Aconteceu pouco antes da sua morte. Sabendo-se o seu estado de saúde e dado o interesse em perpetuar a sua memória junto de um público mais vasto, coube-me fazer um documentário para a televisão sobre Miguel Torga, aliás, sempre avesso a mostrar-se a não ser através da sua obra, a qual li então integralmente e, verdade se diga, quanto mais a lia mais a queria ler, mesmo apreciando desigualmente os diferentes modos da sua diversificada expressão. O filme foi feito em condições peculiares dada a urgência da tarefa e de Torga apenas me foi permitida uma única imagem final, a última que dele há ainda em vida, feita à distância de modo a evitar mostrar as irreversíveis marcas da doença que o haveria de levar. Dele ficou também um último registo de um fio de voz lendo um poema por ele escolhido, Súplica, se a memória não me atraiçoa. Contei, nomeadamente, com a colaboração de David Mourão Ferreira e de Manuel Alegre. O filme, de magro orçamento, fez-se correndo contra o tempo, editando ao ritmo do que se ia sendo filmado, sem a clara noção daquilo que viria a ser uma vez terminado. Mas, uma vez terminado, bem ou mal, além de Torga havia o Douro. Não sei se haveria Torga sem o Douro nem o Douro sem Torga. Nem Torga sem Trás-os Montes. Estou em crer que não. O filme chama-se Torga.
Claro que sobre a região duriense o mesmo poderia aplicar-se numa outra escala e de maneira diversa a numerosas páginas de Guerra Junqueiro, Aquilino Ribeiro, Trindade Coelho, João de Araújo Correia, Pina de Morais e Domingos Monteiro, de resto, todos eles, posteriormente, ligados a um outro projecto de documentários para televisão em torno do Douro e da Literatura e, por isso, pela sua circunstancial relação com as imagens, aqui referenciados. Outros, ainda, poderiam ser lembrados, em todos se encontrando momentos de perfeita sinestesia entre a ordem deslumbrante da paisagem natural e a imensa dignidade da paisagem humana num labor no limiar do desfalecimento temperado por festividades pagãs ligadas à água, ao canto, ao mosto e ao vinho. Os socalcos do Douro são, portanto, um palco extraordinário para a encenação da condição humana e o rio, no lento fluir das suas águas, remete para tempos ancestrais, para uma sabedoria antiga da qual não está ausente a transcendência, como sucede nestes versos do autor da Criação do Mundo:
“À proa de um navio de penedos,/ A navegar num doce mar de mosto,/ Capitão no seu posto/ De comando,/ S. Leonardo vai sulcando/ As ondas/ Da eternidade,/ Sem pressa de chegar ao seu destino./ Ancorado e feliz no cais humano, / É num antecipado desengano/ Que ruma em direcção ao cais divino.”
Olhando o Douro, fácil é o entendimento de tamanha grandeza ter atraído a atenção de tantos escritores de cuja arte resultaram páginas inesquecíveis. Contudo, essa dimensão simbólica e imagética não encontra no cinema algo de equivalente. Aí, a presença do Douro é relativamente episódica e se é verdade que Vale Abraão de Manoel de Oliveira e O Rio do Ouro de Paulo Rocha são dois momentos incomparáveis onde o imaginário beneficia da ressonância da paisagem e da sua grandeza e contrastes, é igualmente certo que a maioria das imagens conhecidas são de cunho institucional. Ao leitor mais atento, evidentemente, não terão escapado duas omissões de peso: Douro, Faina Fluvial, também de Manoel de Oliveira, o qual, dada a sua relevância, justifica uma atenção mais alargada, como adiante se perceberá, e Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, filme singularíssimo, mas no qual o Douro é relativamente marginal.
Dito isto, uma questão se coloca: haverá alguma razão para tão parca presença do Douro no cinema português? Certamente. Mas a resposta não reside tanto na falta de interesse dos nossos cineastas quanto nas características da nossa produção, ou seja, a questão de fundo é a exiguidade do mercado e o reduzido número de filmes de longa metragem produzido anualmente. É um problema antigo para o qual nunca se encontrou solução satisfatória e o que se passa com o Douro sucede com a generalidade das regiões de Portugal, excepção feita à capital e, mais recentemente, à cidade do Porto, neste caso por via de uma produção escolar no âmbito da qual a curta metragem de ficção e o documentário têm vindo a conhecer um novo impulso.
Todavia, deve ficar claro, se escasseiam os filmes vinculados a uma linha autoral abunda outro tipo de imagens. Quando fiz o filme sobre Torga uma pesquisa sumária revelou a existência de um acervo importante na Cinemateca Portuguesa, hoje no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento e, também, no serviço público de televisão. Diligências posteriores confirmaram essa impressão.
Apesar de estar por fazer a identificação exaustiva desse património, não será arriscado afirmar haver imagens da região duriense e do seu rio praticamente desde o início da aventura das imagens em movimento. Algumas delas terão até não só valor documental mas também interesse para a história do cinema português como serão os casos de Porto: ses quais et ses débardeuses (1923) de Roger Lion e As margens do Rio Douro do Porto a Entre-os-Rios, este, segundo José Manuel Costa um filme mudo tintado, do período nitrato, ainda não datado nem identificado, mas muito interessante. É ainda provável muitos dos registos da fase anterior à introdução do som terem origem na Invicta Filme da primeira fase, ou seja, no período em que a empresa de Nunes de Matos se dedicou fundamentalmente ao filme documental, antes de enveredar pelo filme de enredo nos estúdios da Prelada, no Porto, sob a orientação de realizadores e técnicos estrangeiros.
Por outro lado, como seria de esperar, a temática do Douro é recorrente nos jornais de actualidades cinematográficas ao longo de décadas e o mesmo sucede quanto ao filme de tipo documental pelo qual passaram, de resto, ao longo dos anos, muitos cineastas conhecidos como Artur Duarte, Leitão de Barros, Perdigão Queiroga, Fernando Garcia, Manuel Guimarães, João Mendes e alguns outros. De momento, não é ainda possível ter uma ideia de conjunto destes filmes e da sua relevância para o filme documentário, o qual se distingue do filme documental pela narrativa associada ao real imaginado. A ideia prevalecente vai, contudo, no sentido de admitir quer no caso das actualidades quer do documental, um pendor didáctico, eventualmente resvalando para um certo folclorismo que a partir de determinada altura contaminou o cinema português. Haverá certamente excepções antes e depois da reconquista da democracia cuja avaliação – por exemplo, o nome de Manuel Guimarães só por si sugere essa possibilidade –, na inexistência de uma história crítica do documentário português, continua, no entanto, por fazer. Para já, certo é, no período do cinema mudo, sobrar apenas uma única obra decisiva, naturalmente, Douro, Faina Fluvial.
Para melhor se compreender a génese deste filme impõe-se uma deriva de natureza contextual. Durante os anos 20, mesmo após a instauração da ditadura em 1926, quase toda a melhor produção internacional continuou a passar por Portugal. Inicialmente, portanto, e durante algum tempo, a ditadura não adoptou uma política cultural monolítica. Para essa abertura terá contribuído não só a postura de António Ferro, mas também o grupo de jovens a partir do qual se faria a renovação do cinema português, nomeadamente Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro. Um e outro tinham estado na Alemanha e na União Soviética, cujas cinematografias eram consideradas por Fernando Pessoa como as únicas cujos filmes se aproximavam da ideia de arte. Sucede, por outro lado, que havia revistas cinematográficas e que no Porto e em Lisboa tinham aberto salas de grandes dimensões, nomeadamente o Teatro de S. João e o Tivoli. Em suma, existia uma atmosfera favorável e o próprio estado não se coibiu de fazer uma lei proteccionista, a famosa lei dos Cem Metros Nacionais publicada no Diário do Governo de 6 de Maio de 1927. Basicamente determinava-se que todo o espectáculo cinematográfico deveria incluir como complemento um filme português com o mínimo de 100 metros. Os resultados revelar-se-iam desastrosos devido aos maus orçamentos e piores argumentos, mas é provável que o Douro tenha sido objecto de algumas dessas produções.
Seja como for, quando Oliveira, então com 23 anos, fez Douro, Faina Fluvial, tinha conhecimento do melhor cinema internacional, nomeadamente, dos trabalhos mais experimentais associados às vanguardas artísticas dos anos 20. Manifestamente influenciado por Berlim, Sinfonia de uma Cidade de Walter Ruttmann e O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov, bem como pela montagem dos filmes de Eisenstein,Douro, Faina Fluvial foi o único filme português à altura dos melhores sinais da modernidade, mas com uma diferença. Ao contrário do que sucede com a maioria das sinfonias urbanas, centradas no ritmo, movimento e nas formas, presta uma atenção especial à paisagem humana. Sobre ele José Régio escreveu:
“A moderna poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza.”
Contudo, quando da sua primeira exibição, em 1931, no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica, perante a surpresa dos congressistas vindos de fora, a maioria dos portugueses, como lembra Henrique Alves Costa, acompanhou a projecção “com constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada”. Valeram os elogios da crítica estrangeira e de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, entre os quais o citado Régio e Adolfo Casais Monteiro. O documentário só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então, prolongadamente aplaudido. Mas a pateada do Salão Foz, onde marcou presença uma maioria de indefectíveis da ditadura, não deixa de ser sintomática de um progressivo enclausuramento cultural. Basta lembrar que a selecta assistência considerou insultuoso dar a ver, para mais a estrangeiros, aquilo a que chamou um retrato da pobreza do país...
Pensando no Douro e em filmes marcados pela presença do rio, Oliveira destaca-se de todos os outros cineastas, mesmo de Paulo Rocha. Numa primeira fase, na verdade, uma fase com mais de 20 anos, fez Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Muito mais tarde, nos anos 90, no culminar da sua digressão por Camilo, – Amor de Perdição, Francisca e O Dia do Desespero – assinou uma das suas obras de maior fôlego,Vale Abraão, para a qual contou com a cumplicidade de Agustina Bessa Luís. Rodado na região duriense o filme mergulha em paixões recalcadas e num erotismo que ganham, no pano de fundo da paisagem e no contexto de um microcosmos social marcado pelo conservadorismo, uma ambiguidade perturbadora na linha de Esse Obscuro Objecto de Desejo de Buñuel. Ema, a protagonista, é uma espécie de Bovary enigmática, como enigmáticas são, de resto, as restantes personagens desse mundo onde tudo parece certo, quando, na verdade, tudo está a descompasso. Suprema ironia, numa terra cuja beleza natural suplanta a imaginação dos homens estes movem-se como que aturdidos da sua própria condição num registo de convenções e cortesias, afinal, artifícios dando corpo a subtextos que autorizam a desconstrução dos mitos conservadores sem, todavia, jamais se focalizarem na crítica retórica e opinativa.
De modo mais deliberadamente assumido, a paisagem representa igualmente um elemento preponderante na epopeia trágica de O Rio do Ouro de Paulo Rocha, cujas personagens habitam um espaço natural no qual a relação do homem com a natureza adquire uma dimensão mítica e um destino trágico. História de paixão e ciúme o filme tem como protagonista principal Zé do Ouro, cigano familiar dos segredos do rio e das histórias perdidas na bruma da memória das suas margens. É nesse domínio, ao som de velhas melodias tradicionais entoadas por cantadores cegos, que ganha corpo o vale de uma loucura progressiva no qual as paixões das personagens hão-de levar ao crime passional por entre o dourado do rio e o vermelho dos corpos. E na ficção não haverá muito mais para contar, embora Jaime, de António Pedro de Vasconcelos, mereça referência.
Há, finalmente, mais dois exemplos felizes tendo, de novo, Oliveira como protagonista. Um, é um curioso filme em co-autoria com Jean Rouch, de 1996, chamado En une poignée de mains amies, no qual os dois cineastas filmam as pontes do Porto. Outro, na viragem do século, é O Porto da Minha Infância, um legado do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura 2001. Este filme, 70 anos depois de Douro, Faina Fluvial, retoma os caminhos do melhor documentarismo e é hoje uma obra de referência do imaginário cinematográfico da cidade e do seu património monumental. Também por aqui o Douro faz sentir a sua presença.
A terminar cumpre-me agradecer ao meu amigo José Manuel Costa, Vice-Presidente da Cinemateca Portuguesa e ao Rui Machado, Director do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, a disponibilidade e os esclarecimentos prestados para efeito da concretização deste texto. Dessa disponibilidade e desses esclarecimentos uma certeza me fica: sobre O Douro e o Cinema há ainda muito a fazer. E, já agora, um pouco à margem, permita-se-me acrescentar: é tempo de começar a pensar numa História Critica do Documentário Português
Porto, Novembro de 2009