Hirayama leva a vida a fazer a limpeza das casas de banho de Tóquio. Todos os dias cumpre o mesmo ritual. Levanta-se cedo, trata com esmero da higiene pessoal, veste o macacão adequado ao serviço, enfia-se numa velha carripana onde guarda os materiais indispensáveis à função e ruma à grande cidade. O destino é um dos bairros da moda, Shibuya, onde estão as doze casas de banho, das quais se ocupa, desenhadas por arquitectos famosos como Kengo Cuma e Tadao Ando. São construções de paredes de vidro, transparentes, amplas, que se tornam opacas quando utilizadas. Parecem lugares de repouso, diria Wenders numa entrevista. Os dias de Hirayama parecem dias felizes. Contudo, até nos pequenos gestos há uma teia de relações com a memória e com o mundo. Nem tudo o que parece é. Ou tudo é e não é.
Na verdade, o sentido do texto fílmico releva da inscrição subtil de sinais alertando para a recusa do estritamente literal. São pequenos apontamentos significantes, que acrescentam camadas de leitura ao nível da significação, sejam eles do âmbito das personagens, dos cenários, da escolha dos ângulos da imagem, da intensidade da luz, da alternância do dia e da noite, da banda sonora ou, simplesmente, dos adereços plantados ao longo das cenas. Todos convergem no sentido de equacionar a harmonia dos dias, porventura, não tão perfeitos quanto se poderia supor. A discreta ambiguidade daí resultante reverte a favor da poética, mas nem por isso se dissocia de um cunho documental, desde logo antecipado na sequência inicial no interior do modesto lugar habitado por Hirayama, bem como pela opção de ratio da imagem 1 33.1, aquele que, regra geral, melhor se ajusta à figuração do real.
Em Perfect Days, Kôji Yakusho, o actor de Shohei Imamura em A Enguia (1997), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, é Hirayama. Yakusho tem presença regular no cinema nipónico deste século, bem como participações episódicas em filmes americanos como Memoirs of a Geisha (2005) de Rob Marshall. Tanto é possível vê-lo no palco a representar Shakespeare quanto na televisão a protagonizar anúncios de cerveja, por vezes, na companhia da mulher, Kawatsu Saeko. Faz sistematicamente as capas das revistas. À sua escolha para o papel não terá sido alheio o facto de ser olhado como um símbolo do Japão moderno e contraditório, cujas marcas Wenders descobriu em meados dos anos 70, do século passado, quando, pela primeira vez, visitou Tóquio à procura do mundo do seu mestre Yasujiro Ozu. Nessa altura, a cidade exibia já o contraste resultante do choque entre um vertiginoso desenvolvimento tecnológico e os rituais da cultura tradicional. Num documentário posterior, Tokyo-Ga (1985), o cineasta, a par da evocação de Ozu, designadamente através das participações do seu director de fotografia, Yuharu Atsula, e de um dos seus actores, Chishu Ryu, deixava notas sobre a transformação da sociedade japonesa. Ora o discreto Hirayama de Perfect Days - tal como, noutro sentido, Kôji Yakusho na vida real - é não só uma manifestação dessa metamorfose, mas também de um modo singular de lidar com ela.
Em Notebook on Cities and Clothes (1989), nova incursão no mesmo universo, Wenders volta à questão da interação cultural, desta vez tomando como ponto de partida o estilista de moda Yohji Yamamoto e o seu processo de criação. Neste caso, o vestuário, tendo embora um valor facial em si mesmo, se serve para debater o que é do domínio da cópia e do original, serve também de pretexto para reflectir sobre as relações entre o Oriente e o Ocidente. E, tal como em Tokyo-Ga, emerge a ideia de explorar um significado social tendo como ponto de partida os habitantes das cidades, seja na relação de uns com os outros, seja nos espaços do quotidiano onde se movem. É isso que, uma vez mais, encontramos em Perfect Days.
O despertar de Hirayama: The House of the Rising Sun
Hirayama dorme num futon, o tradicional colchão que, tal como o kimono ou o sushi, é indissociável da cultura japonesa. Colocado no chão, o futon, dobrando as partes, facilmente se converte num objecto discreto, fácil de arrumar a um canto. Hirayama levanta-se às primeiras horas do dia. Recolhe o futon. O espaço habitado é espartano. Enquanto, meticulosamente, apara o bigode, o espelho que lhe devolve a imagem certifica a presença de rituais quotidianos. Os ângulos da câmara são os de Ozu. Cuida com desvelo das suas plantas. Sai. Parece viver numa periferia. Vendo-o em corpo inteiro à luz difusa do dia que nasce há algo de dissonante na relação da aparência da sua pessoa com o macacão azul que veste para o trabalho.
Hirayama vai ao encontro da grande cidade ao volante de uma viatura anacrónica, certamente em desuso no século XXI. Segue pelos viadutos suspensos ao som de The House of the Rising Sun, uma canção folk americana cuja origem se perde no tempo. A versão é a da banda britânica The Animals, de 1964. Tóquio acorda. Aparentemente, a cena é linear. Mas, pode não ser assim. Por exemplo, a canção, originalmente Rising Sun Blues, fala de de almas à deriva, de alguém que se perdeu num bordel em New Orleans:
There is a house in New Orleans
They call the Rising Sun
And it’s been the ruin of many a poor boy
And God I know I’m one
Ora, almas à deriva, aliás, olhadas com compreensão por Hirayama, são a maioria das personagens de Perfect Days. É o caso de Takashi, o seu jovem e inconstante companheiro de limpezas, bem como da namorada, a volátil Aya, que trabalha num bar e reclama dinheiro para se deixar conquistar. Um e outro são jovens. Pertencem a outra geração. São nativos digitais inadaptados ao mundo no qual nasceram posto que ali não encontram nem lugar seguro, nem porto de abrigo. Esse mundo é o do pujante capitalismo japonês com as suas metamorfoses, desafios e desigualdades, sinais de uma insidiosa relação mercantil que alastra nas relações pessoais. Gostam da música de Hirayama, mas pasmam quando se apercebem de que o suporte é o da cassete analógica, da qual não têm memória.
Esses sinais de outro tempo persistem em Perfect Days em simultâneo com o tempo de agora. Por exemplo, Wenders não filma o lado espectacular da megalópolis de 37 milhões de habitantes que é Tóquio com a sua arquitectura futurista e feitos tecnológicos. Sobre esse lado da cidade limita-se a breves apontamentos, como no caso do bairro de Shibuya. As mais das vezes, opta por espaços reservados, discretos, longe da luz dos holofotes. Num desses lugares fica o bar onde Hirayama vai depois do dia de trabalho. Poucas pessoas, solitárias, ocupam meia dúzia de mesas, como que ausentes. A proprietária, por quem, Hirayama parece ter especial afecto, é uma mulher da sua geração que usa o traje tradicional e a quem chamam Mama. Outrora cantora, ela cede ao pedido dos clientes e canta uma versão em japonês da canção que fala das almas perdidas, ou seja, The House of the Rising Sun.
Dá título ao filme outra canção. É Perfect Day de Lou Reed do seu primeiro álbum, pós Velvet Underground, gravado em 1972. Tal como The House of the Rising Sun, o tema é utilizado duas vezes. Uma, na versão original, outra, nos créditos finais, ao piano, num registo marcado pela nostalgia. “Oh, it’s a perfect day, I´m glad I spent it with you”, diz Reed, que, adiante, acrescenta: “You made me forget myself. I thought I was someone else, someone good.” Não faria sentido explorar aqui a crise existencial do músico quando gravou Perfect Day, atormentado pela dúvida sobre a sua identidade sexual e viciado em heroína, salvo por uma única razão. Se na canção há um antes e um depois de Lou Reed, o mesmo sucede com os dias de Hirayama.
Ele observa atentamente o que à maioria passa despercebido, pequenos pormenores do quotidiano, gestos, a luz do dia, desconhecidos como a rapariga que costuma sentar-se num banco de jardim ao lado do seu quando interrompe as limpezas para descansar, o sem abrigo de quem a câmara de filmar de Franz Lustig nunca se aproxima, revelando-lhe apenas a silhueta. Essa atenção ao que o rodeia leva-o a fotografar a folhagem das árvores com uma pequena máquina de bolso, analógica, sendo a revelação da película feita sempre no mesmo estabelecimento. As fotografias são arquivadas em caixas de cartão com o mesmo critério que parece presidir à arrumação dos livros da sua biblioteca. Hirayama não anda à deriva. Tão pouco é um excluído. Faz o que faz por opção, filtrada pela memória e pela experiência de um antes, cujos indícios vão sendo plantados dando a entender que estão neles as raízes do depois.
Hipótese: do real ao virtual
Hirayama é uma personagem complexa. A sua simplicidade aparente resulta de um método. Tal como a narrativa, urdida como um desafio. Quando Hirayama descobre, numa das casas de banho, um papelinho escondido que propõe o jogo do galo e aceita jogar com um adversário anónimo, preenchendo, dia após dia, um espaço, em busca da linha, é como se Wenders nos estivesse a propor algo de semelhante em relação à leitura de Perfect Days. Se Hirayama sente prazer em jogar, é porque o jogo tem uma dimensão lúdica e um lado de descoberta. O mesmo acontece no cinema na relação do espectador com o filme. Sendo o espectador múltiplo, o diálogo será necessariamente plural em função de diferentes percepções. Em todo o caso, nunca será um diálogo sem esforço.
Vejamos. Hirayama é um leitor sofisticado. Logo no início vêmo-lo a ler William Faulkner, prémio Nobel da Literatura de 1951, que é um experimentador. Faulkner serve-se com frequência do chamado fluxo da consciência, uma técnica igualmente presente em escritores como Marcel Proust, James Joyce ou Thomas Mann. Expõe diversos pontos de vista em simultâneo e explora a mudança dos tempos narrativos. Sendo a obra de Faulkner um desafio, ao citá-la, Wenders parece sugerir que o mesmo sucede a propósito da leitura de Perfect Days. Numa outra cena, vê-se um livro da enigmática Patricia Highsmith, mestre do romance policial, como que alertando para a necessidade de fazer perguntas para efeito da identificação da personagem de Hirayama, seja no plano psicológico, seja no plano da sua circunstância. Sinais como estes, se anotados, fazem do diálogo com o filme uma aventura porque dão sentido a cenas e sequências que, de algum modo, deles resultam como corolário.
Exemplo disso é a visita à enorme loja de música analógica onde Takashi leva Hirayama com o intuito de saber quanto poderiam valer as suas cassetes. Com surpresa, ambos constatam que valem muito. Takashi quer vender porque precisa de dinheiro. Hirayama recusa porque não quer prescindir de algo para ele essencial. Prefere dar ao jovem amigo dinheiro vivo a desfazer-se do que gosta. Pergunta: é no mundo analógico, na sua cultura, que Hirayama encontra o fundamento para o seu modo de vida? Possivelmente. Aliás, quando procurado pela sobrinha, Niko, outra jovem errante à procura de um sentido para a vida, ele não lhe dá conselhos, mas conversa, algo que já poucos fazem, e deixa-a ler os seus livros onde há mundos dela desconhecidos. Ambos passeiam de bicicleta, ele revela o que faz, ela percebe que o tio tem uma atenção às pessoas e às coisas rara no tempo presente. Quer passar a viver com ele.
Porém, ao cair da noite, como uma ameaça, há-de chegar um automóvel de luxo, negro, com motorista. Estaciona junto da casa onde vive Hirayama. Dele sai a mãe de Niko. Vem buscá-la. É uma mulher da elite social. Jamais poderia tolerar que a filha abandonasse uma situação privilegiada para se envolver no desconhecido, olhado como pobreza, portanto, como uma ameaça. Resignada, mesmo se contrariada, Niko parte. Ficamos, assim, a saber da existência de uma barreira intransponível entre o mundo de Hirayama, afinal de origem social bem menos modesta daquela que aparenta, e o mundo da família organizado em torno das relações sociais capitalistas do Japão contemporâneo.
Komorebi
Como acontece habitualmente no seus filmes, também em Perfect Days Wenders foge da retórica. Não busca a persuasão. No entanto, ao registar detalhes a partir dos quais se estabelecem pontes com o tempo presente, quer através dos dispositivos de identificação do real quer, sobretudo, em função da densidade poética inscrita na narrativa, o cineasta propõe um diálogo de amplas consequências. As premissas alinhadas em Perfect Days prestam-se, com efeito, em função dos recursos da linguagem, a múltiplas leituras. Tanto podem conduzir à metáfora, como sucede na cena em que o ex-marido de Mama, a dona do bar, procura Hirayama e lhe diz ter pouco tempo de vida devido a um cancro, quanto podem sugerir a alegoria, caso da cena final quando Hirayama começa um novo dia ao volante da sua carrinha ao som de Feeling Good de Nina Simone, do álbum de 1965 intitulado I Put a Spell on You.
No primeiro caso, Hirayama, propõe ao ex-marido de Mama uma espécie de jogo das sombras. É noite. A iluminação pública do lugar onde se encontram projecta as silhuetas de ambos no solo. Se mudam de lugar, assim também se movem as respectivas sombras. Cada um tenta apanhar a sombra do outro como se estivessem a encenar um teatro para o qual não há respostas fechadas e, tão pouco, um desfecho previsível. O que conta é a sua natureza mágica, a poética capaz de estimular a Imaginação, fazendo da dimensão lúdica da busca um objectivo em si mesmo. Ou seja, o jogo no lugar da vida.
No segundo caso, temos a alegoria, uma ideia abstracta que procede das sucessivas metamorfoses do real expressas em figuras de estilo como a metáfora, a analogia e a comparação, ou, dito de outro modo, das representações simbólicas que ao longo do texto fílmico convergem no sentido de conferir densidade dramática à personagem de Hirayama. Nessa alegoria cabe a sua filosofia de vida: a câmara não se afasta do rosto, em close-up, de Kôji Yakusho, que muda apenas a expressão facial, enquanto conduz, através de um brilhante exercício cinésico. Feeling Good está em primeiro plano sonoro:
Birds flying high, you know how I feel
Sun in the sky, you know how I feel
Breeze driftin' on by, you know how I feel
It's a new dawn, it's a new day, it's a new life
For me
And I'm feeling good.
Hirayama tem uma filosofia de vida que muitos de nós perdemos. Ele não ignora ninguém. Olha com interesse para todos. Lê. Ouve música. Faz fotografias. Presta especial atenção à luz do sol filtrada através da folhagem das árvores. A essa luz, dir-se-ia primordial, chamam os japoneses komorebi. Komorebi é a palavra com que acaba Perfect Days.
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