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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


“No trabalho teórico de Vertov sobre questões como a representação, a autenticidade ou a manipulação encontram-se melhores respostas do que em Flaherty ou Grierson”.


Brian Winston

A entrevista que se segue com Brian Winston foi feita na fase final da Odisseia nas Imagens - Porto 2001 Capital Europeia da Cultura. Brian Winston trabalhou durante muitos anos para a BBC, da qual foi correspondente nos Estados Unidos. Realizou inúmeros trabalhos para televisão, entre os quais um número significativo de documentários. Num dos seus livros mais recentes Lies, Damn Lies and Documentaries dá conta das falsificações que têm sido levadas a cabo na televisão britânica com o intuito alcançar ganhos de audiência. Em 1999 publicou no BFI, Fires were started, uma análise exaustiva do filme de Humphrey Jennings com o mesmo nome e que é um clássico da escola documentarista britânica. Vencedor de um Emmy para argumento de documentário nos Estados Unidos, Brian Winston é o director da School of Communications da Universidade de Westminster. Esta entervista, apesar de ter já alguns anos, nem por isso perdeu actualidade, uma vez que permite fazer um balanço de alguns dos aspectos nucleares para a compreensão do filme documentário. Autor de Claiming the Real, uma obra publicada em 1995 que veio inovar a história institucional do Documentário, promovendo, inclusivamente, uma revisão profunda em torno de alguns dos seus eixos até então indiscutíveis, Winston, se outro mérito não tivesse, teria, pelo menos aquele de abalar certezas adquiridas e abrir as portas a novos campos de investigação.


JC. Como e quando escreveu Claiming the Real?

BW. Levei 18 anos a escrevê-lo. Há muitos anos, em 1979, pediram-me um artigo para o Festival de Televisão de Edimburgo. Foi essa a primeira vez que escrevi sobre o filme documentário. Esse artigo foi depois reproduzido pela Sight and Sound, a revista do British Film Institute. Fiquei amigo da editora, Penelope Huston, e passei a colaborar com a revista regularmente. Escrevi sobre Grierson, Riefensthal, e muitos outros. A determinada altura tinha um livro.

JCO livro tornou-se muito polémico...

BW. Sim? Não estou certo disso. As questões levantadas ao tempo da publicação já não eram assim tão controversas na Grã Bretanha, onde de há muito havia juízos muito críticos em relação a Grierson. Noutros países, e especialmente nos países latinos onde não há muita informação sobre estas matérias, é natural que pessoas que literalmente endeusavam Robert Flaherty ou John Grierson, se tenham sentido chocadas. Entre nós isso não aconteceu. O que o livro faz é explicitar muitas das críticas formuladas ao longo dos anos sobre esses e outros autores e reequacionar, em função desses pontos de vista, algumas ideias chave a propósito do filme documentário.

JC. Nessa linha de pensamento como situa, então, Flaherty e Nanook of the North?

BW. Em primeiro lugar há um juízo de carácter político, digamos assim, em relação a todo o percurso de Flaherty, que fez uma espécie de carreira imperial. Os mares do sul, o norte do Canadá, a Índia e a Irlanda eram lugares coloniais ou quase coloniais. O impulso que o moveu era semelhante ao que levou Jean Rouch, em 1960, a fazer um filme sobre uma estranha tribo parisiense, que foi Cronique d’un Été. A determinada altura, esta inclinação de Flaherty por um certo exotismo começou a ser questionada. Começou a perceber-se que o filme sobre o povo innuit não era sobre o modo de vida desse povo em 1920, mas em 1880. Surgiu, também, a evidência de numerosas falsificações, como sejam a construção do igloo de Nannok, que, na verdade, nunca tinha construído um igloo, do mesmo modo como nunca tinha caçado da maneira que o filme mostra. Depois, soube-se que Flaherty teve uma relação com uma esquimó de quem teve um filho, Joseph, cuja filha, por sua vez, veio a dirigir o movimento das mulheres innuit, ou seja, houve um acumular de dados que lançou a suspeita sobre alguns aspectos do seu trabalho. Muita gente teria preferido não evocar estes episódios e deixar o mito de Flaherty tal qual fora construído. Provavelmente, essas pessoas terão encarado a divulgação dos factos como um ataque... De qualquer modo, no meu livro eu nunca nego a importância de Flaherty, porque, o que ele fez, independentemente de ser aquele ou não o modo de vida dos esquimós, foi pegar num assunto e transformá-lo numa história e é isso que é fundamental quando se trata do filme documentário. Foi isso, também, que John Grierson reconheceu.

JC. Dziga Vertov, qual é o seu comentário a propósito deste homem que, ao que se sabe, não era especialmente estimado, por exemplo, por John Grierson?

BW. Eu, pelo contrário, gosto muito de Vertov. Grierson não gostava, mas eu penso que Vertov é extraordinariamente interessante. Claro que falando dele é impossível passar ao lado da política. Ele não era leninista, foi contra a Nova Política Económica na U.R.S.S. e não se deu nada bem com o estalinismo. Mas até por isso se tornou uma figura simpática. Do que não restam dúvidas é que numa era de pensamento pós-moderno, o seu trabalho é cada vez melhor compreendido e cada vez mais estimulante.


JC. Continua a pensar que O Homem da Câmara de Filmar é um filme estimulante?

BW. É um filme que encerra muitas lições. No início de Cronique d’un Été, Jean Rouch diz estar a procurar fazer um filme em busca da verdade, o cinéma-verité. Vertov fez uma série de filmes de actualidades, o Kino-Pravda, que quer dizer justamente cinéma-vérité. Penso que no trabalho teórico de Vertov sobre questões como a representação, a autenticidade ou a manipulação se encontra melhores respostas do que em Flaherty ou Grierson.


JC. Porque razão Claiming the Real é tão crítico, e até cáustico, em relação ao movimento do realismo britânico?

BW.Pela representação que fez de si mesmo. Grierson sempre se apresentou a si próprio como um cineasta radical que estava a contribuir para resolver os problemas do seu tempo. Mas, não fez nada disso. Fazia filmes que se algum efeito tiveram, e vamos partir do princípio que esses filmes foram vistos por aqueles que eram suposto vê-los, o que também não é certo, foi um efeito paliativo, ou seja, lançava poeira aos olhos do descontentamento público. Em Housing Problems, por exemplo, denuncia condições de habitação miseráveis, mas, depois, vem dizer que tudo se resolve porque a companhia de gás vai construir casas...


JC. Propaganda?

BW. Sim, mas para o estado liberal e burguês. Claro que nos anos 30, dada a situação internacional, com a emergência dos estados fascistas na Itália, Alemanha e Espanha, isto até podia parecer menos mal. A questão repito, é que Grierson se apresentava ao resto do mundo como um revolucionário e ainteligentsia via-o como um artista proletário. Enquanto isso recebia dinheiro do governo conservador para fazer os seus filmes e, seguramente, o preço que teve de pagar por isso não autorizou uma grande coerência.


JC. Nos anos 30 e 40, dada a situação em que o mundo se encontrava, o documentário envereda muitas vezes pelos caminhos da propaganda. É o caso de Why we Fight de Frank Capra...

BW. É uma série fantástica. A propaganda não me incomoda. O que contesto é a assumpção de um conceito de objectividade que ninguém consegue provar. Why we Fight não deixa dúvidas, não dá lugar a equívocos, não está do lado de Hitler.

JC. Capra utiliza vezes sem conta imagens, por exemplo, de Leni Riefensthal, dando-lhes um outro sentido...

BW. Inteiramente razoável, como o demonstrou a cineasta soviética Esther Schub, autora de The Fall of the House Romanov, filme feito com imagens do tempo do czar. Capra adoptou o mesmo procedimento. Não tenho nenhuma espécie de reserva em relação a esse procedimento. A mentira reside no facto de pretender que o ponto de vista não existe e não vejo nenhum problema em expressar esse ponto de vista, mesmo que seja terrível, como no caso de Riefensthal. Sendo fascista não pode ser acusada de ter pretendido ser objectiva. Toda a gente sabe o que vai encontrar nos seus filmes.

JC. Num dos episódios de Why we Fight intitulado The Battle of Russia, Capra consegue dar uma visão inteiramente positiva da U.S.R.R. o que, à época, para um americano médio, seria totalmente incompreensível. Tratava-se, evidentemente de propaganda, mas era, também, uma forma muito hábil de intervir politicamente. Parece-lhe que a natureza do filme documentário conduz às questões políticas?

BW. Não creio que seja exactamente assim. Coloco a questão de outra maneira. Acredito que o documentário tem um compromisso muito profundo com o realismo e com a representação realista. O realismo, a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, é uma corrente altamente politizada. Veja-se o que se passou, por exemplo, com a pintura realista francesa do século XIX e com pintores como Courbet. Nessa tradição, enquanto texto realista, também o documentário se insere numa linha politizada, ainda que se possam fazer documentários sobre pinguins – e fazem-se – interminavelmente...


JC. Passemos então ao Cinema Directo. Basic Training, de Wiseman. Um comentário…

BW. Adormeci. (Risos)


JC. Não gosta, então, de Wiseman?

BW. Tenho alguns problemas a propósito do trabalho dele. Quanto tempo tem Basic Training? Duas horas? Três horas? Duas horas para Wiseman, digamos que é uma curta metragem. Seis horas, isso é uma longa metragem, o que confere ao seu trabalho um carácter opressivo. Dito isto, considero-o um cineasta brilhante e, sobretudo, um editor fabuloso. Mas, há nos filmes dele uma contradição profunda. Por um lado, ele diz-nos que nos dá a evidência, que deixa marcas que permitem seguir um rasto a partir do qual podemos tirar as nossas conclusões. Mas, por outro lado, ele é o grande artista que nos diz não se atrevam a tocar num só dos meus fotogramas, senão processo-vos, etc. Em que ficamos? Dá-nos a evidência, o fly on the wall, ou é um grande artista. Esta é uma das contradições docinema directo. Para mim ele é cada vez mais um grande artista e não faz muito sentido a reivindicação de ver tudo ou observar tudo.


JC. Há diferenças, hoje, por exemplo, entre o modo como documentário é encarado, por um lado, nos Estados Unidos e no Reino Unido e, por outro, em França?

BW. Seria mais fácil responder a essa pergunta há uns 10 ou 15 anos. A tradição francesa é mais pessoal, mais poética, menos jornalística e menos ligada à reivindicação da objectividade. Nunca ninguém ousaria dizer que, por exemplo, Nuit et Bruillard de Resnais, é uma abordagem objectiva. O mesmo se pode dizer de Toute la Memoire du Monde ou de filmes de Franju como Hotel des Invalides. Os documentários franceses clássicos do pós-guerra são, pois, pessoais e poéticos e nem mesmo quando utilizam os novos equipamentos mais leves e flexíveis do cinema directo, como Jean Rouch emChronique d’un Été, há qualquer intenção de objectividade. Pelo contrário, Jean Rouch, diz-nos: muito bem, não posso dizer-vos a verdade, mas talvez vos possa transmitir alguma espécie de verdade; vou mostrar-vos o que estou a fazer e mostrar-vos o que pensam as pessoas que entram no filme sobre o que estou a fazer. Este tipo de coisas não passaria pela cabeça de britânicos ou americanos. Nesse sentido, havia uma diferença óbvia. Porém, não creio que isso seja mais assim. Porquê? Devido à influência do “realismo” da televisão, de um jornalismo que invade todos os domínios.


JC. E isso, portanto, é indesejável?...

BW. É, na medida em que retira legitimidade a outras abordagens. Dantes tínhamos documentários poéticos, pessoais, etc, etc... Agora apenas nos é permitida a câmara ao ombro da reportagem, o registo sem surpresa e isso é muito mau. Primeiro, porque limita a variedade de expressão e, depois, porque, na maioria dos casos, é lixo. Não devia ser assim. Mas, infelizmente, os operadores de televisão estão hoje numa posição ideológica muito forte

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    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2020
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Atualizado: 22 de out. de 2023

"Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo."


Cineasta novaiorquina galardoada com um óscar de Hollywood, Nina Rosenblum tem procurado revelar nos seus documentários aspectos menos conhecidos da história e cultura da sociedade americana. No seu percurso de relações pessoais e profissionais cruzam-se a maioria dos nomes da primeira linha do documentário americano contemporâneo, de Albert Maysles a Barbara Kopple, de Michael Moore a Richard Leacock, de Frederick Wiseman a Robert Greenwald. Presença habitual nos principais festivais de todo o mundo, Nina Rosenblum é filha de Walter Rosenblum, um dos grandes fotógrafos da Grande Depressão e da II Guerra Mundial, a quem dedicou um dos seus filmes. 


"Não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta”.

Nesta entrevista dá conta do modo como encara o documentário, a sua história e as suas contradições. As suas palavras complementam de algum modo, numa perspectiva de experiência vivida, algumas das questões discutidas ao longo dos capítulos da minha tese de doutoramento A Lógica das Imagens - Viagem pelo(s) Documentário(s). A sua experiência permite-lhe um olhar crítico sobre a produção, realização, distribuição e exibição de documentários nos Estados Unidos, do qual ressalta o sublinhado dos constrangimentos financeiros e institucionais que transformam, ainda hoje, o cinema independente numa aventura. Esta entrevista foi gravada para a RTP2, no Porto, em Outubro de 2001, aquando da sua participação na Odisseia nas Imagens.


JC. Flaherty: significa alguma coisa para si?

NR. O meu primeiro professor de cinema documental foi George Stoney que nos mostrou Man of Aran, um filme todo ele recriado de modo a parecer um documentário. Isso ensinou-me uma coisa muito importante. Enquanto realizadora tenho o hábito de repetir cenas para me aproximar do que sei ser o mais próximo da verdade. Aprendi isso com Flaherty, cujo método nos permite perceber melhor o funcionamento da sociedade. Não há que ter medo de voltar atrás ou de usar os artifícios necessários para que o que é mostrado no ecrã seja tão honesto e rigoroso quanto possível. De certa maneira, ele estabeleceu as regras do que todos nós fazemos.


JC. E quanto a Dziga Vertov e O Homem da Câmara de Filmar?

NR. Isso é qualquer coisa com a qual nasci a ponto de ter dificuldade em entrar em considerações de ordem intelectual. Tenho dificuldade em analisar o filme, dividi-lo em partes ou relevar este ou aquele aspecto porque ele faz parte do meu sangue. O mesmo acontece com Eisenstein. O meu pai estava sempre a mostrar-nos os seus filmes e isso foi como aprender o abecedário desta profissão. Foi com ele que aprendi a construir estruturas narrativas, a elevar a tensão dramática através da montagem, ao fim e ao cabo foi com ele que percebi que não há grandes diferenças entre um documentário e um filme de ficção: o ponto de partida é que é diferente, porque tudo o resto é igual.


JC. Houve um tempo em que o filme documentário esteve muito vinculado há propaganda. Que pensa de uma série como, por exemplo, Why we Fight, de Frank Capra?

NR. Estudei essa série para tentar perceber um pouco melhor o que é um filme de tese ou um filme de causas. Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo. Tudo tem um ponto de vista. A objectividade não existe. Fazer um filme com o intuito de mobilizar e instigar, como fez Frank Capra, é qualquer coisa que todos nós fazemos e que Hollywood faz embora jamais o possa admitir. Enfim, ele é um grande realizador e soube entender no momento certo aquilo que era preciso ser feito pela América e para que a América passasse à acção.


JC. E sobre Leni Rienfensthal?

NR. Ponho a questão da mesma maneira. Criou imagens extraordinárias, embora por razões sinistras.


JC. Pessoas como Robert Drew, os irmãos Maysles ou Richard Leacock até que ponto foram determinantes para o documentário da actualidade?

NR. Conheço-os a todos bastante bem, sou amiga de Al Maysles e falei muitas vezes com Ricky Leacock. As câmaras de 16mm que eles utilizaram permitiram fazer um cinema muito mais livre. De súbito desapareceram os constrangimentos dos equipamentos pesados, das enormes equipas de rodagem e o resultado foi uma muito maior proximidade dos cineastas face aos seus temas e protagonistas. Ainda hoje a sua influência se faz sentir no documentário, mesmo com a televisão...


JC. Que quer dizer com isso?

NR. Na América o documentário conhece crises periódicas que são de certo modo devidas ao poder imagético da televisão. Cada vez é mais difícil angariar fundos que nos permitam fazer os filmes que queremos fazer. Por necessidade, muitos realizadores acabam por trabalhar para o cabo com orçamentos que raramente ultrapassam os 80 mil dólares. Para se perceber o que quero dizer basta recordar que Liberators, o filme que fiz sobre a participação de negros americanos na libertação de prisioneiros dos campos de concentração nazis, custou um milhão e duzentos mil dólares. A televisão faz filmes superficiais de acordo com formatos previsíveis. Recuso-me a chamar-lhes documentários. Tratam de temas da actualidade, mas o estilo é o da lavagem ao cérebro. Os grandes documentários mudam as pessoas! Não se lhes pode ficar indiferente. Pelo contrário, aquilo que é a produção standard da televisão é como música de elevador: adormece, entorpece, acalma, faz-nos pensar que estamos em contacto com a realidade quando, de facto, não estamos. É a antítese do cinema documental.


JC. O que acaba de me dizer lembra-me um livro de Rosselini escrito há muitos anos sobre a utopia da televisão e quão longe essa utopia parece estar. Pensa que a televisão pode ter outro valor de uso?

NR. Absolutamente. É um medium fantástico. Tão poderoso que todos querem controlá-lo. Foi por isso que reduziram a PBS, o serviço público de televisão americano, a um canal tão parecido com as televisões comerciais, embora de quando em quando ainda guardem uma franja do horário para o documentário. Quando passaram os grandes documentários, como Harlan County, Roger and Me ou os grandes filmes de Fred Wiseman, assustaram-se. Foi demasiado forte!


JC. Porque é que os filmes de Wiseman assustaram?

NR. Frederick Wiseman é um dos documentaristas mais profundos e abrangentes do nosso tempo. Foi o filme que ele fez sobre os tribunais de menores, juntamente com Hearts and Minds, de Peter Davis, que me levaram a escolher esta profissão. O pathos e a devastadora veracidade com que ele penetrou no coração de sistemas e instituições horrorosos e no impacto aterrador que esses sistemas têm na vida das pessoas estão nos antípodas dos programas que a televisão faz, por exemplo, sobre polícias. Na televisão vemos os agentes a perseguirem traficantes, prendê-los, deitá-los ao chão, dar-lhes pontapés e todos ficamos a pensar: que bom! Wiseman não tem nada a ver com isso.


JC. Todos os seus filmes têm a América por cenário e os problemas sociais em primeiro plano. O que é que a faz correr nessa direcção?

NR. Acho que nos Estados Unidos criamos uma fachada para dar a ver ao mundo, mas há depois a realidade de uma opressão e pobreza realmente trágica mascarada pela cultura que exportamos através da publicidade e das relações públicas. Nesse sentido, todos nós vivemos uma vida esquizofrénica porque, por muito que tenhamos feito, fizemo-lo à custa de muitas pessoas que estão afundadas em nada. Há mais pessoas presas nos Estados Unidos per capita do que em qualquer outro país do mundo. A nossa maior indústria é a indústria das prisões. Há verdadeiramente duas Américas. Quando eu fiz o filme para a HBO, Lock up: The Prisioners of Rickers Island, chamamos-lhe Uma História de Duas Cidades: por um lado, temos Nova Iorque onde tudo parece perfeito, mas isso não seria possível sem os seus subterrâneos, ou seja, a Ilha de Rickers. Vivemos uma mentira, porque só vemos a superfície sem termos qualquer percepção das suas raízes. Pela minha parte, sinto-me muito próxima das pessoas que foram e são oprimidas. Porquê? Porque produziram uma cultura espantosa, cheia de vigor, que criou o Jazz, e outras formas de música e tantas outras coisas. O facto de haver uma História Americana que os americanos se recusam a ver gera uma cultura demencial.


JC. Nessa perspectiva, que devem fazer os documentaristas?

NR. Acho que não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta. Quando estava na escola era muito frequente mostrarem-nos os chamados documentários educativos e eu simplesmente odiava-os porque eram pesados e desinteressantes. Por isso, há que encontrar um estilo que chegue às pessoas e as faça querer ver, que lhes torne acessível uma realidade que todos devemos conhecer para nos conhecermos melhor a nós próprios, que nos permita sermos menos esquizofrénicos e cruéis, e mais humanos. Porque eu não tenho dúvidas sobre o que acontece quando alguém nega a humanidade de outra pessoa: enlouquece. E nos Estados Unidos temos muitas pessoas perturbadas. Mas isto não quer dizer que por razões de eficácia se possa aceitar o estilo televisivo dominante. Pelo contrário. Os grandes documentários americanos da actualidade – estou a falar de filmes de pessoas como Michael Moore, Barbara Kopple ou Deborah Shaffer – são filmes que todo o americano médio quer ver, mas nada têm a ver com esse estilo televisivo. Esse é o grande desafio que se põe ao cinema documental independente na América, que existe e está vivo.


JC. Pelo que acaba de me dizer, não deve ser fácil fazer passar esses filmes na televisão...

NR. É cada vez mais difícil produzi-los e exibi-los.


JC. Dê-me o exemplo do seu caso pessoal...

NR. No início da minha carreira, em 1980, angariei fundos junto da National Endowment for the Humanities que me atribuiu 350 mil dólares para fazer America & Lewis Hine. Recorri também a diversas fundações e à televisão pública. Após quatro anos de produção e angariação de fundos o filme abriu o Festival de Cinema de Berlim, ganhou o prémio IDA, foi vencedor em Sundance e passou nos principais festivais de todo o mundo. Seguiu-se Through the Wire, para o qual voltei a angariar fundos. Uma pessoa a título individual deu-me 70 mil dólares, consegui outras pequenas contribuições, fizemos uma co-produção com o Channel Four e com a SPS australiana e o filme foi emitido. A partir daí os dinheiros públicos começaram a diminuir. Voltei-me, então, para a HBO para fazer Lock Up: The Prisioners of Rikers Island. Com os dois filmes anteriores tive 99,9% de controle, mas com a HBO fui obrigada a travar uma batalha tremenda porque eles queriam inverter o sentido do filme...


JC. Como?!...

NR. Queriam omitir a brutalidade da polícia e dos guardas, bem como os problemas sociais e os motivos tantas vezes ligados à pobreza que levam as pessoas à prisão. Por outro lado, entendiam que era necessário dar ênfase à violência dos prisioneiros, ao tipo de armas que utilizavam, no fundo justificando o que acontecia dentro da cadeia. As divergências foram tão grandes que provavelmente nunca mais voltarei a trabalhar com a HBO.


JC. Foi a seguir que fez Sly and the Family Stone?

NR. Sim, mas antes de Sly fomos trabalhar com a Turner onde até certo ponto tudo correu muito bem. Tínhamos 600 mil dólares, boas condições de trabalho e acho que fizemos um filme maravilhoso, The Black West. Mas, quando estávamos a terminá-lo os advogados da Turner ligaram-nos a dizer que teríamos de mudar toda a parte central que era aquela que nos parecia mais interessante. Andamos a jogar o jogo do gato e do rato, mantivemos essa parte, o filme foi exibido em toda a Europa e ganhou um Emmy nos Estados Unidos. Sly veio a seguir, escrito e co-produzido por Dennis Watlington para o Showtime/NYTimes. Visitamos a família de Sly, fomos até à igreja onde Freddy tocava, a mãe de Sly estava presente, enrevistámos Rose e Billy Preston, enfim foi uma das grandes experiências da minha vida. Era um filme sobre a importância daquele tipo de música, sobre o que tinha acontecido nos anos 60 com as mudanças suscitadas pela guerra no Vietname, Woodstock, o fim de Woodstock e depois o início da era Reagan que pôs fim a todas as ilusões de acabar com o sexismo, o racismo e de substituir a competição pela solidariedade. Infelizmente, o Showtime/NYTimes não estavam interessados nessa mensagem. Queriam que Sly Stone fosse retratado como um palerma drogado, recusaram qualquer espécie de contexto social e acabaram por remontar o filme retirando-lhe grande parte da sua autenticidade.


JC. Como reage a todas essas dificuldades?

NR. Procuro sempre manter o controlo sobre a produção, por muito pouco que ganhe, ou muitas dívidas que tenha, porque de facto me endividei muito e o meu pai que já teve um ataque cardíaco e não quer voltar a ter outro (risos). Ele é um pai que viveu a Grande Depressão e por isso está sempre preocupado com a nossa sobrevivência. Ver-me investir tanto dinheiro pessoal aborrece-o muito, mas não há outra maneira. As forças dominantes da televisão dos dias de hoje são tão limitadas e tão institucionais – falo de propaganda institucional – que, para eu poder dizer as coisas que quero dizer, tenho de proceder deste modo. É assim para mim, para William Klein e para muitos outros. Quando nos envolvemos com as televisões comerciais, os filmes são deles, o controlo é deles, somos forçados a lutar, mas nunca se consegue vencer...

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    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023

por Jorge Campos "Há que destruir muitos preconceitos e frases feitas." Conhecido pelo seu trabalho como jornalista, guionista e  documentarista, Javier Rioyo, foi um dos premiados no Festival Odisseia nas Imagens da Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura com o seu filme Extrangeros de si mismos (2000). Entre as suas obras conta-se Asaltar los Cielos, sobre o homem o assassínio de Trotsky e um filme sobre Luís Buñuel. Nesta entrevista feita no final do ano 2001, Javier Rioyo aborda o momento do documentário em Espanha e a relação do documentário com a televisão. É mais uma peça resgatada ao meu arquivo. 


Javier Rioyo

JC. Do seu ponto de vista o documentário é um cinema livre?

JR. Creio que sim. Será até o cinema com maior liberdade. Embora o conceito de liberdade me leve a encará-lo com algum temor, não duvido, por exemplo, que face ao cinema de ficção o documentário goze de muita mais liberdade. Faz-se com um guião menos fechado, com um orçamento que nos permite maior liberdade de movimentos, com maior ligeireza de equipamentos, tem menos compromissos institucionais, está mais aberto, não tem actores que cobram fortunas...


JC. Portanto, de alguma maneira, vai-se construindo a si mesmo...

RJ. Sim, é mais uma história que começa com uma ideia ou com uma intenção e que se vai concretizando numa perspectiva em que é sempre possível integrar coisas novas e inesperadas que acontecem entretanto. O documentário tem essa virtude de estar aberto seja no processo de rodagem, seja no processo de montagem. Há muitas coisas nas quais não reparamos na rodagem, mas que emergem quando se está em montagem.


JC. Há uma ideia de que em Espanha há um interesse crescente pelo documentário. Isso é verdade?

RJ. Há um crescimento. Houve um momento durante a transição política, na parte final do franquismo em que havia a consciência da necessidade do documentário. Mas, com o advento da democracia houve uma pausa, como se o documentário tivesse deixado de ser necessário, e começaram a comprar-se muitos programas históricos ou sobre a natureza. Houve portanto um interregno que seria entretanto superado, no início com muitas dificuldades, mas hoje não há dúvida de que o movimento documenraista retomou o seu rumo e continua a progredir.


JC. Apesar desse progresso, que parece ser de algum modo generalizado, há quem diga que a televisão está a matar o documentário...

RJ. Não, eu não penso assim. Penso que o documentário deve ter um percurso de salas, de ciclos e de festivais, mas creio que o percurso natural é cada vez mais a televisão. A televisão está cheias de coisas boas e de coisas más. É certo que a programação de documentários pode incorrer alguns riscos, porque se trata de exibir algo que tem muito de experimental e de vôo livre. Mas se os documentários forem bem programados, em horários apropriados e não relegados para horários impossíveis, poderão ser vistos com o mesmo agrado como se vêm as boas séries ou os filmes de ficção. O que não se pode é remeter o documentário para um território marginal atribuindo-lhe um estatuto demasiado cultural e didáctico.


JC. Parece haver em tudo isto uma contradição. Muitos programadores argumentam que o documentário é naturalmente aborrecido e inadequado para ser mostrado ao grande público. Entretanto, o interesse crescente pelo documentário parece resultar justamente do facto de ser exibido pela televisão.

RJ. Há que destruir muitos preconceitos e frases feitas. Talvez nos conformemos demasiado e estejamos realmente fartos de coisas que são realmente previsíveis e aborrecidas e que vêm do mundo da ficção. Quantas telenovelas ou historietas que são realmente mentalmente reduzidas e aborrecidas são o alimento quotidiano de tanta gente, quando se virmos um documentário que tem paixão dentro de si e que tem entretenimento pode ser uma história muito mais estimulante e divertida do que programas de pura evasão. 

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Jorge Campos

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        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

Todo o conteúdo © Jorge Campos

excepto o devidamente especificado.

     Criado por Isabel Campos 

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