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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 17 de mar. de 2024
  • 9 min de leitura

Atualizado: 18 de mar. de 2024



Hirayama leva a vida a fazer a limpeza das casas de banho de Tóquio.  Todos os dias cumpre o mesmo ritual. Levanta-se cedo, trata com esmero da higiene pessoal, veste o macacão adequado ao serviço, enfia-se numa velha carripana onde guarda os materiais  indispensáveis à função e ruma à grande cidade. O destino é um dos bairros da moda, Shibuya, onde estão as doze casas de banho, das quais se ocupa, desenhadas por arquitectos famosos como Kengo Cuma e Tadao Ando. São construções de paredes de vidro, transparentes, amplas, que se tornam opacas quando utilizadas. Parecem lugares de repouso, diria Wenders numa entrevista. Os dias de Hirayama parecem dias felizes. Contudo, até nos pequenos gestos há uma teia de relações com a memória e com o mundo. Nem tudo o que parece é. Ou tudo é e não é. 

 

Na verdade, o sentido do texto fílmico releva da inscrição subtil de sinais alertando para a recusa do estritamente literal. São pequenos apontamentos significantes, que acrescentam camadas de leitura ao nível da significação, sejam eles do âmbito das personagens, dos cenários, da escolha dos ângulos da imagem, da intensidade da luz, da alternância do dia e da noite, da banda sonora ou, simplesmente, dos adereços plantados ao longo das cenas. Todos convergem no sentido de equacionar a harmonia dos dias, porventura, não tão perfeitos quanto se poderia supor. A discreta ambiguidade daí resultante reverte a favor da poética, mas nem por isso se dissocia de um cunho documental, desde logo antecipado na sequência inicial no interior do modesto lugar habitado por Hirayama, bem como pela opção de ratio da imagem 1 33.1, aquele que, regra geral, melhor se ajusta à figuração do real.

 

Em Perfect Days, Kôji Yakusho, o actor de Shohei Imamura em A Enguia (1997), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, é Hirayama. Yakusho tem presença regular no cinema nipónico deste século, bem como participações episódicas em filmes americanos como Memoirs of a Geisha (2005) de Rob Marshall. Tanto é possível vê-lo no palco a representar Shakespeare quanto na televisão a protagonizar anúncios de cerveja, por vezes, na companhia da mulher, Kawatsu Saeko. Faz sistematicamente as capas das revistas. À sua escolha para o papel não terá sido alheio o facto de ser olhado como um símbolo do Japão moderno e contraditório, cujas marcas Wenders descobriu em meados dos anos 70, do século passado, quando, pela primeira vez, visitou Tóquio à procura do mundo do seu mestre Yasujiro Ozu. Nessa altura, a cidade exibia já o contraste resultante do choque entre um vertiginoso desenvolvimento tecnológico e os rituais da cultura tradicional. Num documentário posterior, Tokyo-Ga (1985), o cineasta, a par da evocação de Ozu, designadamente através das participações do seu director de fotografia, Yuharu Atsula, e de um dos seus actores, Chishu Ryu, deixava notas sobre a transformação da sociedade japonesa. Ora o discreto Hirayama de Perfect Days - tal como, noutro sentido, Kôji Yakusho na vida real - é não só uma manifestação dessa metamorfose, mas também de um modo singular de lidar com ela.

 


Hirayama no desempenho das suas funções, um trabalho modesto feito com gosto. Rodado em apenas 17 dias, Perfect Days aproxima-se, em algumas sequências, de um estilo documental que confere realismo ao dia a dia de Hirayama.

Em Notebook on Cities and Clothes (1989), nova incursão no mesmo universo, Wenders volta à questão da interação cultural, desta vez tomando como ponto de partida o estilista de moda Yohji Yamamoto e o seu processo de criação. Neste caso, o vestuário, tendo embora um valor facial em si mesmo, se serve para debater o que é do domínio da cópia e do original, serve também de pretexto para reflectir sobre as relações entre o Oriente e o Ocidente. E, tal como em Tokyo-Ga, emerge a ideia de explorar um significado social tendo como ponto de partida os habitantes das cidades, seja na relação de uns com os outros, seja nos espaços do quotidiano onde se movem. É isso que, uma vez mais, encontramos em Perfect Days.

 

O despertar de Hirayama: The House of the Rising Sun

 

Hirayama dorme num futon, o tradicional colchão que, tal como o kimono ou o sushi, é indissociável da cultura japonesa. Colocado no chão, o futon, dobrando as partes, facilmente se converte num objecto discreto, fácil de arrumar a um canto. Hirayama levanta-se às primeiras horas do dia. Recolhe o futon. O espaço habitado é espartano. Enquanto, meticulosamente, apara o bigode, o espelho que lhe devolve a imagem certifica a presença de rituais quotidianos. Os ângulos da câmara são os de Ozu. Cuida com desvelo das suas plantas. Sai. Parece viver numa periferia. Vendo-o em corpo inteiro à luz difusa do dia que nasce há algo de dissonante na relação da aparência da sua pessoa com o macacão azul que veste para o trabalho.

 

Hirayama vai ao encontro da grande cidade ao volante de uma viatura anacrónica, certamente em desuso no século XXI. Segue pelos viadutos suspensos ao som de The House of the Rising Sun, uma canção folk americana cuja origem se perde no tempo. A versão é a da banda britânica The Animals, de 1964. Tóquio acorda. Aparentemente, a cena é linear. Mas, pode não ser assim. Por exemplo, a canção, originalmente Rising Sun Blues, fala de de almas à deriva, de alguém que se perdeu num bordel em New Orleans:

 

There is a house in New Orleans

They call the Rising Sun

And it’s been the ruin of many a poor boy

And God I know I’m one

 

Ora, almas à deriva, aliás, olhadas com compreensão por Hirayama, são a maioria das personagens de Perfect Days. É o caso de Takashi, o seu jovem e inconstante companheiro de limpezas, bem como da namorada, a volátil Aya, que trabalha num bar e reclama dinheiro para se deixar conquistar. Um e outro são jovens. Pertencem a outra geração. São nativos digitais inadaptados ao mundo no qual nasceram posto que ali não encontram nem lugar seguro, nem porto de abrigo. Esse mundo é o do pujante capitalismo japonês com as suas metamorfoses, desafios e desigualdades, sinais de uma insidiosa relação mercantil que alastra nas relações pessoais. Gostam da música de Hirayama, mas pasmam quando se apercebem de que o suporte é o da cassete analógica, da qual não têm memória.



Takashi precisa de dinheiro e lembra-se da existência de um armazém de música analógica onde quer vender as cassetes de música de Hirayama. Hirayama reage instintivamente.

Esses sinais de outro tempo persistem em Perfect Days em simultâneo com o tempo de agora. Por exemplo, Wenders não filma o lado espectacular da megalópolis de 37 milhões de habitantes que é Tóquio com a sua arquitectura futurista e feitos tecnológicos. Sobre esse lado da cidade limita-se a breves apontamentos, como no caso do bairro de Shibuya. As mais das vezes, opta por espaços reservados, discretos, longe da luz dos holofotes. Num desses lugares fica o bar onde Hirayama vai depois do dia de trabalho. Poucas pessoas, solitárias, ocupam meia dúzia de mesas, como que ausentes. A proprietária, por quem, Hirayama parece ter especial afecto, é uma mulher da sua geração que usa o traje tradicional e a quem chamam Mama. Outrora cantora, ela cede ao pedido dos clientes e canta uma versão em japonês da canção que fala das almas perdidas, ou seja, The House of the Rising Sun.

 

Dá título ao filme outra canção. É Perfect Day de Lou Reed do seu primeiro álbum, pós Velvet Underground, gravado em 1972. Tal como The House of the Rising Sun, o tema é utilizado duas vezes. Uma, na versão original, outra, nos créditos finais, ao piano, num registo marcado pela nostalgia. “Oh, it’s a perfect day, I´m glad I spent it with you”, diz Reed, que, adiante, acrescenta: “You made me forget myself. I thought I was someone else, someone good.” Não faria sentido explorar aqui a crise existencial do músico quando gravou Perfect Day, atormentado pela dúvida sobre a sua identidade sexual e viciado em heroína, salvo por uma única razão. Se na canção há um antes e um depois de Lou Reed, o mesmo sucede com os dias de Hirayama.

 

Ele observa atentamente o que à maioria passa despercebido, pequenos pormenores do quotidiano, gestos, a luz do dia, desconhecidos como a rapariga que costuma sentar-se num banco de jardim ao lado do seu quando interrompe as limpezas para descansar, o sem abrigo de quem a câmara de filmar de Franz Lustig nunca se aproxima, revelando-lhe apenas a silhueta. Essa atenção ao que o rodeia leva-o a fotografar a folhagem das árvores com uma pequena máquina de bolso, analógica, sendo a revelação da película feita sempre no mesmo estabelecimento. As fotografias são arquivadas em caixas de cartão com o mesmo critério que parece presidir à arrumação dos livros da sua biblioteca. Hirayama não anda à deriva. Tão pouco é um excluído. Faz o que faz por opção, filtrada pela memória e pela experiência de um antes, cujos indícios vão sendo plantados dando a entender que estão neles as raízes do depois.

 


Wim Wenders sobre Hirayama : “The skill is very simple: for him, all people are equal. For him, there are no nobodies. In his own opinion, he is not a nobody either. So, he recognizes the ‘nobodies’ around him very acutely. That homeless character, too, is an important human-being in his eyes. Because Hirayama notices him, we see him, and we see how amazing he is.”

Hipótese: do real ao virtual

 

Hirayama é uma personagem complexa. A  sua simplicidade aparente resulta de um método. Tal como a narrativa, urdida como um desafio. Quando Hirayama descobre, numa das casas de banho, um papelinho escondido que propõe o jogo do galo e aceita jogar com um adversário anónimo, preenchendo, dia após dia, um espaço, em busca da linha, é como se Wenders nos estivesse a propor algo de semelhante em relação à leitura de Perfect Days. Se Hirayama sente prazer em jogar, é porque o jogo tem uma dimensão lúdica e um lado de descoberta. O mesmo acontece no cinema na relação do espectador com o filme. Sendo o espectador múltiplo, o diálogo será necessariamente plural em função de diferentes percepções. Em todo o caso, nunca será um diálogo sem esforço.

 

Vejamos. Hirayama é um leitor sofisticado. Logo no início vêmo-lo a ler William Faulkner, prémio Nobel da Literatura de 1951, que é um experimentador. Faulkner serve-se com frequência do chamado fluxo da consciência, uma técnica igualmente presente em escritores como Marcel Proust, James Joyce ou Thomas Mann. Expõe diversos pontos de vista em simultâneo e explora a mudança dos tempos narrativos. Sendo a obra de Faulkner um desafio, ao citá-la, Wenders parece sugerir que o mesmo sucede a propósito da leitura de Perfect Days. Numa outra cena, vê-se um livro da enigmática Patricia Highsmith, mestre do romance policial, como que alertando para a necessidade de fazer perguntas para efeito da identificação da personagem de Hirayama, seja no plano psicológico, seja no plano da sua circunstância. Sinais como estes, se anotados, fazem do diálogo com o filme uma aventura porque dão sentido a cenas e sequências que, de algum modo, deles resultam como corolário.

 

Exemplo disso é a visita à enorme loja de música analógica onde Takashi leva Hirayama com o intuito de saber quanto poderiam valer as suas cassetes. Com surpresa, ambos constatam que valem muito. Takashi quer vender porque precisa de dinheiro. Hirayama recusa porque não quer prescindir de algo para ele essencial. Prefere dar ao jovem amigo dinheiro vivo a desfazer-se do que gosta. Pergunta: é no mundo analógico, na sua cultura, que Hirayama encontra o fundamento para o seu modo de vida? Possivelmente. Aliás, quando procurado pela sobrinha, Niko, outra jovem errante à procura de um sentido para a vida, ele não lhe dá conselhos, mas conversa, algo que já poucos fazem, e deixa-a ler os seus livros onde há mundos dela desconhecidos. Ambos passeiam de bicicleta, ele revela o que faz, ela percebe que o tio tem uma atenção às pessoas e às coisas rara no tempo presente. Quer passar a viver com ele.

 

Porém, ao cair da noite, como uma ameaça, há-de chegar um automóvel de luxo, negro, com motorista. Estaciona junto da casa onde vive Hirayama. Dele sai a mãe de Niko. Vem buscá-la. É uma mulher da elite social. Jamais poderia tolerar que a filha abandonasse uma situação privilegiada para se envolver no desconhecido, olhado como pobreza, portanto, como uma ameaça. Resignada, mesmo se contrariada, Niko parte. Ficamos, assim, a saber da existência de uma barreira intransponível entre o mundo de Hirayama, afinal de origem social bem menos modesta daquela que aparenta, e o mundo da família organizado em torno das relações sociais capitalistas do Japão contemporâneo.    

 


Hirayama e Niko passam juntos dias felizes, todavia, condicionados pelo que ambos sabem ser efémero. Pertencem à mesma família, mas vivem em mundos diferentes.

Komorebi

 

Como acontece habitualmente no seus filmes, também em Perfect Days Wenders foge da retórica. Não busca a persuasão. No entanto, ao registar detalhes a partir dos quais se estabelecem pontes com o tempo presente, quer através dos dispositivos de identificação do real quer, sobretudo, em função da densidade poética inscrita na narrativa, o cineasta propõe um diálogo de amplas consequências. As premissas alinhadas em Perfect Days prestam-se, com efeito, em função dos recursos da linguagem, a múltiplas leituras. Tanto podem conduzir à metáfora, como sucede na cena em que o ex-marido de Mama, a dona do bar, procura Hirayama e lhe diz ter pouco tempo de vida devido a um cancro, quanto podem sugerir a alegoria, caso da cena final quando Hirayama começa um novo dia ao volante da sua carrinha ao som de Feeling Good de Nina Simone, do álbum de 1965 intitulado I Put a Spell on You.

 

No primeiro caso, Hirayama, propõe ao ex-marido de Mama uma espécie de jogo das sombras. É noite. A iluminação pública do lugar onde se encontram projecta as silhuetas de ambos no solo. Se mudam de lugar, assim também se movem as respectivas sombras. Cada um tenta apanhar a sombra do outro como se estivessem a encenar um teatro para o qual não há respostas fechadas e, tão pouco, um desfecho previsível. O que conta é a sua natureza mágica, a poética capaz de estimular a Imaginação, fazendo da dimensão lúdica da busca um objectivo em si mesmo. Ou seja, o jogo no lugar da vida.

 

No segundo caso, temos a alegoria, uma ideia abstracta que procede das sucessivas metamorfoses do real expressas em figuras de estilo como a metáfora, a analogia e a comparação, ou, dito de outro modo, das representações simbólicas que ao longo do texto fílmico convergem no sentido de conferir densidade dramática à personagem de Hirayama. Nessa alegoria cabe a sua filosofia de vida: a câmara não se afasta do rosto, em close-up, de Kôji Yakusho, que muda apenas a expressão facial, enquanto conduz, através de um brilhante exercício cinésico. Feeling Good está em primeiro plano sonoro:

 

Birds flying high, you know how I feel

Sun in the sky, you know how I feel

Breeze driftin' on by, you know how I feel

It's a new dawn, it's a new day, it's a new life

For me

And I'm feeling good.

 

Hirayama tem uma filosofia de vida que muitos de nós perdemos. Ele não ignora ninguém. Olha com interesse para todos. Lê. Ouve música. Faz fotografias. Presta especial atenção à luz do sol filtrada através da folhagem das árvores. A essa luz, dir-se-ia primordial, chamam os japoneses komorebi. Komorebi é a palavra com que acaba Perfect Days.

 


Komorebi  

 

 

 

 

 

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Atualizado: 6 de fev. de 2024


Quando Paul Thomas Anderson fez Magnolia não tinha ainda completado 30 anos. Eu tinha chegado aos 50, preparava-me para uma nova aventura profissional e estava farto de trabalhar em jornalismo de televisão. Adiante ver-se-á a razão pela qual falo de mim a propósito deste filme cuja percepção, na altura, foi declinada de múltiplas maneiras, ficando até a ideia de ninguém o ter entendido muito bem. Salvo, talvez, João Benard da Costa.



Estou bem lembrado da celeuma levantada pela chuva de sapos que desaba perto do final, bem como da dificuldade em encontrar um fio condutor naquela narrativa onde tudo acontece em simultâneo ao longo de 24 horas de um dia como os outros, feito de coincidências e acasos sem, todavia, nada acontecer por coincidência ou acaso. O filme começa, aliás, com citações sobre a coincidência e o acaso. Mas vejam a imagem abaixo.


Fonte: Diabolique Magazine

Ao fundo, do lado esquerdo, estão três homens. O do meio é “Quiz Kid” Donnie Smith (William H. Macy) que disputa ao homem mais velho, à direita, o jovem barman, à esquerda, de um bar frequentado por gays. “Quiz Kid” é carente de amor e só pensa em arranjar o dinheiro necessário para o dentista que lhe há-de colocar uma dentadura irresistível. Herdou a alcunha por ter ganho em miúdo um concurso de televisão campeão de audiências. É essa a sua glória. Ameaçado de despedimento, passa o tempo a lembrá-la ao patrão.


O polícia (John C. Reilly) intervém nos pequenos casos do dia a dia em San Fernando Valley procurando cumprir a sua missão o melhor possível. Tem uma vida solitária, foi abandonado pela mulher, frequenta sites que prometem relações sérias e apaixona-se à primeira vista por Claudia (Melora Walters), à direita, quando é chamado pelos vizinhos da jovem, queixosos da estridência da música em casa dela. Claudia, viciada em drogas duras, há muito perdeu o controle da vida. É filha de Jimmy Gator (Philip Baker Hall), um astro da televisão há 30 anos a fazer o quiz show que opõe crianças a adultos chamado What the Kids Know. O médico acabou de lhe comunicar ter apenas dois meses de vida. Cancro. Claudia não fala com o pai por quem foi abusada.


Também abusado pelo pai, mas de outra maneira, é Stanley Spector (Jeremy Blackman) o miúdo prodígio que não falha uma pergunta no What the Kids Know e passa os dias enfiado numa biblioteca a meter informação na cabeça para o desempenho televisivo. É essa a vida que o pai lhe proporciona. Horas a fio isolado e corridas para o estúdio. O miúdo é infalível. Até ao dia em que se nega a responder às perguntas por não o terem deixado ir à casa de banho antes do início do programa.


Em primeiro plano está Linda Partridge (Jullianne Moore), uma mulher com os nervos destroçados, permanentemente assistida por um psiquiatra, dependente de medicação sem a qual não consegue viver. Linda é casada com um homem muito mais velho, “Big Earl” Partridge (Jason Robards), que abandonou a primeira mulher para casar com ela. “Big Earl” é o homem deitado na cama, entubado. Está em fase terminal. Cancro. É o produtor de What the Kids Know. Sabe que Linda casou com ele por interesse e vai morrer atormentado pelos remorsos, inesperadamente, com o filho Frank Mackey (Tom Cruise) a seu lado.


Frank é um guru sexual de homens incapazes de seduzir mulheres, uma espécie de pregador religioso. Aconselha a brutalidade. A sua máxima é “Respect the Cock and Tame the Cunt”. Há anos não vê o pai nem o pai sabe dele, posto que mudou de nome. Mas, após uma entrevista catastrófica em que é levado a expor-se na televisão, cede ao pedido de Phil (Philip Seymour Hoffman), que o encontra por acaso, e vai a casa do progenitor para se reconciliar e despedir. Phil, o dedicado enfermeiro à cabeceira do moribundo trata dele o melhor que pode num quarto enorme onde ao fundo há um aparelho de televisão onde passa o programa de “Big Earl” apresentado por Jimmy Gator.


Voltem agora à imagem. Atentem no discreto lugar da televisão. E como tudo parece girar à sua volta.


Stanley, o miúdo prodígio da televisão

Gostei do filme quando há 20 anos o vi pela primeira vez. Senti, é verdade, uma estranha incomodidade perante aquela fantasmagoria de seres à deriva, perdidos de si mesmos, capitulando perante a sua própria circunstância, ou, quando muito, ensaiando a busca de uma hipotética tábua de salvação nem que fosse através da aquisição de uns dentes postiços. Também não me apropriei por inteiro da narrativa que subverte o cânone - coisa que habitualmente não me põe problemas, bem pelo contrário - e espantosamente dá coerência ao emaranhado das histórias dos protagonistas. Fosse como fosse, na altura, não me apeteceu pensar muito no assunto. Passei à frente.


Magnolia é do mesmo ano de American Beauty de Sam Mendes que conta com uma notável interpretação de Kevin Spacey no papel de Lester Burnham, um homem na crise da meia idade apaixonado pela melhor amiga da filha adolescente. Gostei de American Beauty - estaria eu a passar por uma crise da meia idade? - e disse-o ao João Benard da Costa numa daquelas com ele sempre inevitáveis conversas sobre cinema. Foi entre cafés e cigarros no bar do Hotel New York, em Roterdão, um espaço magnífico criado a partir da recuperação do edifício de onde, noutros tempos, embarcaram os emigrantes holandeses com destino à América.


Sempre um cavalheiro, sempre candidamente um pouco perverso, sempre divertido, o Benard tinha algumas reservas a meu respeito. Nunca fiz questão de saber porquê, mas tinha. Levava muito a sério o exercício de tutela de um certo gosto cinéfilo, não gostava do documentário, detestava os filmes de Joris Ivens e no primeiro encontro na Cinemateca para tratar da Programação da Odisseia nas Imagens do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, ao tomar conhecimento do papel atribuído ao cinema documental, perguntou: então, e o grande cinema? Além disso, apesar de ter chegado a fazer parte do Júri de um festival internacional de documentários para televisão, o MAT, deixou logo claro que com ele “televisão nem pensar”. Talvez esse fosse outro ponto a meu desfavor, não sei. Quanto ao mais, era um conversador e um contador de histórias fantástico, escrevia muitíssimo bem e tinha verdadeira paixão pelo Cinema. Eu adorava ouvi-lo. Por isso, quando ele torceu um pouco o nariz a American Beauty e contrapôs Magnolia como um dos grandes filmes do final do século XX, muito complexo, decidi voltar a vê-lo. Pois só aconteceu agora. Andava eu ocupado na recuperação de arquivos e cadernos e eis que num deles encontro as notas dessa viagem a Roterdão, designadamente da conversa no bar do Hotel New York. Tratei de rever o filme. Fiquei agarrado ao ecrã.


Claudia e o polícia, o amor desesperado

Ao contrário da maioria da produção americana da época não há uma ou duas personagens centrais. Há sim vários protagonistas, com exposição episódica no ecrã, que Paul Thomas Anderson transformou em personagens. Todas elas são essenciais à coerência do mosaico. Criar personagens no cinema é sempre um exercício difícil. Obedece a opções num quadro relacional que convergem no sentido de urdir a espessura dramática sem a qual não é possível operar a metamorfose que transforma meros protagonistas em verdadeiras personagens. Em Magnolia, essa metamorfose passa pela montagem de momentos vividos em paralelo pelos diversos protagonistas, momentos esses cuja intensidade dramática se expressa em crescendo e tem como horizonte ora a busca cega de algo que ainda valha a pena, nem que seja uma quimera, ora a morte como fim inexorável de todas as ilusões.


Numa versão livre, o clímax do filme é mais ou menos como segue. “Quiz Kid", em desespero de causa, rouba o dinheiro escondido pelo patrão para poder comprar uns dentes novos, Linda, talvez à procura da redenção, descobre que afinal ama o homem com quem casou por conveniência enquanto ele, “Big Earl”, morre atormentado pelo remorso tendo a seu lado o filho Frank banhado em lágrimas, o tal que ensina a maltratar mulheres como Claudia, a junkie abusada pelo pai, Jimmy Gator, a estrela moribunda do show televisivo What the Kids Know onde o miúdo prodígio Stanley, farto do papel que representa, acaba de urinar nas calças deixando o pai que o explora à beira de um ataque de nervos. E quando o Polícia salva “Quiz Kid” levando-o a devolver o dinheiro roubado, e quando os percursos de todos se cruzam desaba uma chuva de sapos. Bíblica. Exodus 8:2 “And if thou refuse to let them go, behold, I will smite your whole territory with frogs.”


Quando “Quiz Kid” rouba o dinheiro do patrão

Há ainda um miúdo, um rapper. No contexto da narrativa, ele, sim, parece surgir por acaso. Mas não é assim. O miúdo interpela o polícia depois de uma detenção em casa de uma negra e diz-lhe que escute bem, porque é ele quem tem a chave de tudo:


"Try to listen and learn. Check that ego. Come off it, I’m the prophet, the professor, I’m-a teach you about the Worm, who eventually turned to catch wreck with the neck of a long-time oppre’’ssor. And he’s running from the devil, but the debt is always gaining, and if he’s worth being hurt, he’s worth bringing pain in. When the sunshine don’t work, the good Lord bring the rain in.”


Um grandíssimo filme, digo eu, agora, quando passaram 20 anos sobre a estreia de Magnolia e também da minha saída desse estranho mundo da televisão. Estranho porque tendo andado por aquele aquário um quarto de século, a par das horas boas que por lá vivi, fiquei a perceber demasiado bem os seus meandros, o jogo de figuras de palha que põe em marcha as suas engrenagens. Digo isto porque Magnolia, não sendo um filme sobre a televisão é um filme que tudo tem a ver com ela e com a sociedade esquizofrénica que ajudou a criar. Todas as personagens, direta ou indiretamente, lhe estão ligadas. Ou porque são os donos, ou celebridades, ou porque a ela são chamados, ou dela fazem parte desde miúdos como “Quiz Kid” e Stanley, ou porque, simplesmente, vendo-a, a tomaram sempre demasiado à letra.


O fim do século passado terá sido também o fim do ciclo existencial de algum modo induzido pela televisão. Talvez isso esteja em Magnolia, naquela praga de sapos, na densa espessura dramática daqueles seres à deriva, todavia profundamente humanos, não sei. Sei que a centralidade da televisão passou ao lado de dezenas de críticas feitas à época, embora me pareça absurdo admitir que Paul Thomas Anderson não tenha pensado na carga simbólica nela contida. Muito pelo contrário. Na verdade, pelas conexões narrativas, rompendo no plano formal com as convenções da indústria de Hollywood, Magnolia já não é um filme do tempo da televisão. É já um filme de outro tempo, um filme de hipertexto.


O leito de morte de “Big Earl”

Quando vemos uma obra cinematográfica não podemos evitar vê-la na companhia de tudo quanto em nós habita. Por isso, todos a vemos de maneira diferente. Quando nessa longínqua noite no Hotel New York em Roterdão nos despedimos, Benard da Costa disse-me: olhe, pense no Magnolia. Tinha razão. E eu estive demasiado tempo no interior do aquário.


Exodus 8:2 “And if thou refuse to let them go, behold, I will smite your whole territory with frogs

Atualizado: 22 de out. de 2023


Quando vejo um filme, das duas uma, ou o filme continua na minha cabeça até muito depois de o ver, ou simplesmente esqueço-o. Também há filmes que não vejo até ao fim. E outros que vejo muitas vezes. Bram Fischer (2017) de Jean Van De Velde é daqueles em que se fica a pensar, não apenas por motivos da razão, mas também pela razão dos afetos. Acontece-me algo de parecido com os livros. Suponho ter isto a ver numa primeira camada com a inteligência emocional e, depois, com aquilo que é habitualmente designado por fenomenologia do espectador - ou do leitor -, em função da qual cada um de nós, em maior ou menor grau, assume a co-autoria da obra. Ora este é um filme que transportando-me ao passado, me reconcilia com o presente e abre uma janela para o futuro. Passou a fazer parte de mim. E eu dele.



Quando em 1966 fui a Pretória pela primeira vez para começar a tratar da minha inscrição na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, nada sabia do famoso julgamento de Rivonia, cuja sentença condenara Nelson Mandela a prisão perpétua. Sabia que ele estava preso, apenas isso. Eu tinha 18 anos. A imprensa moçambicana raramente mencionava Mandela e quando o fazia era para o apresentar como o chefe terrorista que atentava contra a boa ordem do apartheid sul africano. A guerra colonial seguia o seu curso. Também dela pouco se falava salvo para comunicar operações de sucesso das tropas portuguesas, na versão oficial sempre à beira de acabar com os chamados focos de rebelião. Mas, da guerra colonial, por razões de proximidade, sempre se ia sabendo alguma coisa. Aliás, muita coisa. Embora, no paraíso artificial que era Lourenço Marques, entre os jovens brancos fossem bem mais aqueles que ou não queriam saber ou preferiam iludir-se na fantasia da mitologia nacionalista vivida em casa e ensinada na escola. Havia, obviamente, exceções. Conheço até quem, ainda durante a guerra colonial, tenha ingressado na Frelimo.


A minha primeira impressão de Pretória, a capital da África do Sul, ficou influenciada por funcionários de uma burocracia agressiva, pessoas desagradáveis, de modos bruscos, recusando falar inglês. Nessa altura, valha a verdade, esclarecida a circunstância de ser um português de Moçambique, as coisas melhoraram consideravelmente. Condescenderam em falar inglês. Tornaram-se mais amáveis. Ao fim e ao cabo, também na terra dos vizinhos se combatiam terroristas como Mandela, segundo eles. Quem eram eles? Pois eram os Afrikaners, o grupo mais numeroso de quantos constituíam a minoria branca, a base do regime, muitos deles descendentes dos colonos calvinistas dos Países Baixos que tinham lutado contra o Império Britânico. A sua língua era o Afrikaans.


Quando voltei a Pretória alguns anos mais tarde já me tinha apercebido do quanto essa primeira impressão só parcialmente correspondia à realidade. Com efeito, alguns dos intelectuais e oposicionistas mais destacados da África do Sul vinham dessa linhagem dos boers como era o caso do homem cujo nome dá o título a este filme do holandês Jean Van De Velde, Bram Fischer - An Act of Defiance.


Bram Fischer (Peter Paul Muller) discute a estratégia da defesa para o julgamento de Rivonia

Bram Fischer liderou a equipa de advogados de defesa de Nelson Mandela e dos seus dez companheiros da Aliança do Congresso Africano (ANC), todos acusados de alta traição, no julgamento realizado no Palácio da Justiça, em Pretória, nos anos de 1963/64. Lembro-me do edifício de cor ocre, uma elegante embora austera construção do século XIX, em Church Square, bem como da estátua do mítico Paul Kruger, herói afrikaner, mas, por qualquer razão, lembro-me sobretudo das ruas marginadas de jacarandás como se a profusão de flores lilases emprestasse leveza a um lugar estigmatizado como símbolo da segregação racial. Não sei se hoje Church Square continua a ser Church Square, se ainda há jacarandás. Sei que a memória desse outro tempo, tão rigorosa e sobriamente evocada no filme, me devolveu inteiro o discurso do julgamento de Rivonia - só tive conhecimento dele depois da minha primeira passagem por Pretória -, no qual Mandela denunciou com liminar clareza a engrenagem do apartheid:


“A falta de dignidade humana vivida pelos africanos é resultado direto da política de supremacia branca. A supremacia branca supõe a inferioridade negra. A legislação que visa preservar a supremacia branca institucionaliza essa noção. As tarefas subalternas na África do Sul são invariavelmente realizadas por africanos. Quando qualquer coisa precisa ser carregada ou limpa, o branco olha em volta, à procura de um africano que o faça por ele, quer o africano seja empregado por ele, quer não. Devido a esse tipo de atitude, os brancos tendem a olhar os africanos como uma raça diferente”.


Ainda Mandela:


“Não nos veem como pessoas que têm as suas próprias famílias; não percebem que nós temos emoções; que nos apaixonamos, como se apaixonam os brancos; que queremos estar com as nossas mulheres e os nossos filhos, como os brancos querem estar com os deles; que queremos ganhar dinheiro, dinheiro suficiente para sustentar as nossas famílias adequadamente, alimentá-las, vesti-las e fazê-las frequentar a escola. E que empregado doméstico, jardineiro ou lavrador braçal pode algum dia ter a esperança de fazer isso?”


Rigorosamente assim, posso testemunhá-lo. Tal como o fez Bram Fischer, um dos mais conceituados advogados da África do Sul vivendo confortavelmente com a família numa moradia com piscina numa zona residencial reservada a brancos onde não faltavam os serviçais negros para as tarefas domésticas. Naquele tempo era assim. Mas Bram Fischer não só conhecia como poucos os mecanismos jurídicos do regime, como também estava empenhado em destruí-lo para abrir caminho a uma sociedade justa e democrática. Na verdade, ele era um destacado dirigente do Partido Comunista Sul-Africano na clandestinidade, algo que tanto as autoridades quanto a maioria das pessoas, mesmo as mais próximas, à exceção da mulher, desconheciam. Para as autoridades, até determinada altura, Fischer poderia ser um opositor liberal, nunca um comunista. Como suspeitar a tal ponto de um membro da aristocracia afrikaner, formado em Oxford, filho do juiz Presidente do Orange Free State e neto do Primeiro Ministro da colónia de Orange River? Na sua autobiografia The Long Walk to Freedom, Nelson Mandela descreve-o como “the bravest and staunchest friend of the freedom struggle that I have ever known”. Um homem que tinha tudo e que de tudo abdicou em nome de princípios, por decência, observando a sua consciência face à situação descrita por Mandela no tribunal de Pretória:


“A pobreza e a desintegração da vida familiar têm efeitos secundários. Crianças perambulam pelas ruas das townships porque não têm escolas a frequentar, ou não têm dinheiro que lhes possibilite frequentar a escola, ou não têm pais em casa para verificar se vão à escola, porque pai e mãe, quando os dois estão presentes, precisam trabalhar para manter a família viva. Isso leva a uma ruptura nos padrões morais, ao aumento alarmante da ilegitimidade e à violência crescente que explode não apenas politicamente, mas em toda a parte. A vida nas townships é perigosa. Não se passa um dia sem que alguém seja apunhalado ou agredido. E a violência é levada para fora das townships, para as áreas residenciais brancas. As pessoas têm medo de andar sozinhas na rua à noite. Os assaltos e arrombamentos de casas vêm aumentando, apesar do fato de que tais crimes podem agora ser punidos com a sentença de morte. Sentenças de morte não podem curar a ferida aberta.”


Bram Fischer e a mulher, Molly Krige (Antoinette Louw)

Tudo isto constitui o pano de fundo de filme de Jean Van De Velde. Feito com meios relativamente modestos, apesar de beneficiar de um acordo cultural para a produção de cinema celebrado entre a Holanda e a República da África do Sul, bem como do apoio de alguns organismos e programas europeus, o filme é paradigmático quanto a sobriedade e rigor. Evita quer a ganga retórica quer o espectáculo gratuito, assumindo uma vertente documental que assenta numa estrutura narrativa clássica em três atos. Esse realismo, sublinhado por uma excelente reconstituição da época, confere espessura dramática a personagens complexas vivendo no fio da navalha, e faz avançar a história em função de pontos de viragem ancorados em fatos comprovados.


Em Abril de 1960, o Congresso Nacional Africano (ANC) e o Congresso Pan Africano foram ilegalizados. À semelhança do que aconteceu nas colónias portuguesas, sem interlocutores no plano institucional, os movimentos da resistência sul-africana voltaram-se gradualmente para a luta armada. Em 1961, o ANC e os seus aliados do Partido Comunista formaram o Umkhonto we Sizwe (MK) dando início a um plano de sabotagem. Mandela saiu clandestinamente do país em busca de apoios de países africanos independentes, designadamente para efeito de treino de um exército de guerrilha. No regresso ao país foi preso. Mais tarde, em 1963, a polícia conseguiu localizar o quartel-general do MK num subúrbio de Rivonia, a norte de Joanesburgo, prendendo 17 pessoas, entre elas os mais destacados dirigentes do movimento, e apreendendo numerosos documentos. Os detidos ficaram incomunicáveis com base numa lei recente feita à medida da situação. Sete deles, a par de Mandela e outros companheiros, iriam responder por crimes do âmbito da Lei da Sabotagem de 1962 que instituíra a pena de morte. Era essa a sentença que pairava no julgamento de Pretória.


Bram Fischer - notável interpretação do ator Peter Paul Muller - elabora uma estratégia orientada no sentido de tentar evitar a condenação à morte pela forca pedida pelo Procurador-Geral, Percy Yutar, o mesmo que Nelson Mandela, após a sua eleição como Presidente da República, iria convidar para um almoço de reconciliação. Durante o período de tempo que dura o julgamento, nem sempre, Fischer e Mandela, também advogado, estão de acordo. Mas decidem aceitar alguns fatos da acusação de modo a urdir uma teia de atenuantes. No fundo, apelavam à consciência do juiz confrontando-o com a iniquidade do apartheid, sugerindo que à população negra apenas fora deixada a hipótese do recurso à violência ainda que, até ao momento, dela não houvesse exemplo.


Mas Fischer parte para as alegações finais sem ter a certeza de como será o discurso de Mandela. Diz-lhe uma última vez: temos de evitar a pena de morte.


Diria Mandela, a terminar a sua alegação:


“Dediquei toda minha vida a esta luta do povo africano. Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio negro. Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pessoas convivam em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual eu espero viver e que espero ver realizado. Mas, Meritíssimo, se preciso for, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.”


Nelson Madela (Sello Motloung) no discurso final

Em 11 de Junho de 1964, o juiz Quartus de West proferiu uma sentença de prisão perpétua. Mandela não seria enforcado. A mulher de Bram Fischer, Molly Krige - outra grande interpretação de Antoinette Louw -, também ela membro do Partido Comunista, morreu num acidente do qual o marido sempre se sentiu responsável. Fischer entrou na clandestinidade. Foi preso e condenado a prisão perpétua por violação do Ato de Supressão do Comunismo (Suppression of Communism Act). Adoeceu com cancro, sendo-lhe negada a liberdade para poder tratar-se. Foi-lhe, no entanto, concedido, numa fase terminal, morrer junto da família em Bloemfontein, o que aconteceu em 1975. O governo sul-africano fez desaparecer as suas cinzas de modo a evitar a criação de um lugar simbólico da resistência para os opositores do regime.


Ficando a pensar no filme, lembrei-me da minha segunda visita a Pretória. Depois da passagem fracassada pela Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo segui para a Universidade do Porto onde, em vez de me dedicar ao curso de Economia, que detestei, enveredei pelo movimento associativo e pelas atividades do Cine-Clube. Houve o Maio de 68 em Paris e a crise académica de Coimbra de 1969. A guerra colonial parecia cada vez mais um beco sem saída. Mas era o que me esperava, apesar de ter ponderado outras hipóteses. Em 1970, regressei à casa paterna em Lourenço Marques. Enquanto aguardava a chamada para a tropa voltei a Pretória para me inscrever num curso por correspondência de Sociologia e Filosofia na Universidade da África do Sul (University of South Africa). A cidade pouco parecia ter mudado. Mas mudara, muito. Era agora visivelmente a capital de um regime opressor, sitiado. Não me lembro de ter visto jacarandás. Para o bem e para o mal, como em tudo, eu também estava diferente.


Olhando para a imagem de promoção do filme que se segue, que vejo?



Do lado esquerdo, terminado o julgamento de Rivonia, um automóvel conduzido por Bram Fischer, com a mulher ao lado, rasga o vasto espaço da savana africana naquela que será a última viagem de Molly Krige. Eles não o sabem. Festejam ainda a sentença do juiz Quartus de West pois sabem que com Mandela vivo se abrem novos caminhos para o futuro. Em primeiro plano está Bram Fischer, aliás Peter Paul Muller. Enquanto o automóvel se afasta com uma parte dele próprio, carrega já o fardo da tragédia pessoal, os olhos cravados num horizonte longínquo, sabendo, melhor do que nunca, não haver caminhos sem pedras nem futuro que não tenha de ser duramente conquistado.





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Jorge Campos

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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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