios nos quais os potenciais parceiros da Capital Europeia da Cultura possam encontrar motivos mobilizadores.”


Sessão de encerramento da Odisseia nas Imagens. Claudia Cardinale acompanhada de Manoel de Oliveira e de Dominique Paini chega ao Teatro Rivoli, cuja lotação esgotou com enorme antecedência.

Do exposto no draft resultavam alguns pressupostos e outras tantas intenções de cuja articulação era previsível poder chegar-se a uma malha coerente de programação. Assim, a aposta na excelência do discurso impunha critérios rigorosos em relação àquilo que se pretendia dar a ver, sendo que o dar a ver teria de corresponder a opções de ordem estratégica alicerçadas num intuito fundador de promover a criação de novos públicos. Destes, por sua vez, era suposto poderem emergir agentes culturais com intervenção, nomeadamente, no plano da produção e, logo, com impacto no tecido empresarial da indústria audiovisual. Por outro lado, as opções de ordem estratégica teriam sempre de ser definidas em função das capacidades instaladas e dos saberes existentes valorizando, desde logo, os Festivais de Cinema, as Universidades e o Centro de Produção do Porto da RTP.


Haveria que conferir, igualmente, sentido prospectivo à programação procurando identificar um território de novas apostas, fosse no campo das linguagens transversais, fosse no domínio de modalidades narrativas consideradas de nicho, como o documentário, cujas características pareciam adequadas a um investimento de rentabilidade a médio prazo, tanto no plano material quanto no plano simbólico.


Em suma, seria necessário acertar o passo com novos e velhos desafios na perspectiva do desenvolvimento de parcerias criativas no quadro de uma programação diferenciada de alta qualidade, arrojada e interactiva, e, como tal, obrigada a acautelar os aspectos lúdicos sem os quais correria o risco de se encerrar num espaço anacrónico de especialistas voltados sobre si mesmos.


Resultava, como corolário:


“Da aceitação desses desafios, bem como do percurso que cada qual for capaz de fazer, construindo pontes entre o público e o privado, entre as empresas e a Universidade, entre o mercado nacional e o mercado internacional, deverá emergir algo de qualitativamente diferente com impacto para além de 2001.”


Man of Aran (1934) de Robert Flaherty, cineasta em grande destaque. Nota: no conjunto da Odisseia nas Imagens foram exibidos 791 filmes, muitos deles documentários, não se incluindo neste número, por se tratar de programação autónoma, os filmes do Fantasporto, do Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde e do Cinanima; tão pouco são contabilizados quer os vídeos exibidos em numerosos eventos quer as produções escolares presentes na secção competitiva do Festival Internacional do Documentário e Novos Média; os 791 filmes foram exibidos em 324 sessões em contextos diversificados. Fonte: MUBI

1.1. Parcerias estratégicas


Em função deste enquadramento o passo seguinte iria no sentido de desencadear as iniciativas que permitissem montar a logística indispensável à concretização dos objectivos delineados. Desde logo, numa primeira fase, estabelecer contactos tendo em vista a criação de parcerias com a RTP, com os estabelecimentos de ensino superior da área metropolitana do Porto e com os festivais de cinema. Sumariamente:

RTP. Por um lado, tratava-se de propor um tipo de intervenção que de algum modo pudesse acomodar-se a uma proposta estratégica para o serviço público de televisão de âmbito regional, privilegiando os aspectos de regulação da paisagem audiovisual numa perspectiva descentralizada. Por outro, envolver o serviço público na cobertura noticiosa da Odisseia nas Imagens, bem como das actividades da Capital Europeia da Cultura.

Universidades. Tratava-se de mobilizar as universidades para efeito de recrutamento de novos públicos, sendo estes encarados como potenciais geradores de criadores e agentes culturais. O envolvimento de professores e estudantes obedeceria à perspectiva de os familiarizar com a produção simbólica das áreas de interesse estratégico da Odisseia nas Imagens fazendo deles, simultaneamente, actores de um processo de transformação. O processo passaria, designadamente, por acções de formação, as quais por sua vez, seriam encaradas como parte da Programação. Num documento enviado pelo responsável da área do Cinema à Comissão Executiva da Sociedade Porto 2001, afirmava-se:

“Na União Europeia, o sector do audiovisual e multimédia é reconhecido como sendo dos mais interessantes do ponto de vista da criação de emprego. Por outro lado, dele depende a afirmação, no plano simbólico, das diversas realidades parcelares constituintes da realidade que é, hoje, a Europa.”

Acrescentava-se adiante:


“Sendo indispensável amplificar o efeito Porto - 2001 quer interna quer externamente, e reconhecendo-se a necessidade de melhorar a capacidade discursiva existente, entende-se ser do maior interesse avançar com acções de formação envolvendo tanto profissionais em exercício, quanto candidatos a um emprego. Essas acções devem articular empresas e universidades fazendo convergir agentes frequentemente demasiado fechados sobre si próprios.”


Festivais de Cinema. Quanto aos festivais - Fantasporto, Curtas de Vila do Conde e Cinenima - tratava-se de os integrar na Programação oficial da Capital da Cultura como elemento de valorização procurando, simultaneamente, promover novas sinergias. Aliás, as primeiras opções quanto àquilo em que valeria a pena apostar iam no sentido do reconhecimento do trabalho por eles efectuado ao longo dos anos, nomeadamente no domínio das curtas metragens e do cinema de animação. Por opção programática o documentário viria depois, constituindo-se como paradigma do que valeria a pena divulgar e produzir.


Na foto, a cineasta Florence Miailhe que, a par da exibição dos seus filmes de animação, orientou um workshop de 40 horas de Pintura Animada destinado essencialmente a Animadores e a estudantes das Escolas de Arte, Audiovisuais e Tecnologias da Comunicação com conhecimentos ao nível da Animação. As inscrições foram limitadas a doze participantes. De notar que as acções de formação, levadas a cabo no âmbito de um programa negociado com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, em colaboração com a Associação Empresarial de Portugal, acabariam por constituir-se num dos pólos de atracção da Odisseia nas Imagens. Distribuídas pelas áreas do cinema, televisão, multimédia e jornalismo realizaram-se 42 acções de formação, verificando-se a inscrição de 1.100 candidatos, número muito superior ao número de vagas existentes. Dentro de um quadro de razoabilidade, quando possível, foi alargado o limite de inscrições de um número significativo de workshops. No total, até ao encerramento das actividades da Odisseia nas Imagens, tiveram formação 440 candidatos. No entanto, algumas acções prosseguiram para além desta data. Foto: Alliance Française

Deriva sobre o documentário. A opção pelo documentário obedeceu a critérios de vária ordem. Se não proscrito pelo menos relativamente marginal em termos de produção e distribuição cinematográfica pareceu oportuno recuperá-lo, dando-o a conhecer na amplitude das suas modalidades, numa perspectiva de poder vir a interessar novos públicos e futuros criadores. Tanto mais que estava a atravessar uma fase de rápido desenvolvimento com expressão no número de festivais internacionais, bem como nos níveis de produção na União Europeia, com destaque para o Reino Unido. Além disso, estava a regressar às salas. Não exigindo meios avultados e sendo uma espécie de álbum de família dos povos, como lhe chamou Patrício Guzmán, o documentário poderia transformar-se num meio privilegiado de dar a conhecer a Cidade, o País e, sobretudo, os seus habitantes.


Montagem da Exposição da Magnum nos bastidores de Misfits (1961), o clássico de John Huston com argumento de Arthur Miller.

Esta ideia era reforçada em função de tendências identificadas no quadro audiovisual europeu:


“Essas tendências apontam para uma produção genuinamente europeia, no âmbito da qual se verifica a revalorização do local e do regional entendidos como base do universal. No plano simbólico, faz-se, portanto, a defesa da visibilidade das diferentes parcelas do conjunto da União Europeia. A unidade na diferença é reforçada e estimulada pelo facto das tecnologias da informação e da comunicação, em particular o digital, terem pulverizado o universo televisivo generalista, dando lugar a uma televisão temática, segmentada e especializada.” A par desta constatação, que no caso do filme documentário viria a revelar-se manifestamente exagerada, foi dada prioridade à reflexão sobre as consequências da revolução digital na forma de pensar o Cinema, em geral, e o Cinema Documental, em particular.


Cinemateca Portuguesa. Naturalmente, reconhecendo no Cinema a matriz essencial do documentário, estabeleceu-se uma nova parceria estratégica, desta vez, com a Cinemateca Portuguesa, da qual viria a resultar o elo mais forte da Odisseia nas Imagens, o ciclo O Olhar de Ulisses.


Pierre-Marie Goulet foi o programador principal do Ciclo O Olhar de Ulisses, considerado pelos críticos do jornal Público uma das dez melhores iniciativas do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura. Teve na sua companheira Teresa Garcia, com quem criou a Associação Os Filhos de Lumière, a colaboradora mais próxima. De salientar, também, o apoio de José Manuel Costa, actual responsável da Cinemateca Portuguesa. Fonte: Cinemateca Portuguesa

1.2. Outras parcerias e áreas de intervenção


No último trimestre de 1999 estavam identificados os pilares da Programação, a qual deveria ser estruturada em módulos. Dado o seu carácter experimental, a perspectiva seria a do work in progress. Pareceu ser esse o método mais eficaz de enquadrar os ensinamentos respeitantes a cada módulo ou iniciativa por forma a produzir alterações nos módulos ou iniciativas seguintes e introduzir, se necessário, variáveis e inflexões de percurso em função dos resultados alcançados, bem como da experiência adquirida. Ponto assente era que a Odisseia nas Imagens seria construída em torno de um evento multidisciplinar de longa duração e carácter estruturante, distribuído por locais tão diversificados quanto possível por forma a ir ao encontro das pessoas, embora os seus eventos mais emblemáticos devessem ter sede fixa.



Beneficiando, como se viu, do apoio da Cinemateca Portuguesa, bem como das parcerias com iniciativas consolidadas como o Fantasporto, o Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde e o Cinanima, ficavam asseguradas à partida não só uma programação de Cinema diversificada e dirigida a diferentes públicos, mas também a extensão de parte dessa mesma programação a outros municípios da área metropolitana do Porto.


Igualmente negociado foi o apoio do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM), organismo dependente do Ministério da Cultura, para efeito da promoção e divulgação das encomendas da Porto 2001 em festivais internacionais. Finalmente, abriu-se, uma segunda linha de acordos complementares, nomeadamente com o Instituto Francês do Porto, Alliance Française, Goethe Institut, Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) de Paris, Festival du Scoop et du Journalisme de Angers e Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade de Santiago de Compostela. cuja importância viria a revelar-se determinante para a concretização e relevância de um número significativo de eventos.


Exposição da Magnum sobre The Misfits de John Huston, no espaço do Teatro Rivoli. As iniciativas da Odisseia nas Imagens realizaram-se nos seguintes 32 diferentes lugares: Associação Os Filhos de Lumiére; Auditório Municipal de Vila do Conde; Bar Labirintho; Bar Trintaeum; Bar Voice; Biblioteca Almeida Garrett; Casa das Artes; Casa Tait; Centro Multimeios de Espinho; Cinema Trindade; Coliseu do Porto; Escola Superior Artística do Porto; Escola Superior de Artes e Design; Escola Superior de Jornalismo do Porto; Estação de S. Bento; Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto; Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; Filmógrafo; Fnac; Fundação de Serralves; Galeria Artes em Partes; Hard Club; Instituto Nacional de Engenharia de Sistemas e Computação; Moagens Harmonia; Porto Palácio Hotel; Rivoli Teatro Municipal; RTP Porto; Teatro do Campo Alegre; Universidade Católica do Porto; Universidade do Minho; Universidade Fernando Pessoa; Universidade Popular do Porto. - Relatório de Avaliação Final do Departamento de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas.

As preocupações respeitantes à internacionalização foram equacionadas procurando estabelecer desde logo relações com a cidade de Roterdão. A Capital da Cultura pensada pela cidade holandesa obedecia, no entanto, a parâmetros muito diferentes. Enquanto no Porto a prioridade era lançar um conjunto de iniciativas estruturantes de modo a gerar dinâmicas culturais inovadoras, nomeadamente através do fomento de novos equipamentos como a Casa da Música e o melhoramento de outros já existentes, em Roterdão, uma cidade culturalmente bem equipada, as linhas gerais da programação obedeciam a critérios, sobretudo de carácter civilizacional, ocupando o multiculturalismo um lugar dominante.


1.3. Internacionalização, projectos e encomendas.


Em todo o caso, foram estabelecidos contactos com produtores holandeses tendo em vista a co-produção de filmes e de programas de televisão. Em relação a estes últimos, devido aos custos elevados e à dificuldade em encontrar parceiros entre os operadores de televisão, a hipótese foi rapidamente descartada. Em relação ao cinema, porém, foi estabelecido um acordo tendo em vista retomar uma série de sucesso denominada City Life e, nessa medida, acertar a produção de oito filmes de jovens realizadores sobre as cidades do Porto e de Roterdão assegurando, em simultâneo, a sua estreia mundial conjunta no Rotterdam International Film Festival, um dos mais importantes da Europa, no dia de abertura da Capital Europeia da Cultura holandesa.


William Klein, aqui a ser entrevistado para o Jornal de Notícias, teve uma retrospectiva integral dos seus filmes na Odisseia nas Imagens no módulo Como Salvar o Capitalismo - Outras Paisagens.

Foi recebida cerca de uma centena de propostas. Algumas viriam a merecer descriminação positiva. Entre elas, duas assumiam particular relevância: uma, da Produtora Filmógrafo visando criar a Casa da Animação; outra, da Universidade do Minho, tendo por objectivo a criação do Museu da Pessoa com o objectivo de contar em suporte digital a história da cidade e dos seus lugares através de estórias de vida e de testemunhos de anónimos, mas explorando, simultaneamente, suportes tradicionais, como o livro e a televisão.


Quanto à Casa da Animação a proposta teve origem em elementos fundadores da produtora Filmógrafo, entre os quais o cineasta Abi Feijó, e contemplava um ambicioso conjunto de iniciativas. Dirigido essencialmente aos públicos mais jovens, dele faziam parte, nomeadamente, retrospectivas dos Estúdios Aardman, de Ladislas Starevich e do cinema de animação canadiano, reposições de clássicos, estreias de filmes ausentes do circuito comercial português, visitas de estudo e diversos workshops.


A exposição e a retrospectiva dedicadas a Ladislas Starevich foi um dos pontos altos da Programação do cinema de animação. Fonte: Silent-Ology

Quer o orçamento da Casa da Animação quer o do Museu da Pessoa tiveram de ser renegociados em função das disponibilidades. De notar que a maioria dos projectos apresentados, apesar de alguns de indubitável interesse, ou tinha orçamentos proibitivos ou não se enquadrava nas linhas gerais delineadas para a Odisseia nas Imagens.


Quanto às encomendas, dada a opção da Odisseia nas Imagens pelo documentário, as curtas metragens e o cinema de animação, uma opção consequente com a avaliação das capacidades instaladas e os saberes existentes e, como tal, susceptível de desenvolvimentos no futuro em termos de produções de excelência, é natural que as encomendas levadas a cabo se inscrevessem essencialmente nesse domínio e procurassem envolver, desde logo, o mais representativo cineasta português, Manoel de Oliveira, a quem foi proposto revisitar o Porto através de um filme documentário seguindo os passos de Douro, Faina Fluvial (1931). Para além da homenagem ao cineasta, a encomenda deveria ser representativa do renascimento da produção do filme documentário feito a partir da cidade. O Porto da Minha Infância (2001) seria, como foi, a obra de maior relevância produzida no âmbito da Programação de Cinema.


Paulo Rocha no set de Verdes Anos (1963). O cineasta foi dos convidados para a série City Life, uma co-produção do Porto e Roterdão. Da série deveriam fazer parte quatro curtas metragens de autores portugueses, inicialmente associadas a outras tantas de autores holandeses, num registo de cumplicidade de olhares cruzados sobre as duas cidades. Pensados em função do impacto que poderiam ter em termos de promoção de ambas as Capitais Europeias da Cultura, os deveriam fazer o percurso dos principais festivais europeus de cinema do ano 2001, bem como serem objecto de difusão televisiva. A parte holandesa, no entanto, apenas produziu dois filmes. Em consequência, os filmes portugueses ganharam autonomia sob a designação Estórias de Duas Cidades tendo sido objecto de exibição em festivais de todo o mundo com passagem em canais televisivos, nomeadamente na RTP. Estórias de Duas Cidades – integrando os filmes Distância (2001) de Pedro Serrazina, Acordar (2001) de Tiago Guedes / Frederico Serra, Corpo e Meio (2001) de Sandro Aguilar e Sereias (2001) de Paulo Rocha – abriram o Fantasporto em 21 de Fevereiro de 2001. Fonte: Cinemateca Portuguesa

Uma outra encomenda feita no sentido de evocar a memória cinéfila do Porto foi Cinema (2001) de Fernando Lopes, uma homenagem a Aurélio da Paz dos Reis. Pensado a partir de um poema de Carlos de Oliveira e com desenhos de Jorge Colombo este filme recupera a memória do pioneiro portuense das imagens em movimento em Portugal, mas transcende esse objectivo, situando-se no plano de uma liturgia sobre o próprio cinema. Exibido no Festival de Veneza e estreado em Portugal a 15 de Março de 2001 no ciclo O Olhar de Ulisses, o filme de Fernando Lopes contribuiu igualmente para projectar externamente a imagem da Capital Europeia da Cultura.


Foram ainda encomendas ou filmes apoiados pela Odisseia nas Imagens Casa da Música de Pierre-Marie Goulet, Oresteia na Prisão (2001) de Saguenail e Regina Guimarães, Desassossêgo (2001) de Catarina Mourão, O Puzzle Volta ao Porto (2001) de Hugo Vieira da Silva e Novo Mundo (2001) de António, Jorge Neves e Pedro Abrunhosa. De assinalar ainda a assinatura de um contrato com a Produtora Costa do Castelo para a edição em DVD de clássicos do cinema documental tendo sido publicados, nomeadamente, filmes de Robert Flaherty, Dziga Vertov, Jean Rouch e Artavazd Pelechian.


As Estações (1975), um dos filmes de Artavazd Pelechian editado em DVD pela Odisseia nas Imagens.


2. Odisseia nas Imagens: objectivos e ponto de partida


Identificadas as principais parcerias, lançado o concurso de projectos, agendadas as encomendas e estabelecidas as prioridades em função da estratégia delineada ficou claro que a Programação deveria ser entendida como um percurso, cujo itinerário poderia seria inflectido ou rectificado consoante as necessidades criadas pela sua própria circunstância, de modo a:


a) Proporcionar uma Programação de elevado grau de exigência
b) por forma a abrir caminho à concretização dos objectivos 
c) valorizando a componente formativa
d) sem descurar a dimensão lúdica e espectacular
e) de modo a fidelizar públicos para narrativas ajustadas a políticas de nichos de mercado
f) das quais pudessem resultar novas dinâmicas de produção e reflexão g) quer ao nível das escolas quer do tecido empresarial

h) dando sentido prospectivo à tradição e memória do Porto enquanto Cidade de Imagens,
i) numa perspectiva de internacionalização.


Para trás ficava um período durante o qual, para além do trabalho preparatório, fora necessário ultrapassar problemas delicados, designadamente o conflito aberto aberto pelo Ministério da Cultura com a Sociedade Porto 2001 que levara à demissão do seu presidente Artur Santos Silva e à nomeação de uma nova responsável, Teresa Lago. Nessa altura, quando subiam de tom as críticas e insinuações sobre uma alegada incapacidade da equipa de programadores, cuja substituição começara a ser sugerida, uma fuga de informação para os jornais permitiu dar a conhecer em detalhe o trabalho realizado até então.


A divulgação das linhas gerais do conjunto da Programação, bem como as numerosas iniciativas já agendadas, não só veio reforçar a posição dos programadores, mas também permitiu dissipar quaisquer dúvidas quanto ao projecto cultural. A título de exemplo, no jornal Público de 27 de Novembro de 1999 o crítico Augusto M. Seabra, num artigo intitulado Isto é uma Capital Cultural!, escreveu:


“Pois bem, programação cultural há. As linhas gerais do Porto 2001 devem ser saudadas como o mais sério esforço até hoje feito em Portugal de pensar uma cidade em termos culturais, isto é, atender às suas tradições, dimensão, localização internacional, necessidades de requalificação urbana e de oferta de espectáculos, valorização e estímulo do potencial criador e mobilização da diversidade de públicos.”


Recorte do jornal Público de 27 de Novembro de 1999.

Flashforward. Na declaração de abertura contida no Relatório de Avaliação Final de Maço de 2002 do programador responsável da Odisseia nas Imagens, afirma-se:


“No âmbito do enquadramento conceptual do evento Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura o ponto de partida para a Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia foi a prestação de um serviço público em função do qual pudesse equacionar-se a projecção da visibilidade da cidade e da região em termos de uma área estratégica, todavia, ou negligenciada pelos vários poderes ou encarada numa perspectiva meramente instrumental à margem do que é hoje a reflexão sobre o audiovisual.


Pretendeu-se, pois, lançar um debate no sentido de indagar qual o papel do Porto no panorama português promovendo, simultaneamente, as bases de uma política descentralizada, bem como a possibilidade de integração da produção local na esfera do mercado global. Nesse sentido, a Programação foi construída em torno de um evento inovador de grande potencial, multidisciplinar, de carácter estruturante e de longa duração: a Odisseia nas Imagens.


Sessão de encerramento da Odisseia nas Imagens presidida pelo Presidente da República Jorge Sampaio durante a qual foi condecorada a actriz Claudia Cardinale. O auditório grande do Teatro Rivoli esgotou com enorme antecedência.

Vejamos agora os quatro módulos da Odisseia nas Imagens, as formas encontradas para dar resposta ao conjunto das questões preliminares que foram colocadas. Como se disse fá-lo-emos em dois momentos. No primeiro serão avaliados aspectos gerais da Programação e no segundo as matérias relacionadas com os documentários. Em relação a qualquer deles, e especialmente em relação ao segundo, são incluídas notas críticas, por forma a elucidar argumentos que possam contribuir para a pertinência das conclusões.


Continua






























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Jorge Campos

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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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