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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 11 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


The Spirit of 45 (2013) de Ken Loach

Quando The Spirit of 45 (2013) de Ken Loach chegou às salas inglesas as reacções foram contraditórias. Por vezes, ferozes. Uns viram no filme um apelo à resistência contra a destruição do estado social e, particularmente, do Serviço Nacional de Saúde. É a leitura mais óbvia e razoável. Outros disseram que o documentário é um retrato fantasioso do pós-guerra, escondendo verdades inconvenientes e fazendo uma leitura oblíqua das eleições que ditaram a derrota de Churchill e colocaram no poder o trabalhista Atlee. Finalmente, nos media sistémicos, não faltou quem acusasse o cineasta de não perceber os sinais do tempo, ou seja, a bondade das políticas neoliberais.


No início dos anos 60, Ken Loach começou a trabalhar para a BBC onde deu corpo a alguns do melhores filmes alguma vez feitos para televisão, designadamente o fabuloso Cathy Come Home, cujo impacto obrigou o governo britânico a rever a legislação sobre os sem abrigo. Durante os anos de Margaret Thatcher foi praticamente banido da televisão pública. Diversos documentários seus, entre os quais os que realizou a propósito da épica greve dos mineiros de 1984, foram simplesmente recusados pela BBC. Nesse período, travou uma luta sem quartel com a Dama de Ferro. A sua sua carreira cinematográfica foi praticamente asfixiada.


Mas, a partir do início da década de 90 do século passado, os filmes regressaram, os prémios multiplicaram-se e Ken Loach foi reconhecido como um dos grandes cineastas do nosso tempo. No conjunto da sua obra prevalece um olhar sem concessões sobre as mais controversas questões políticas e sociais, uma atenção permanente à situação dos mais pobres e marginalizados do sistema, um cuidado especial com a classe operária, da qual é ele próprio oriundo. Entre os seus filmes mais conhecidos estão, Kes, Land and Freedom, Sweet Sixteen, My name is Joe, Raining Stones, Riff-Raff e The Wind That Shakes the Barley. Todos eles de um rigor formal e de uma abordagem estética exemplares. Todos eles incómodos porque lancinantes. Grandes filmes.


Em Spirit of 45 Ken Loach recupera os sacrifícios feitos durante a guerra e fundamenta as expectativas de um mundo melhor com direito à saúde, educação e habitação, em função de uma visão sobre o desenvolvimento e o progresso indissociável da construção do estado social. Loach, dispondo de excepcional acervo de imagens de arquivo, muitas das quais com origem em filmes do movimento documentarista britânico, mostra o que foi a esperança criada no pós-guerra, nesse ano de todos os prodígios que foi 1945. Conseguiu também reunir um notável conjunto de testemunhos de pessoas de diferentes classes sociais, todas elas gente comum, habitantes de um tempo saído da bravura do combate e das ruínas da guerra, com os olhos postos no futuro. O futuro, evidentemente, é o estado social.


Esta tese é, hoje, em 2013, inaceitável para os Tories e incómoda para o Labour. Para os Tories porque eles são crentes da religião do mercado e sacerdotes do sistema financeiro. Para o Labour porque há muito se deixou contaminar pelo vírus neoliberal que o levou para a desgraça da terceira via e para a tragédia da guerra do Iraque. Daí a ferocidade de algumas criticas a Spirit of 45. Até porque Ken Loach esteve na génese do Left Unity, um partido que considera que os trabalhistas deixaram de ser parte da solução e passaram a ser parte do problema.


Por mim direi apenas que Spirit of 45 é indispensável.




Folha de sala do DesobDoc

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 4 de dez. de 2020
  • 26 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


Lisboa, Crónica Anedótica de Leitão de Barros

Filmes documentais e o filme documentário são coisas distintas. Os primeiros reportam aos acontecimentos do quotidiano e, de um modo geral, não recriam a actualidade em função da imaginação criadora, mesmo quando neles se reconhece a qualidade expressiva de muitas imagens. O segundo, tendo pontos de contacto com os filmes documentais, visto estar igualmente vinculado ao real, requer outro tipo de abordagem porque, situando-se no campo da arte, exige a narratividade criativa. É certo que na história do documentário anterior ao advento do som não há um número muito significativo de filmes indiscutíveis. Mas, é igualmente verdade que onde esses filmes surgiram – Estados Unidos, França, Holanda, Alemanha e União Soviética, para citar os exemplos, porventura, mais evidentes – o cinema conheceu um desenvolvimento e uma expressão formal sem termo de comparação com o caso português.


No contexto dessas cinematografias avançadas, há, por vezes, uma linha evidente de superação da estratégia de newsreels para um patamar de nível superior. O caso mais relevante será o de Dziga Vertov e do seu kino-pravda, um jornal de actualidades no qual, a partir de determinada altura, o experimentalismo abriu as portas a um filme documentário de novo tipo. Sabendo-se como tudo se relaciona e numa perspectiva evolutiva, parece, portanto, excessiva a equiparação dos filmes documentais portugueses “ao que de melhor se fazia lá fora” como sugeriu, por exemplo, Luís de Pina. É claro que a passagem do filme documental para o documentário não é a via única de acesso à narratividade expressiva sobre o real nem, tão pouco, a principal. Mas, mesmo olhando a outros percursos, até o filme de Oliveira, que se inscreve na linhagem das sinfonias das cidades associadas às vanguardas dos anos 20, surge com algum atraso. Para se perceber melhor a questão vejamos, a traços largos, o que foi a arqueologia dos filmes documentais dentro e fora de portas, sendo que arqueologia, aqui, reporta à avaliação de filmes e episódios da história do cinema português cujo horizonte temporal se situa entre o aparecimento em película das imagens em movimento e o advento do cinema sonoro.

Os primeiros filmes documentais


A figura do caçador de imagens é uma presença de sempre no imaginário dos documentaristas. No início, o acto de filmar mais não era do que animar o instante fixado na imobilidade da fotografia. Mas, a reprodução do movimento, só por si, depressa deixou de ser uma prioridade. Quando os irmãos Lumière mandaram os seus operadores Mesguich e Promio filmar os quatro cantos do mundo aperceberam-se de que o interesse do público não residia no real, mas na imagem desse real transformada pelo olho da câmara. Nesse momento, terá surgido, intuitivamente, a ideia sincrética de um real imaginado. Vinte anos mais tarde falar-se-ia de fotogenia, essa espécie de alquimia potencialmente emocionante que permite reverter em espectáculo o que não é espectacular, como sejam operários saindo de uma fábrica ou chegadas e partidas de comboios, no fundo, o desenvolvimento de outras experiências pioneiras como a dos obsessivos estudos de Muybridge, em 1880, sobre o movimento dos cavalos através da projecção de fotografias com o auxílio de uma adaptação da lanterna mágica.


Irmãos Lumière.

Em L’Arrivée d’ un Train en Gare (1895), filmada em La Ciotat, no sul de França, uma câmara de Louis Lumière captou a aproximação de um comboio a ponto dos espectadores se assustarem perante a ameaça da locomotiva aparentemente incapaz de se deter. Ao desembarcarem, passando diante da câmara de filmar, os passageiros pareciam confundir-se com o público numa prodigiosa sensação de proximidade e profundidade, tão diferente da experiência proporcionada a esse mesmo público nas salas de teatro. Algo de novo acontecia: uma composição da imagem em função da qual, devido ao movimento dentro do quadro, se antevia já a escala dos planos.


Tamanho foi o impacto do cinematógrafo que seis meses após a estreia em Paris, segundo Erik Barnouw o cinematógrafo estava em Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Hungria, Suiça, Espanha, Itália, Sérvia, Rússia, Suécia e Estados Unidos e, pouco depois, na Argélia, Tunísia, Egipto, Turquia, Índia, Austrália, Indochina e Japão. Ao cabo de dois anos, os operadores dos irmãos Lumière viajavam por todos os continentes, à excepção da Antárctida [1].


No final de 1897, com mais de uma centena de caçadores de imagens espalhados por todo o mundo, o cinematógrafo atraía milhões de espectadores com os seus filmes documentais ou panoramas. Pela mesma altura, primeiro Méliès e depois Porter, utilizando câmaras com mais metros de filme começaram a contar histórias, nas quais, ao contrário do que acontecia nos panoramas, uma incipiente ligação de imagens ia deixando antever o embrião de uma gramática do cinema. No entanto, pelo menos até 1908, é relativamente consensual que a produção de actualidades se sobrepôs a qualquer outra, sendo embora evidente um desfasamento temporal entre aquilo que se passou, nomeadamente em França e nos Estados Unidos, onde a produção industrial de filmes de enredo arrancou mais cedo e, seguramente, com outros meios e outras possibilidades, e a grande maioria dos países com menor capacidade técnica e financeira, entre os quais se incluía Portugal.


As fitas documentais da primeira fase do cinema, supostamente retratos do quotidiano, depressa perderam a inocência primitiva. Rapidamente se estabeleceu uma espécie de comércio entre os poderosos do mundo e os caçadores de imagens, com os primeiros dispostos a pagar com facilidades de protecção e de acesso a determinados locais e acontecimentos a visibilidade que os segundos lhes pudessem proporcionar. Assim, nasceu uma vasta filmografia na qual se reconhece o embrião da propaganda, à qual, de resto, o jornalismo e o filme documentário viriam a estar amiúde associados. Sabe-se da existência, por exemplo, nos arquivos de cinema da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos de um avultado volume de takes do presidente Theodore Roosevelt reunidos por ele próprio para efeito de promoção pessoal.


Sabe-se, também, que os países grandes produtores de filmes documentais eram o centro de impérios coloniais propensos a darem a conhecer os nativos das suas colónias como seres pitorescos e agradecidos aos seus senhores tutelares. E sabe-se, ainda, que a fraude e a impostura são quase tão antigas quanto os primeiros filmes. Companhias como a Vitagraph ou a Biograph não hesitavam em utilizar uma trucagem que hoje nos pode parecer grosseira, mas que ao público do início do século ou terá passado despercebida ou não terá merecido grandes reparos. Segundo Barnow, fumo de cigarros, explosões provocadas, labaredas de fósforos, soldados equipados a rigor caindo diante das câmaras, tudo serviu para dar notícia de acontecimentos como espectaculares erupções de vulcões, terramotos arrasadores e batalhas sangrentas. Vale a pena citá-lo:


“As reconstituições e imposturas alcançaram um impressionante registo de ‘êxitos’. Se há memoráveis imagens genuínas do terramoto de 1906 de San Francisco, outras alegadamente respeitantes a esse acontecimento, foram forjadas a partir da manipulação de miniaturas e foram igualmente muito apreciadas. (...) As neves de Long Island e de New Jersey ofereciam as condições adequadas para empreendimentos como A Batalha de Yalu, filme da Biograph de 1904 e para um outro de Edison Escaramuça Entre as Forças Avançadas Russas e Japonesas, que competia com o da Biograph. Nesta última película viam-se soldados a passar diante de uma câmara imóvel, enquanto alguns outros iam caindo. Para ajudar o público a identificar as forças em presença, os russos estavam vestidos com uniformes brancos e os japoneses com uniformes de cores escuras” [2].


Os primeiros jornais cinematográficos ou newsreels são de 1908, sendo exibidos nas salas semanal ou quinzenalmente. A Pathé e a Gaumont foram pioneiras, mas depressa surgiram empresas com intuitos semelhantes um pouco por toda a parte. Durante muito tempo considerou-se que esta produção, ao invés de potenciar a criatividade dos operadores, depressa se revelaria quase sempre rotineira, falha de imaginação, conformista em relação aos assuntos tratados e incapaz de proporcionar uma visão integradora à escala humana. Hoje, este ponto de vista carece de revisão. Há, na verdade, uma produção rotineira e falha de imaginação, a maioria, de resto, mas também há imagens que valem mais do que o mero documento.



Esta primeira fase das películas documentais, às quais os franceses chamavam genericamente documentaire, deixou antever alguns dos desenvolvimentos futuros do filme documentário, nomeadamente por via dos travelogue, filmes de viagens eventualmente associados a aventuras e a proezas de exploradores em paragens remotas. A cinematografia francesa, por exemplo, produziu numerosos filmes no deserto do Sara e Herbert G. Ponting captou imagens da trágica expedição do capitão Scott ao Pólo Sul, imagens essas posteriormente recuperadas pela Gaumont e mostradas com enorme êxito em todo o mundo, em 1912. Um pouco mais tarde, em 1914, imagens de Frank Hurley dariam origem a uma reportagem sobre a expedição de Ernest Shackleton ao Antárctico. No ano seguinte, com In the Land of the War Canoes, Edward S. Curtis fazia o documentário antropológico seminal abrindo caminho a Nanook of the North (1922) de Robert Flaherty.


Ao longo desta fase, porém, é perceptível uma tensão entre fórmulas mais informativas, digamos assim, e experiências mais inovadoras, eventualmente conducentes a narrativas híbridas e até ao filme documentário, como abreviadamente adiante se verá.

Newsreels e outros percursos


Na antecâmara da I Guerra Mundial, apesar da maior parte do material filmado ser institucional, a importância do cinema informativo era um dado adquirido. A Pathé e a Gaumont dominavam o mercado mundial e, na Europa, os seus filmes representavam, em conjunto, 90 por cento do material exibido nas salas. Mas, no mercado estavam ainda Hearst, a Universal, a Paramount, a Mutual e a Fox.


A guerra seria fatal para a produção cinematográfica europeia, especialmente para a francesa. Muitos artistas, realizadores e técnicos europeus, perante o cenário desolador de uma indústria praticamente destruída, emigraram para os Estados Unidos. Charles Pathé optou por desmantelar de forma inteligente e proveitosa o seu outrora todo poderoso império. Os pujantes estúdios americanos impuseram a sua hegemonia. Mas a guerra permitiu, igualmente, treinar muitos operadores e realizadores americanos de newsreels que, uma vez de volta a casa, foram engrossar o número daqueles que trabalhavam no cinema, sobretudo em Hollywood. Entre europeus e americanos nessas condições, Raymond Fielding apresenta uma lista na qual se incluem, nomeadamente Joseph von Sternberg, Hal Mohr, Victor Fleming, Ernest Schoedsack, Farciot Edouart, Ira Morgan, Fred Archer, Harry Thorpe, George Hill e Eddie Snyder [3].


Com abundante mão-de-obra qualificada pareciam finalmente reunidas as condições para um salto qualitativo em termos de uma linguagem cinematográfica ajustada aos desígnios do jornalismo. O que aconteceu, porém, foi algo de contraditorio. Nos Estados Unidos, foram importados para o universo das empresas de newsreels os modelos e rotinas produtivas da imprensa. Muitas vezes, os técnicos e realizadores de cinema foram preteridos a favor de jornalistas. A preponderância destes últimos, a par da influência exercida pela companhia liderada por Hearst, foi, segundo Fielding, a principal responsável por um formato que em tudo procurava transpor os métodos e o estilo dos jornais impressos para o cinema informativo, nomeadamente a célebre técnica da pirâmide invertida, o que era evidente nos títulos, subtítulos, apresentação e hierarquização das matérias [4]. Simultaneamente, haveria de prevalecer a tendência para o entretenimento e o faits divers em resultado da lógica competitiva em que se desenvolveram os meios de comunicação nos Estados Unidos.


Buster Keaton, The Cameraman

Daí uma certa negligência no tratamento das imagens na fase de montagem, apesar da excelência e temeridade – chegavam a arriscar a vida em busca da espectacularidade – de muitos operadores de câmara, as quais contribuíram para a imagem mitologizada de uma profissão exemplarmente tipificado em The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton. É nesta fase, e não mais tarde, quando a televisão se impôs como medium dominante, que se encontram as raízes da expressão que qualifica depreciativamente de trabalho jornalístico aquilo que no cinema do real não corresponde a parâmetros mais exigentes de ordem estética.


Contudo, apesar da linha dominante do entretenimento, encontram-se, igualmente, peças moldadas de acordo com critérios de maior exigência e obedecendo a parâmetros mais rigorosos no plano da narrativa. Mais tarde, nos anos 30, March of Time de Louis de Rochemont, sendo bastante controverso, haveria de adoptar procedimentos do documentário, palavra, de resto, execrada pelo próprio Rochemont. Noutros casos, na base da tradição de newsreels e travelogues iriam surgir filmes épicos como Grass (1924) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack já alinhados com a narratividade criativa.


Perante este breve quadro geral de tendências da arqueologia do cinema documental, resulta evidente, a par de uma linha marcada pela facilidade, uma evolução, mesmo se contraditória, em função da qual é perceptível um movimento que nalguns casos aproxima newsreels e documentários. Importa, agora, perceber o que aconteceu em Portugal para se fazer uma ideia comparativa.

Paz dos Reis e os primórdios do cinema documental português


Num dia de Setembro de 1896, na Rua de Santa Catarina, no Porto, um homem alto, pela aparência identificado com a burguesia da cidade, afadigava-se em torno de uma caixa de madeira envernizada apoiada num tripé em tudo idêntico ao utilizado pelos fotógrafos profissionais. Diante dele, a porta principal da Camisaria Confiança. À hora do almoço, operários – homens e mulheres – começaram a sair. O homem imprimiu então um movimento de rotação tão uniforme quanto possível a uma manivela destacada do corpo da caixa.


Os transeuntes não o sabiam, mas acabavam de assistir ao nascimento do cinema português. Se assim rigorosamente foi ou não, pouco importa. Paz dos Reis poder-se-ia ter feito acompanhar por um familiar e fotógrafo profissional, Magalhães Bastos, e ter sido este a manivelar o filme. Admite-se, até, ter havido outros, antes dele, a interessarem-se pelo cinematógrafo, do qual, aliás, os portugueses já tinham conhecimento através de Erwin Rousby. Seja como for, ressalvado o campo das hipóteses e postas de lado as questões de pormenor, Aurélio da Paz dos Reis tornou-se naquele momento o pai do cinema português.


Paz dos Reis

Tanto quanto se sabe seria um espírito atento à modernidade no contexto peculiar da sociedade portuense de tradição liberal e individualista. Terá pertencido à Maçonaria, em cujas lojas se encontrava a maioria dos mais destacados republicanos da época. Em plena crise da monarquia constitucional, foi preso após a revolta de 31 de Janeiro de 1891 – um movimento popular cujos paisanos e soldados investiram contra os portões do quartel de Infantaria 18 e responderam ao fogo da Guarda Municipal do Porto –, mas deverá ter sido absolvido visto o seu nome não constar da lista de condenações do Conselho de Guerra de Matosinhos, onde os conjurados foram presentes. A sua notoriedade social ter-lhe-á valido os cargos de vereador e de vice-presidente da Câmara do Senado do município, bem como a presidência do Ateneu Comercial do Porto.


Como fotógrafo amador foi premiado por diversas vezes em Portugal e no estrangeiro, sendo da sua autoria algumas das imagens mais impressivas das movimentações republicanas no Porto. Igualmente da sua autoria, ficou célebre uma série de postais denominada Artistas Portugueses, cuja popularidade acabou por contribuir para lhe dar ainda maior notoriedade. Sempre curioso, experimentou a fotografia estereoscópica, ou seja, em relevo, produzindo um número significativo de duplos clichés indispensáveis à obtenção dos efeitos pretendidos e investiu num negócio de equipamentos fotográficos fornecidos pela Lumière & Jougla.


Contemporâneo de Louis e Auguste Lumière, Paz dos Reis mostrou a Saída do Pessoal Operário da Camisaria Confiança a 12 de Dezembro de 1896 numa sessão no Palácio do Príncipe Real, no Porto, da qual constavam igualmente outros filmes da sua autoria. O Jornal de Notícias desse dia anunciava a mostra de “12 perfeitíssimos quadros, sete nacionais e cinco estrangeiros [5]”. Os quadros portugueses, além do já mencionado, eram O Jogo do Pau, Chegada de um Comboio Americano a Cadouços, O Zé Pereira nas Romarias do Minho, A Feira de São Bento, A Rua do Ouro e Marinha. Exibidos durante o intervalo de uma zarzuela, muito do agrado do público da época, os quadros tiveram maior êxito do que o até então obtido pelas vistas estrangeiras.


Este tipo de reportagem ou filme documental seria a imagem quase exclusiva do cinema português do final do século XIX e do início do século XX e Paz dos Reis, que fez centenas de pequenos filmes sobre o quotidiano, na sua esmagadora maioria perdidos ou destruídos, foi o nosso primeiro cineasta e repórter de imagens em movimento. Ao contrário de Paz dos Reis a maioria dos operadores de imagem da época permaneceu no anonimato. Houve, no entanto, algumas excepções.


Manuel Maria da Costa Veiga fez em 1899 Aspectos da Praia de Cascais, eventualmente o primeiro filme com imagens do rei D. Carlos e do príncipe D. Luís Filipe. Até 1918 filmou inúmeros acontecimentos da vida portuguesa, como as visitas de estadistas estrangeiros, a instauração da República, a mobilização para a I Guerra Mundial e o advento da ditadura de Sidónio Pais. Valendo-se dos contactos da sua Portugal Filmes, com sede em Algés, vendeu para toda a Europa trabalhos sobre as visitas de Eduardo VII de Inglaterra, de Afonso XIII de Espanha, do presidente Loubet da França e do Kaiser Guilherme II.


Também João Freire Correia, um dos melhores fotógrafos de Lisboa e fundador da Portugália Filme, antigo operador de Paz dos Reis, saiu do anonimato fazendo igualmente um número apreciável de reportagens cinematográficas. O seu nome está associado a dois grandes êxitos junto do público, A Cavalaria Portuguesa e O Terramoto de Benavente, um e outro referenciados como precursores do documentário português. O Terramoto de Benavente (1909) tirou 22 cópias só para exibição no estrangeiro, um feito considerável para a época. Reportando a destruição daquela vila do Ribatejo por um sismo de grande intensidade, o filme, ao que parece, distinguia-se pelo dramatismo visual.


No ano seguinte, Costa Veiga e Freire Correia fizeram reportagens sobre a Revolução de 5 de Outubro de 1910 e a proclamação da República. Por essa altura, o cinema em Portugal era ainda encarado como um veículo de vistas panorâmicas, sem aspirar à narratividade criativa. Segundo Félix Ribeiro, à evolução da linguagem cinematográfica no estrangeiro correspondeu em Portugal uma quase completa ausência de ousadia e de liberdade formal e conceptual. Não obstante, criou-se uma corrente de opinião segundo a qual, nos primeiros tempos, a melhor produção terá sido, justamente, na área do cinema documental. Afirma, por exemplo, João Bénard da Costa:


“ (...) quase tudo o que de mais interessante se fez foi no capítulo do documentarismo, produzido pela Companhia Cinematográfica de Portugal ou pela Invicta Film de Alfredo Nunes de Matos, exibidor portuense” [6].


A palavra documentarismo é manifestamente utilizada a despropósito por Bénard da Costa porque, na verdade, dificilmente as produções quer da Companhia Cinematográfica Portuguesa quer da Invicta Filme poderiam merecer o estatuto do filme documentário. Vejamos com maior detalhe o caso desta última, justamente porque não apenas fez numerosos filmes factuais, mas também por que se tratou da primeira empresa portuguesa a fazer filmes de enredo mais ambiciosos e, como se disse, há uma relação estreita entre a inovação e experimentação no campo do cinema e a qualidade da generalidade da produção seja qual for a sua área de inserção.


A Invicta Film: cinema documental e filmes de enredo


A experiência da Invicta Film, empresa com estúdios no Porto, está associada à primeira tentativa de levar a cabo uma produção nacional à escala europeia, sobretudo a partir de 1918, quando a empresa passou a apostar essencialmente nos filmes de enredo. Alfredo Nunes de Matos, gerente do Jardim Passos Manuel – sala inaugurada em 1908, por onde passava grande parte do cinema visto na cidade – foi a figura central dessa aventura que passou à História como ciclo do Porto.


Em 1910, ano da implantação da República, Nunes de Matos começou a produzir reportagens cinematográficas, sobretudo no Norte, fazendo, simultaneamente, pequenos filmes publicitários de encomenda. A sua empresa contratou operadores talentosos como Manuel Cardoso e Thomas Mary Rosell e rodou milhares de metros cujos princípios orientadores eram a fidelidade à temática portuguesa e a urgência, à qual o jornalismo viria a chamar imediatismo, de dar a ver o que de mais importante ia acontecendo. Desse modo, Nunes de Matos conseguiu não apenas agradar a um público cada vez mais vasto, mas também interessar os jornais de actualidades da Pathé e da Gaumont, dos quais era correspondente e para os quais enviava algumas colaborações.


Há numerosos títulos produzidos nessa primeira fase. A título de mero exemplo, em 1911 fizeram-se as Festas de Aniversário da República, seguidas, no ano seguinte, de uma Visita ao Porto do Presidente da República. Com o estalar da I Guerra Mundial, numa altura em que se começava a discutir de forma virulenta se o País devia ou não entrar no conflito – uma polémica na qual se envolveram monárquicos e republicanos, por um lado, e republicanos entre si, por outro – a Invicta produziu, nomeadamente, O Embarque das Tropas Expedicionárias para Angola e Moçambique, Exercícios de Artilharia, Grandes Manobras de Tancos, todos sobre a preparação para a entrada na Guerra, e Revolução em Lisboa e Chaves - Incursões Monárquicas. A par das questões de índole política e das pequenas fitas publicitárias, Nunes de Matos e os seus colaboradores prestaram igualmente atenção à reportagem sobre acontecimentos do interesse do público da época como exercícios e operações de bombeiros, treinos de aviadores, festas e romarias, bem como às vistas panorâmicas precursoras de trabalhos documentais de carácter monográfico sobre localidades e regiões, como foram os casos de A Serra da Estrela, Viana do Castelo, Lamego, Barcelos, Bom Jesus do Monte e outros.


De toda a produção anterior a 1917 cumpre destacar O Naufrágio do Veronese, um navio italiano naufragado ao largo de Leixões em 10 de Fevereiro de 1913. Denotando sentido de oportunidade, a Invicta produziu uma grande reportagem de 300 metros, da qual foram vendidas, só para a Europa, mais de uma centena de cópias.


O Naufrágio do Veronese, Invicta Filmes

Em 1917, em Lisboa, virou-se nova página da história do cinema português. Foram criados os Serviços Cinematográficos do Exército que fizeram a cobertura da intervenção portuguesa na guerra, ampliando e complementando o trabalho levado a cabo pelos produtores nacionais. É também desse ano a primeira conferência sobre cinema realizada em Portugal. O conferencista foi António Ferro, mais tarde o homem forte de Salazar para a cultura e propaganda. Ferro estava ligado ao movimento futurista e, a par do desenhador Stuart Carvalhais, do crítico de arte Reis Santos, do então estudante de arquitectura Cotinelli Telmo e do jornalista Leitão de Barros, foi um dos primeiros intelectuais portugueses a ser conquistado pelo cinema. Nas salas, os jornais cinematográficos antecediam as grandes produções americanas e italianas. O público garantia boas receitas e uma massa crítica cinéfila ia ganhando expressão.


Nesta conjuntura, a Invicta Film optou por uma mudança de estratégia. A 22 de Novembro de 1917 foi fundada uma nova sociedade tendo como administrador principal Nunes de Matos e como director artístico Henrique Alegria, um português do Brasil e proprietário do cinema Olímpia. Nos seus estatutos não havia quaisquer referências de índole cultural ou artística. Tratava-se de promover “o fabrico, aluguer e venda de películas cinematográficas [7]”. O tempo viria a confirmar essa tendência.


Alguns dos filmes produzidos tiveram sucesso popular e representaram um salto qualitativo em relação ao que até então se fizera. Estão neste caso fitas de Georges Pallu como Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) e Amor de Perdição (1921), adaptações, respectivamente, de Júlio Dinis e de Camilo Castelo Branco, ou ainda Mulheres da Beira (1923) do realizador italiano Rini Lupo. Escreveu Luís de Pina:


“(...) o papel mais relevante desta empresa foi o de ter demonstrado a possibilidade de um cinema de qualidade ‘média’ feito sem demasiada transigência e com evidente preocupação técnica. Nas suas instalações da Quinta da Prelada, no Porto, fez-se cinema a sério com tudo o que isso implica, desde os filmes em si à infraestrutura que os produz e à verdadeira escola de prática que uma produção deste tipo permite [8]”.


Este ciclo do Porto merece algumas considerações. Em primeiro lugar, a viragem do até então eixo dominante da maioria dos filmes produzidos em Portugal, as vistas panorâmicas e as reportagens, para o domínio do romanesco. Por essa altura, o cinema começava a ser encarado como arte e linguagem exigindo, como tal, a narratividade criativa mas, sendo uma actividade dispendiosa, era igualmente encarado como uma oportunidade de negócio. Em segundo lugar, essa viragem ocorreu no Porto. Todos os associados da Invicta Film eram portuenses e estavam ligados à banca, ao comércio e a diversas profissões liberais corporizando o espírito de iniciativa da cidade. Alguns estudiosos do cinema português, como Félix Ribeiro dão até conta da recusa de facilidades, por parte dos accionistas, para a construção dos seus estúdios em Lisboa. Em terceiro lugar, ao pretender organizar a produção em bases industriais, a companhia recusou a improvisação, não hesitando em ir buscar técnicos qualificados onde sabia poder encontrá-los no estrangeiro contribuindo, dessa forma, para formar muitos agentes do cinema. Em quarto lugar, apesar das críticas que lhe possam ser feitas no sentido de ter procurado agradar a um público muito vasto e, como tal, supostamente nivelado por baixo, a Invicta Film compreendeu a importância do genuinamente português para efeito da criação de públicos. Fez-se mais português para ser mais europeu, antecipando, de algum modo, uma das linhas estratégicas das políticas do audiovisual europeu, ou seja, valorizar o regional encarando-o como base do universal. Em quinto lugar, aliando o saber fazer à construção de estúdios modernos de raiz e à aquisição dos equipamentos necessários, criou as condições logísticas indispensáveis para transformar o Porto durante alguns anos na capital do cinema português.


Entre 1818 e 1925, fosse através da Invicta, da Caldevilla Film, fundada em 1920, ou da Fortuna Film, criada em 1922, fizeram-se no Porto 25 longas metragens de ficção, um número interessante mesmo se comparado com a produção europeia da época. Todos os géneros de que o cinema português viria a ocupar-se mais tarde encontram-se já neste Ciclo do Porto, excepção feita à comédia populista, cujo período áureo havia de prolongar-se pelos anos 30 e 40. A partir de meados de 1922, a Invicta Film começou, no entanto, a sentir dificuldades financeiras. Em competição com estruturas capitalistas poderosas à escala global, tornou-se cada vez mais difícil encontrar uma distribuição adequada. Em 1924, fez a sua última produção, um filme documental intitulado III Exposição Internacional de Automóveis, Aviação e Sport. Os seus estúdios reabriram, ainda, uma ou outra vez, a título de aluguer, como aconteceu no caso dos filmes de Reinaldo Ferreira, um jornalista famoso pelas suas reportagens sensacionalistas que marcaram uma fase do jornalismo português e que eram assinadas com o pseudónimo de Repórter X, mas tudo isso mais não foi do que o último assomo de um penoso estertor. Em Junho de 1931 fechou as portas definitivamente. Nesse ano, morreu Aurélio da Paz dos Reis e Manoel de Oliveira realizou Douro, Faina Fluvial.


Dito isto, e antes de entrar em considerações sobre a produção deste período, certamente mais importante pela quantidade do que pela qualidade, justifica-se ainda sublinhar um conjunto de perspectivas favoráveis ao desenvolvimento pelo gosto do cinema que, efectivamente, existiu em Portugal e que poderia ter contribuído para o aparecimento de obras de maior relevância.

O gosto pelo cinema, os primeiros documentários portugueses e Douro, Faina Fluvial


Durante os anos 20, de um modo geral, mesmo após a instauração da ditadura em 1926, quase toda a melhor produção internacional passou por Portugal, sobretudo na capital. Ao público cinéfilo não lhe escapava a excelência de filmes provenientes dos Estados Unidos, Alemanha, França e até da União Soviética como Tempestade na Ásia de Pudovkin e A Linha Geral de Eisenstein, ambos exibidos já em fase de consolidação do salazarismo. Para tanto convergiram razões de vária ordem.


Fonte: Hemeroteca Digital

Cumpre, desde logo, destacar, ainda na I República, o papel desempenhado por algumas revistas de cinema do Porto, as quais contribuíram para a formação de um público conhecedor e deram à estampa polémicas interessantes. A primeira foi O Porto Cinematográfico, fundada em 1919 por Alberto Armando e que só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta Cine envolveu-se na polémica relacionada com o advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi também devido ao entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [9]”.


Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente limitada na acção que desenvolveu, propunha-se inicialmente defender o cinema nacional, “moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse [10]”.


Com a ditadura, de início, o estado também não adoptou uma política cinematográfica monolítica. Para tal contribuiu não só a postura de António Ferro, um jornalista influente, admirador de Salazar, mais tarde designado para dirigir o Secretariado de Propaganda Nacional, mas também o grupo de jovens a partir do qual se iria procurar fazer a renovação do cinema português. Entre eles, contavam-se Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro. Um e outro tinham estado na Alemanha e na União Soviética, onde se tinham inteirado dos respectivos processos criativos e produtivos. A admiração pelas cinematografias alemã e russa, aliás, já tinha sido manifestada, em 1925, por Fernando Pessoa, quando afirmou serem as únicas cujos filmes se aproximavam da ideia de arte. Por outro lado, foi essa uma época de intensa actividade intelectual que viu nascer, por exemplo, o movimento do Orfeu e a revista Seara Nova, sendo que estas iniciativas, apesar do carácter efémero da primeira, viriam a desempenhar um papel de relevo na vida cultural portuguesa. A esta abertura à modernidade não foi certamente estranha a filiação futurista da maioria dos protagonistas da tentativa de renovação do cinema português.


A difusão do gosto pelo cinema, sobretudo nos grandes centros urbanos prende-se ainda com o facto de todas as principais cidades do País, e em particular Lisboa e o Porto, terem novas salas, na sua maioria de grandes dimensões. Eram os casos, em Lisboa, do Tivoli e, no Porto, do Rivoli e do Teatro de S. João, este o maior do País com dois mil lugares. Por outro lado, as grandes distribuidoras da época, como a Paramount, a Metro e a RKO abriram sucursais em Portugal e, com o volume de negócios em alta, surgiram novos estúdios, nomeadamente da Lisboa Filmes. Sucede que foi justamente esta empresa a responsável pela maior parte da produção documental de 1928 a 1932, seguida da Ulysseia, igualmente relevante nesse domínio, sendo que, em qualquer dos casos, é difícil apontar obras cuja relevância mereça ser assinalada. Esta proliferação de filmes, bem como a sua fraca qualidade, tem uma explicação. Publicada no Diário do Governo de 6 de Maio de 1927 a chamada lei dos Cem Metros Nacionais determinava seu artº 136:


“Torna-se obrigatória, em todos os espectáculos cinematográficos, a exibição de uma película de indústria portuguesa com o mínimo de 100 metros, que deverá ser mudada todas as semanas e, sempre que seja possível, apresentada alternadamente, de paisagem, e de argumento e interpretação portuguesa [11]”.


Com o intuito de incentivar os produtores, ainda se isentavam de direitos alfandegários as películas virgens, negativa e positiva, “comprovadamente destinadas a ser impressionadas no País [12]”.


Os resultados foram desastrosos. Com efeito, se aumentou a produção de curtas metragens com temáticas portuguesas, a verdade é que a esmagadora maioria dos filmes tinha orçamentos reduzidos e era de má qualidade. Distribuidores e exibidores pagavam ninharias por essas fitas e os produtores só arriscavam em projectos mais arrojados caso fossem integralmente subsidiados, ficando embora, neste caso, subordinados aos interesses dos patrocinadores públicos ou privados. Daí a proliferação de filmes informativos associados à propaganda do regime, por vezes, identificados como documentários, e de películas sobre temas diversos, mas sem inovação, durante um período de tempo que se alargou para além do advento do cinema sonoro.


O assunto não passou sem que em torno dele se tivesse levantado acesa polémica, nomeadamente nas páginas da revista Cinéfilo e por parte de António Lopes Ribeiro, que acreditava ser possível fazer em Portugal excelentes documentários, mas que a via legislativa escolhida, semelhante à promulgada por Mussolini para o cinema italiano, só poderia conduzir aos piores resultados. E, assim, a única obra de referência, indiscutível, desta fase, feita á margem dos circuitos dominantes, seria Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira, considerado o primeiro grande clássico do cinema português.


Douro, Faina Fluvial de Manoel Oliveira

O filme documentário, portanto, apesar de algumas condições favoráveis, nomeadamente a possibilidade de o público cinéfilo e os protagonistas e agentes do cinema terem conhecimento da boa cinematografia estrangeira, só muito esporadicamente e sem grande expressão se elevou acima da fasquia, aliás sempre baixa, dos filme documental rotineiro, ele próprio pagando a factura da falta de criatividade generalizada do cinema de enredo até ao advento cinema sonoro. Mesmo a Invicta Film, cuja produção mais significativa principia em 1919 e vai até 1923, nunca se evidenciou por qualquer tipo de arrojo estético ou de ousadia experimental, isto numa altura em que as vanguardas artísticas faziam o seu percurso em muitos países europeus. Georges Pallu, por exemplo, viera do Film d’Art francês, quase sempre medíocre, e essa seria a referencia cinéfila da empresa. Como tal, os filmes da Invicta não poderiam produzir efeitos, no plano criativo, na passagem para o filme documentário.


O filme de Oliveira é, portanto, o que acompanhou melhor os sinais dos tempos. Como o próprio autor reconhece, inscreve-se na tradição das sinfonias das cidades na linha de Rien que les Heures de Cavalcanti, de Berlim de Ruttman e de O Homem da Câmara de Filmar de Vertov e reverte numa reflexão sobre o próprio cinema. Começa e acaba, aliás, com a luz de um projector, que se verifica depois ser a do farol à entrada do rio Douro, o qual funciona como metáfora dos mecanismos do cinema. Há no filme uma poética de índole expressionista que joga com volumes, linhas de fuga e claros e escuros, tirando partido da plasticidade das imagens, elas próprias habilmente articuladas na montagem de modo a estabelecer um ritmo cujas acelerações e desacelerações se ajustam aos momentos do quotidiano. Mas, ao contrário do que sucede com a maioria das sinfonias das cidades, centradas no ritmo, no movimento e nas formas, Douro presta uma atenção especial à paisagem humana, sugere um erotismo subtil e, nessa medida, ganha uma singularidade que o distancia de outras obras na mesma linha. Oliveira, então com 23 anos, viu o seu filme ser entusiasticamente recebido por Lopes Ribeiro, pateado pelo público, demolido por parte da crítica e proclamado obra-prima por críticos estrangeiros, nomeadamente alguns franceses. Apesar de ter um conjunto de projectos em carteira e de ter aceitado algumas encomendas sem expressão no conjunto da sua obra, Oliveira só voltou a filmar 10 anos mais tarde para dar corpo a outro clássico, igualmente rodado no Porto, o celebrado Aniki-Bóbó (1942).


Embora sem paralelo com Douro, Faina Fluvial, é habitual mencionar ainda como exemplos dos primeiros documentários portugueses três ou quatro filmes. Em primeiro lugar, Nazaré, Praia de Pescadores (1929) de Leitão de Barros, que viria a ser considerado o primeiro da chamada trilogia do mar juntamente com Nazaré, Maria do Mar e Ala-Arriba, os dois últimos filmes de enredo, mas de cunho documental. Trata-se de um retrato da vida tradicional dos pescadores da Nazaré, ao qual a luz e a composição da imagem conferem uma dimensão de transcendência. Alguns cinéfilos reconheceram nele a influência estética da escola soviética. Um deles foi António Ferro. O realizador haveria de relativizar, a posteriori, essa influência, interpondo distâncias entre a alma eslava e o sentir português. Infelizmente não é possível ter uma ideia cabal do filme visto ter-se perdido a segunda metade. Os outros filmes são Alfama, Gente do Mar (1930), de João de Almeida e Sá e outros dois filmes de Leitão de Barros, obras de difícil catalogação, que são Lisboa, Crónica Anedótica (1930), por sinal com passagens bastante imaginativas, e Maria do Mar (1930), este último publicitado como sendo um documentário dramatizado.


Nazaré, Praia de Pescadores de Leitão de Barros

Conclusão


Enfim, quando comparada com os filmes dos grandes documentaristas da primeira fase do cinema – Flaherty, Ivens, Ruttman, Vertov, para citar apenas alguns – não pode dizer-se que a produção portuguesa, com excepção de Douro, Faina Fluvial, tenha produzido obras particularmente estimulantes. O filme documental anterior ao advento do cinema sonoro está ligado a um conjunto de circunstâncias que ou não se verificaram em Portugal, ou tiveram um impacto diferente daquilo que ocorreu noutros países. Não houve nada de comparável, por exemplo, ao experimentalismo de um Paul Strand, nem ao vanguardismo de um Ivens de A Chuva ou A Ponte, nem às diferentes incursões surrealistas da autoria de artistas tão diferentes quanto René Clair, Man Ray, Germaine Dulac e Jean Painlevé, nem do impressionismo que marcou o cinema francês da época, tão pouco do expressionismo alemão e muito menos do vanguardismo soviético apontado a um cinema de carácter documental investindo na questão social.


Veja-se como em 1914 já Frank Hurley ultrapassava o mundo de newsreels sem imaginação ou como em 1915 já Curtis fazia uma primeira incursão no cinema etnográfico nos Estados Unidos com The Land of the War Canoes, de certa forma precursor do documentário seminal de Flaherty, Nanook of The North (1922). Atente-se no facto de John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico, ter começado a produzir reflexão sobre o filme documentário a partir de 1927, de resto, muito influenciado não só pelos extraordinários filmes soviéticos, mas também pelo trabalho teórico dos seus cineastas e, sobretudo, veja-se o destaque dado nas múltiplas histórias do documentário, que entretanto surgiram, à arqueologia do cinema documental e aos chamados filmes de factos, os quais, passando a ser melhor conhecidos, começaram a ser olhados de uma outra maneira, quer através de novos argumentos reforçando críticas habituais, quer expondo aspectos valorativos até então negligenciados e comprovativos de incursões narrativas mais ambiciosas e próximas do filme documentário.


Nada disso parece ter acontecido em Portugal. Durante a primeira República as actualidades e reportagens cinematográficas, bem como o cinema de enredo, foram marcadamente conformistas. Essa ausência de criatividade foi criticada pela nova geração, cujas ideias tinham expressão nas páginas de revistas especializadas. Mas, embora as elites cinéfilas tivessem conhecimento do melhor cinema contemporâneo, a verdade é que a produção de filmes documentais continuou a ser feita sem sobressaltos e na ausência quase total da procura de novos rumos. Não se entende, por isso, que possa ser invocada semelhança em relação ao que se fazia lá fora. Ou melhor, talvez haja uma razão para que assim seja. Na história do cinema português, só recentemente começou a prestar-se maior atenção ao cinema do real. Ainda assim, procurando vê-lo numa linha de continuidade daquilo que a partir dos anos 60 viria a ser a luta pela afirmação e identidade de um determinado cinema de autor ao qual estaria subjacente um olhar especificamente português.


António Ferro, o devoto de Salazar e amigo dos futuristas, que quis fazer a renovação do cinema português

Ora, até ao advento do som, a cinematografia nacional não tem, na realidade, muito por onde escolher. Daí, eventualmente, essa valorização da produção documental, a meu ver suspeita e susceptível de suscitar dúvidas. Suspeita porque equipará-la à produção estrangeira seria, na verdade, desvalorizá-la. Quanto às dúvidas, não se percebe como essa produção poderia ser boa vivendo paredes meias com filmes de enredo frágeis sem interesse, tão pouco se entendendo que, ao contrário do que se passava noutros países, os jornais de actualidades caseiros jamais – enfim, direi muito raramente para deixar em aberto a possibilidade de alguma irreverência que só um estudo aturado poderia confirmar – terão sido capazes de se elevar acima da reportagem rotineira. Algo como o controverso March of Time dos anos 30, um exemplo do sentido evolutivo e da interação narrativa entre newsreels e formas mais exigentes do cinema, seria simplesmente impensável em Portugal. Assim sendo, também não se vê como os filmes documentais portugueses possam ter estabelecido pontes de passagem consistentes para o filme documentário.



[1] . Barnouw, Erik – El Documental-Historia y Estilo, Gedisa Editorial, Barcelona, 1996, p. 19 e sgts. [2] . Barnouw, Erik - op. citada, pp. 28-29. [3] . Fielding, Raymond – The American Newsreel 1911-1967, University of Okla homa Press, Norman, 1982, p. 125. [4] . Fielding, op. citada, p. 135. [5] . Félix Ribeiro, op. citada, p. 13. [6] . Bénard da Costa, João – Histórias do Cinema, Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Lisboa, 1982, p. 20. [7] . Pina, Luís de – Panorama do Cinema Português - das origens à actualidade, Ed. Terra Livre, Lisboa, 1978, p. 11. [8] . Pina, op. citada, p. 12. [9] . Costa, Alves – Breve história do cinema português – 1896-1962, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação Científica, Lisboa, 1978. [10] . ibid. [11] . Félix Ribeiro, M. – Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949, Cinemateca Nacional, Lisboa, 1983, p. 231. [12] . ibid.



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Publicado em Avanca, Cinema 2010. Revisto em 2020.

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 26 de nov. de 2020
  • 20 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023



Se há momentos decisivos na História do Cinema e, em particular, do Cinema Documental, um deles remete certamente para os anos 20 do século passado na URSS. Numa altura em que revolução e propaganda convergiam na utopia de uma sociedade sem classes e na criação de um Homem Novo, o Cinema impôs-se como a mais importante das artes. Nesse laboratório de ideias, dois nomes sobrelevam os demais: Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. Tiveram divergências e alimentaram polémicas. Ambos eram comunistas com filiação nas vanguardas artísticas e participaram nas transformações da Revolução de Outubro de 1917. Com o estalinismo, na fase de consolidação do realismo socialista, ambos foram acusados de formalismo. Posteriormente, ambos foram de certa forma proscritos e impedidos de dar asas à sua imaginação criadora. Mas aquilo que criaram nos anos 20 do século passado continua a ser fonte de ensinamento e objeto de reflexão. É disso que brevemente trata este texto escrito para um encontro sobre Filosofia, Literatura e Cinema.


Cinema, Filosofia e Literatura convergem nas obras de dois dos maiores cineastas de todos os tempos: Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Cinema, por razões óbvias. Filosofia, de certo modo, posto que ninguém como eles terá levado tão longe o pensamento sobre a sua própria praxis. Literatura, é mais complicado. Na verdade, rejeitando a cultura burguesa, ambos mantiveram distâncias e, no caso de Vertov, há mesmo uma recusa radical de qualquer eventual contaminação do cinema pela literatura. Sendo um construtivista, Vertov quis dar expressão formal à energia das máquinas, símbolo dinâmico do progresso e, portanto, do futuro, bem como à luta do homem pela transformação revolucionária da sociedade. O que o atraiu para o cinema foi a estreita relação entre o processo fílmico e os mecanismos do pensamento humano. Declarando não ter “qualquer interesse na chamada Arte” – a expressão é sua e revela a extensão do corte epistemológico com o pensamento burguês – Vertov quis dar corpo à vida tal qual, sem artifícios. Seria essa a função do Cinema.


Eisenstein tinha um ponto de vista diferente. Dada a circunstância de todo o cinema soviético ser da responsabilidade do estado e estar inscrito num contexto doutrinário, até os chamados filmes de ficção estavam subordinados a formas de produção quanto aos temas, propósitos e métodos, cujos resultados de ordem social e estética os aproximavam do filme documentário. Isso é evidente nos seus próprios filmes. Mas, ao contrário de Vertov, Eisenstein estava convicto da impossibilidade de captar a vida tal e qual. Homem de um saber enciclopédico, via no cinema a ferramenta ideal para perseguir objectivos políticos libertando a imaginação criadora. Para ele tudo era artifício, rigor, emoção, dialéctica, linguagem: revolução.


Dziga Vertov e a proporção leninista do filme


Dziga Vertov

Dziga Vertov é o pseudónimo de Denis Arkadievitch Kaufman. Dziga é uma palavra ucraniana que pode significar coisas tão diversas quanto toupeira ou roda que gira sem parar. Vertov vem do russo vertet que pode querer dizer girar. Tudo junto, Dziga Vertov poderia representar algo como movimento perpétuo, o que tem tudo a ver com as correntes futuristas e construtivistas. Natural de Bialysto, na Polónia, então uma província da Rússia czarista, Vertov teve uma educação orientada para a arte e literatura revelando, desde muito cedo, uma propensão especial para a poesia e para a música.


Em 1915, após a invasão da Polónia pelas tropas alemãs, a família refugiou-se em Moscovo. Daí foi para São Petersburgo onde, nos dois anos seguintes, a par de estudos universitários, estabeleceu relações com uma elite intelectual influenciada por Maiakovski, Burlyuk, Khlebnikov e Kruchonykh, os autores do célebre manifesto Uma Bofetada no Gosto do Público. Por essa altura, começou também a desenvolver experiências no domínio do som tendo criado um Laboratório do Ouvido, no qual, com recurso a um fonógrafo, gravou a voz humana e sons da rua, a partir dos quais fez engenhosas montagens de poemas. No seguimento da Revolução de Outubro de 1917, decidido a trabalhar no cinema, rumou a Moscovo e, na Primavera de 1918, foi nomeado redactor responsável pelo primeiro jornal de actualidades do governo soviético, o Kino-Nedelia.


Lenine é apontado como tendo sido o primeiro homem de estado a encarar o cinema como uma ferramenta ao serviço de uma lógica revolucionária indissociável da agitação e propaganda (agit-prop). Em 1963, num artigo publicado na revista Iskusstvo Kino, Bontch-Bruievitch recorda uma conversa acalorada com Bogdanov, em 1917:


“Vladimir Ilitch escutava a conversa com atenção, meteu-se nela imediatamente e começou a desenvolver a ideia de que o cinema, enquanto estivesse nas mãos de vulgares comerciantes, faria mais mal do que bem, corrompendo frequentemente as massas através do conteúdo ignóbil das suas obras. Mas, naturalmente, quando as massas se apoderassem do cinema e quando ele se encontrasse nas mãos de verdadeiros militantes da cultura socialista, apareceria então como um dos mais poderosos meios de instrução” (Granja, 1981, p. 15).


Ao contrário do que por vezes se pensa, a Rússia pré-revolucionária dispunha de uma indústria cinematográfica relativamente desenvolvida. Havia 25 produtoras que davam saída a quinhentos filmes por ano e o país tinha mais de mil salas, nas quais a produção nacional representava 60 por cento do total das obras exibidas. Em 27 de Agosto de 1919, Lenine decretou a nacionalização do cinema.


As concepções respeitantes à produção soviética dos primeiros tempos defendiam a necessidade de um cinema capaz de reflectir sobre o quotidiano, o qual, segundo Lenine, encontraria na crónica a sua expressão mais adequada. Nunca antes alguém se referira ao cinema nestes termos. A crónica é um género jornalístico que autoriza o autor não só a reportar sobre a actualidade, mas também a comentá-la de um modo pessoal e impressionista. As actualidades cinematográficas deram acolhimento a essa ideia. Durante a guerra civil que opôs vermelhos a brancos – simpatizantes do antigo regime apoiados por tropas estrangeiras –, no meio de dificuldades de toda a ordem como a penúria da energia eléctrica, a diminuição para menos de metade do número de salas e os stocks de película praticamente esgotados, foi dada prioridade à produção de filmes informativos.


Competia a Vertov reunir e seleccionar as imagens provenientes das diversas frentes, organizá-las na mesa de montagem e fazê-las seguir de comboio para que povo e soldados pudessem ter conhecimento do que estava a acontecer na perspetiva do poder revolucionário. Pelo caminho esses “comboios da propaganda” paravam na maioria das estações ferroviárias para que os filmes pudessem ser exibidos e comentados como Chris Marker bem mostrou em Le Tombeau d’ Alexandre (1993), um documentário dedicado ao cineasta soviético Aleksandr Medvedkin, figura central da memória desse tempo.


A Cine-Sensação do Mundo


Vertov parte da matriz de newsreels – palavra que em inglês enfatiza a componente das notícias mais do que actualités, em francês, ou atualidades em português – para definir um percurso durante o qual a lógica informativa vai passar por diversas metamorfoses. Mas o Kino-Nedelia (Cine-Semanal) ainda está próximo dos jornais produzidos, por exemplo, pela Pathé ou pela Gaumont.


Em 1918-19, são elaborados 43 noticiários, todavia, sem a regularidade prevista, dadas as dificuldades existentes. Em todo o caso, esta experiência permite a Vertov não apenas aperceber-se do potencial retórico das imagens, mas também das possibilidades da montagem. A partir do arquivo que, entretanto, foi juntando, produziu um primeiro documentário de três horas, dividido em 12 partes, ao qual chamou O Aniversário da Revolução (1919). Este filme, merecedor do aplauso de Eisenstein, é considerado a primeira tentativa de montagem criativa da cinematografia soviética.


Numa segunda fase, já no final do ano de 1919, Vertov segue para a linha da frente acompanhado pelo operador de câmara Ermolov. Dessa experiência resulta A Batalha de Tsaritsyne (1920) onde, pela primeira vez, há sinais de como Vertov viria a encarar a câmara de filmar no processo de construção da realidade. Tanto assim que, em 1922, quando o Kino-Nedelia dá lugar ao Kino-Pravda (Cine-Verdade), aquilo a que se assiste já pouco tem em comum com os jornais de atualidades de outros países. Vertov faz tábua rasa das convenções. Proclama a impossibilidade de imagens banais permitirem a interpretação do mundo e desenvolve uma montagem agressiva. Numa entrevista inédita publicada após a sua morte em 1958 no nº 6 da revista Iskusstvo Kino, Vertov afirma que o Kino-Pravda não era apenas um vulgar jornal filmado:


“Este jornal (...) tinha a particularidade de estar sempre em movimento, de mudar constantemente de um número para o outro. Cada novo Kino-Pravda era diferente daquele que o precedia. O método de narração obtido pela montagem mudava sempre. Tal como a maneira de tratar a filmagem. E também o carácter das legendas e a maneira de as utilizar. O Kino-Pravda esforçava-se por dizer a verdade através dos meios de expressão cinematográfica. Neste laboratório, único no seu género, o alfabeto da linguagem cinematográfica começava a formar-se lentamente, obstinadamente. Alguns números do Kino-Pravda, que tinham a ambição de apresentar um tema em profundidade, adoptavam já as proporções das longas metragens. Foi nessa época que as discussões apareceram, que partidários e adversários se manifestaram. Os debates sucederam-se. Mas a influência do Kino-Pravda não deixou de se estender” (Granja, 1981, p. 54).


As teses de Vertov são indissociáveis da recusa do cinema comercial, tido como uma espécie de veneno ideológico do espírito crítico das massas. O seu pensamento teórico ganha espessura para fundamentar a linha do Kino-Pravda. Funda o Soviet Troikh (Conselho dos Três), do qual fazem parte, além dele próprio, a sua futura mulher Elisabeta Svilova, uma notável montadora de filmes, e o seu irmão, Mikhail Kaufman, famoso operador de câmara e, mais tarde, documentarista. No seu primeiro manifesto publicado no final de 1922, intitulado Nós, o grupo, entretanto auto-denominado Kinoki-documentaristas, interdita a encenação diante da câmara de filmar, ao mesmo tempo que reivindica a cine-sensação do mundo como forma de aceder à consciência crítica. No jornal Pravda de 19 de Julho de 1924, Vertov escreve:


“Milhões de trabalhadores, recuperando a vista, começam a duvidar da absoluta necessidade de sustentar a estrutura burguesa do mundo. Nesta grandiosa batalha cinematográfica, pelo nosso lado, não participa qualquer realizador, actor ou decorador – recusamos as facilidades do estúdio, varremos os cenários, a caracterização, o guarda-roupa (...) Quer se apresente sob a forma de uma narrativa cativante ou daquilo que se denomina uma folha de montagem preliminar, o argumento, que é um elemento estranho ao cinema, deve desaparecer para sempre” (Granja, 1981, p. 49).


O Homem da Câmara de Filmar

Na sua defesa de um cinema de não-ficção liberto do teatro e da literatura, Vertov acompanha a ideia inicial de Lenine segundo a qual 75 por cento da produção soviética deveria ser virada para a crónica do quotidiano. Posteriormente, em 1925, retomando aquilo que ficou conhecido como “a proporção leninista do filme” (Graham, 1999, p. 40), insurgiu-se contra a percentagem do orçamento do cinema destinada aos filmes de ficção, que calculou em 95 por cento, e avançou com uma proposta alternativa de utilização de recursos que atribuía 45 por cento das verbas ao Cine-Olho, 30 por cento aos filmes científicos e educativos e 25 por cento aos filmes de ficção. Na mesma linha de pensamento propôs o alargamento do documentário à rádio e defendeu o alargamento dos jornais radiofónicos.


O Kine-Olho


O processo evolutivo dos jornais cinematográficos de Vertov tem o seu ponto de viragem a partir do momento em que começa a colaboração com Rodchenko no número 13 do Kino Pravda e culmina com Kino-Glaz (Cine-Olho), um filme de não-ficção realizado em 1924, no qual rompe com as convenções narrativas para se aventurar por caminhos até então inexplorados.


Kino-Glaz principia de uma forma bastante prosaica com imagens de jovens pioneiros nas suas actividades – eles são o símbolo de homem novo que a Revolução se propõe construir. Parte depois para um discurso sobre o preço da carne do qual se conclui pela necessidade de formar cooperativas, de modo a eliminar o papel de intermediários parasitas. É então que o filme volta para trás, literalmente, num efeito que hoje nos pode parecer ingénuo, mas através do qual Vertov dá a entender ser indispensável banir os procedimentos especulativos. A partir daí, à medida que o filme mostra o caleidoscópio da sociedade soviética, há um criar de atmosferas que por vezes se aproximam ora do surrealismo dos primeiros filmes de Buñuel, ora da matriz observacional muito posterior dos documentários de Frederick Wiseman, como acontece nas cenas do asilo de alienados. Kino-Glaz não perde a sua função informativa nem deixa de ser expositivo, mas percebe-se que mais do que a pretensão à objetividade valoriza a reflexão.


Essa linha de pensamento enfrenta a incompreensão dos aparatchiks. Eles reconhecem apenas modelos de comunicação lineares de causa e efeito e não podem entender a cine-sensação do mundo, bem como os pressupostos da visão activa da câmara de filmar. Parte do público parece dar-lhes razão, só entra nas salas para assistir ao filme de fundo após a passagem do noticiário. Coerente com os seus princípios, Vertov defende-se dizendo ser necessário mudar o público. Leva as suas atualidades até às associações operárias e camponesas, Identifica o cinema como uma linguagem nova, total e infalível. Nos seus escritos, que por essa altura se multiplicam dando origem a numerosas polémicas, a palavra cine-olho aparece recorrentemente para afirmar a superioridade do olho da câmara sobre o olho humano:


“O cine-olho é o cinema explicação do mundo visível, ainda que esse mundo seja invisível para o olho humano” (Romaguera I Ramio, Joaquim y Thevenet,1989, p. 33).


Ou ainda:


“A história do cine-olho foi a de uma luta implacável para mudar o curso da atividade cinematográfica (…) para substituir a mise-en-scène pelo documento, para sair do proscénio do teatro e entrar no campo de batalha da própria vida” (Barnow, 19, p. 59).


A Kino-Glaz (1924) seguiram-se, em 1926, Shagai, Soviet! (Avante, Soviéticos!) e Shestaya Chast Mira (Uma Sexta Parte do Mundo), do qual Chris Marker viria a dizer tratar-se do melhor documentário de sempre. Em 1929, Vertov fez a sua obra mais radical, Chelovek Kinoapparatom (O Homem da Câmara de Filmar), um retrato da sociedade soviética e, simultaneamente, um ensaio sobre os mecanismos do cinema. Na entrevista de 1958 à revista Iskusstvo Kino, explicava-se:


“Porque motivo não faríamos um filme acerca da cine-linguagem, o primeiro filme sem palavras, um filme internacional que não tivesse necessidade de ser traduzido em qualquer outra língua? (...) Porque motivo (…) não tentaríamos nós descrever com esta linguagem o comportamento de um homem vivo, os actos realizados em diversas circunstâncias por um homem com uma câmara de filmar?” (Granja, 1981, p. 55).


O Homem da Câmara de Filmar



Com O Homem da Câmara de Filmar Dziga Vertov atinge o zénite criativo. Construído a partir de material filmado nos anos de 1924-28 pelos seus kino-documentaristas o filme é o último grande manifesto do cinema soviético. Mikhail Kauffman, o homem da câmara, observa através da objetiva o real circundante como que a dizer-nos que o mundo, na aparente banalidade do quotidiano é, afinal, muito mais interessante do que poderíamos supor. Esse real sofre uma dupla metamorfose. Num primeiro momento, o olho da câmara selecciona e interpreta. Num segundo momento, o material filmado é organizado na mesa de montagem onde se cumpre a segunda etapa da passagem do real a realidade, a qual, por sua vez, é, evidentemente, uma construção ideológica consequente da linguagem do cinema.


O filme convoca uma leitura plural e encerra um paradoxo magnífico, ou seja, suscita novas contradições no âmbito da tese que se propunha demonstrar. Apesar do real observado e surpreendido pelo olho da câmara e da ausência de atores, artifícios de iluminação, cenários artificiais e de tudo o mais que Vertov recusava, nem por isso deixa de ser encenação. Uma outra encenação, diga-se, posto que o imprevisível o afasta do chamado cinema de mensagem. Nele, o meio é a mensagem, mas sem que isso seja equivalente a algum tipo de determinismo tecnológico. Sim, a tecnologia é indutora de linguagens, mas a estas só a aprendizagem e a descoberta permitem aceder.


Por isso, a história – a havê-la – resulta da intervenção do destinatário em função quer da sua experiência pessoal, logo da cultura, quer do seu domínio da sintaxe do cinema, ela própria dinâmica, porque, afinal, o cinema está sempre a reiventar-se. Assim encarado, o cine-olho sugere a presença de um demiurgo – a câmara de filmar – capaz de levar o homem ao longo de um percurso com o intuito de lhe proporcionar a oportunidade de ver claramente visto. Esse percurso, porém, está nos antípodas da facilidade. É feito de marcas que é preciso seguir, identificar, ler e reinterpretar sem garantia de uma via única. É, ao fim e ao cabo, o processo segundo o qual, na filosofia marxista, é indispensável aceder a um nível de consciência superior – a consciência de classe – com vista à construção do homem novo.


O Homem da Câmara de Filmar remete, portanto, para um tipo de conhecimento que exige uma espécie de distanciamento brechtiano. Ao espectador impõe-se uma atitude vigilante face ao espaço do ecrã e aos dispositivos que o condicionam. É a partir dessa distância crítica que ganha espessura a revelação do real, não num sentido de uma verdade irrefutável, antes num contexto de abertura de possibilidades onde cada um poderá encontrar um lugar particular ainda que num quadro de referências previamente determinado de acordo com o ponto de vista do autor.


Quando, em 1929, Vertov mostrou O Homem da Câmara de Filmar, ter-se-á encerrado simbolicamente o ciclo em que a imagem foi rainha e a montagem determinante. Nesse ano, o cineasta visitou Paris, onde deparou com uma restrita vanguarda cinéfila entusiasmada com o cinema da União Soviética onde, por sinal, o seu filme tinha sido recebido com mais reserva do que entusiasmo, suscitando, nos círculos oficiais, insinuações de formalismo. Para mais, ao rejeitar o argumento como veículo de concretização dos seus filmes, Vertov tornara-se suspeito de perfilhar um ponto de vista anti-planificador.


Nesse mesmo ano de 1929, o Partido Comunista (PCUS) produziu uma normativa segundo a qual a maioria dos trabalhadores da indústria cinematográfica deveria ser de origem proletária e a Associação de Trabalhadores Revolucionários da Cinematografia decretou como fim último destacar os êxitos do Plano Quinquenal...


Sergei Eisenstein e a sensorialidade do corte


Tal como Vertov, também Sergei Eisenstein, nascido em Riga, na Letónia, em 1898, foi influenciado pelo ambiente familiar no interesse pela arte. Estudou no Instituto de Engenharia de Petrogrado. Quando do derrube do Czar, os pais partiram para a Europa mas ele optou por alistar-se como engenheiro no Exército Vermelho. Durante dois anos, dedicou-se a construir pontes. Depois, seguindo a sua inclinação artística, começou a desenhar cartazes de propaganda. Um acaso tê-lo-á levado até ao mais famoso teatro de Moscovo, na linha do Proletkult, onde leccionavam Stanislavsky e Meyerhold. Apaixonado pelo teatro, o jovem Eisenstein alimentava suspeitas quanto ao cinema que considerava um meio pobre. Contudo, na tentativa de demonstrar a superioridade do primeiro sucumbiu ao fascínio do segundo.


Sergei Eisenstein

Eisenstein foi discípulo de Meyerhold. Tributário da comedia dell´arte e do romantismo alemão, Meyerhold procurou identificar o papel do ator no contexto de um teatro desverbalizado, entendido como uma forma de conhecimento puro, veloz, plasticamente associado à importância atribuída à expressão corporal. O corpo do ator seria uma espécie de máquina bem oleada, na tradição popular da pantomima, devendo movimentar-se, como então se dizia, num registo combinado da disciplina militar e do rigor da álgebra. Esta concepção, que remete para a biomecânica, opunha-se à de Stanislavsky, de índole mais psicológica e naturalista.


Quer no teatro, quer no cinema de Eisenstein são evidentes as marcas de Meyerhold. Exemplo é a utilização da tipagem, o processo que permite o reconhecimento imediato dos traços de carácter das personagens em função da importância atribuída ao corpo, vestuário e fisionomia dos actores. O mesmo poderia afirmar-se a propósito da montagem de atrações ligada a uma gama de recursos expressivos nos quais avultam, por exemplo, o circo e outras formas de cultura popular. Para Eisenstein a atração é a unidade de significação que cabe num discurso global orientado para a estimulação sensorial e psicológica do espectador, de modo a dirigir e condicionar o seu envolvimento emotivo.


Esta linha de pensamento, complementada pelo universo conceptual de Pavlov, tem pontos de contacto com os seus trabalhos teóricos sobre a montagem cinematográfica, nos quais se reconhecem os princípios da dialéctica marxista: uma força (tese) colide com a sua contrária (antítese), de modo a produzir um fenómeno novo (síntese). A síntese, evidentemente, não corresponde a um mero somatório da tese e da antítese. É algo de diferente. Dito de outra maneira, o plano, ou ‘célula de montagem’, é uma tese; quando colocado em justaposição com outro conteúdo visual oposto – a sua antítese – produz uma síntese, uma ideia sintética ou impressão, a qual, por sua vez, se transforma na tese de um novo processo dialéctico. A montagem dialéctica resulta, portanto, da colisão de diferentes planos independentes. Utilizando uma metáfora industrial, Eisenstein comparava esse processo “à série de explosões de um motor de combustão interna, levando para diante o automóvel ou o tractor” (Campos, 1994, p. 74).


Em princípio, a montagem tem a idade do cinema, mas é evidente que ela só é encarada em termos de produção de sentido quando as imagens em movimento se distanciam da mera reprodução do real e o cinema corta as amarras com o ‘teatro filmado’. O passo decisivo nesse sentido foi dado por David Wark Griffith. Com ele nasceu o cinema arte, o cinema espectáculo e o cinema grande indústria que viria a ter Hollywood como epicentro. The Birth of a Nation, realizado em 1914-15, vale como exercício narrativo e, nessa qualidade, é um filme paradigmático. Apresentando os cavaleiros brancos da Ku Klux Klan como salvadores da velha sociedade aristocrática e esclavagista do Sul dos Estados Unidos, desencadeou protestos e tumultos. O pendor racista amarrou-o à polémica. Até hoje. Porém, a linguagem do cinema atingiu a maioridade com The Birth of a Nation. Ao variar o ponto de vista da câmara, ao trabalhar a plasticidade das imagens, ao combinar planos de diferentes tamanhos Griffith abriu caminho à articulação sequencial reveladora da natureza semântica do corte. Por essa via, descobriu, igualmente, o ritmo subjacente à estrutura narrativa.


Eisenstein foi mais longe. Estudioso de Griffith, mas também admirador de Chaplin, Eisenstein elaborou a parte mais significativa de toda a produção teórica sobre a montagem no cinema. Apoiado nas experiências de Kuleshov, demonstrou como o significado do plano ou da sequência depende de outros planos ou sequências que lhes estejam associados. Para Kuleshov a montagem era o traço distintivo do cinema. Segundo ele, os planos deviam ser simples e expressivos de modo a proporcionarem clareza de leitura. Valorizou o ritmo a ponto de afirmar ser ele o verdadeiro conteúdo de um filme, visto orientar o pensamento e as emoções do público. O Eisenstein dos anos 20 tomou boa nota da lição. Assim como das teses de Vertov, das quais frequentemente discordou.


O Kine-Punho


O Couraçado Potemkin

Embora contrário à tendência documentarista – “não acredito no cine-olho, acredito no cine-punho” (Wollen, 1984, p. 43) – Eisenstein atribuía a Vertov a invenção do ritmo musical no cinema, “conduzindo o andamento do filme por via do ritmo calculado do corte” (Wollen, 1984, p. 51). Boa parte da tipologia da montagem de Eisenstein – a qual, pela sua complexidade, exigiria outro texto – é, aliás, justificada através da analogia com elementos musicais. Fiel, por um lado, à ideia de que a obra de arte se destina a produzir emoção e, por outro, a uma concepção materialista do mundo, não hesitou em utilizar o cine-punho como arma para elevar a consciência política das massas:


“Se queremos que o espectador experimente uma tensão emocional máxima, pô-lo em êxtase, devemos oferecer-lhe uma fórmula adequada que eventualmente provoque nele as emoções desejáveis” (Wollen, 1984, p. 51).


No entanto, a um comunista colocar-se-ia sempre a questão de saber como compatibilizar a proposta do homem novo do iluminismo marxista com o carácter sensorial, emotivo, dos procedimentos inerentes ao corte e à sua função significante. Eisenstein seguramente ter-se-á dado conta dessa contradição. Procurou por diversas vezes lidar com ela, designadamente através daquilo a que chamou montagem vertical, segundo ele a mais adequada para veicular teses ideologicamente dirigidas convocando razão e emoção. Na prática, porém, esta sua ideia nunca foi suficientemente desenvolvida deixando em aberto o projecto que lhe estava subjacente de fazer um cinema que fosse a síntese da arte e da ciência numa perspetiva revolucionária.


Os filmes de Eisenstein dos anos 20, sendo inclassificáveis, têm pontos em comum com o documentário. Estamos perante acontecimentos do presente ou do passado em que os indivíduos são encarados numa perspectiva relacional com as instituições, de modo a fazer emergir os aspectos de ordem política, económica e social como elementos nucleares da narrativa. A Greve (1924) parte de um conflito laboral para se interrogar sobre a consciência de classe. Aqui é patente a influência de Meyerhold e da montagem das atrações. O Couraçado Potemkin (1925) evoca um episódio da revolução russa de 1905, a revolta dos marinheiros de um navio de guerra contra a hierarquia de bordo, para construir uma metáfora da Revolução social. Na célebre sequência da escadaria de Odessa constrói uma imagem da repressão e do conflito de classes sem paralelo na história do cinema. Na sua versão completa o filme dura 86 minutos à velocidade do cinema mudo – 16 imagens por segundo – enquanto O Nascimento de uma Nação de Griffith tem a duração de 195 minutos, ou seja, mais do dobro. Em ambos os filmes há, porém, um número quase idêntico de planos: 1.346 no caso de Eisenstein e 1.375 no caso de Griffith. Se a isto se juntar o facto de cada plano de O Couraçado Potemkin ser rigorosamente planeado facilmente se percebe a envergadura conceptual do autor do filme. Outubro (1928), concebido para assinalar o 10º aniversário da tomada do poder pelo partido de Lenine, faz a reconstituição da conquista do Palácio de Inverno em São Petersburgo e do derrube do governo de Kerenski por forma a inferir a legitimação do poder soviético. A Linha Geral (1929) funciona como uma espécie de Kino-Pravda alargado e aborda o quotidiano de uma cooperativa agrícola, contrapondo o velho e o novo. Esta é a obra de Eisenstein na qual são levadas mais longe as alegorias sexuais e mais se faz sentir a influência de Freud, designadamente, na sequência da desnatadeira, metáfora da libertação dos preconceitos através da sugestão do orgasmo.


Onde estes filmes – pensados como épicos e construídos em cinco partes à maneira da tragédia clássica, mas com um único coro que se identifica com a voz do herói colectivo, o povo – mais se afastam da tendência documentarista é nas reconstituições históricas e nas cenas de inspiração mais marcadamente teatral, que são tanto um reflexo da imaginação criadora e da passagem do autor pelo Proletkult, quanto uma consequência das suas concepções estéticas ligadas às agora designadas Teorias Formalistas do Cinema, das quais, aliás, é o maior expoente.


Como resultado de uma notável energia criadora, a cada filme seu estão associadas teses correspondentes a um trabalho teórico de mais de 30 anos. Em O Couraçado Potemkin (1925), por exemplo, são patentes as marcas dos diferentes tipos de montagem por ele identificados. No conjunto da sua obra, que vai para além do advento do som, encontram-se referências tão distintas quanto as que decorrem do seu fascínio pelo teatro kabuki, pela psicanálise ou pela utilização da música e da cor. Nessa torrente de pensamento criou numerosos conceitos. Por exemplo, na linha dos construtivistas, designou por neutralização o processo de decomposição da realidade em blocos ou unidades em tensão dialéctica, não obedecendo a uma qualquer ordem de significação hierárquica.


A abrangência e complexidade do seu trabalho marcou a distancia para outros gigantes seus contemporâneos, nomeadamente Vsevolod Pudovkin. Este acreditava que a intervenção do realizador devia incidir sobre a escolha adequada e posterior organização de aspectos do real que, sendo pré-existentes ao filme, continham em si mesmos um sentido destinado a ser esclarecido através do cinema. Nesta perspectiva, as propostas de Pudovkin estão mais próximas do realismo do que as de Eisenstein. Mas, em qualquer dos casos, como de resto aconteceu com a generalidade dos cineastas soviéticos dos anos 20, estava em causa fazer um cinema indissociável da vida, capaz de a reinventar através de um processo incessante de busca da forma certa para dizer o que se julgava necessário ser dito. Mais tarde, Eisenstein diria em A Forma do Filme:


“Como arte genuinamente maior, o cinema é único porque, no sentido pleno do termo, é um filho do socialismo. As outras artes têm séculos de tradição atrás de si. Os anos cobertos por toda a história da cinematografia são menos do que os séculos durante os quais as outras artes se desenvolveram. Porém, mais essencial é que o cinema como uma arte em geral e, alem disso, como uma arte não apenas igual, mas em muitos aspectos superior às suas artes companheiras, começou a ser considerado seriamente apenas com o início da cinematografia socialista” (Eisenstein, 2002, p. 164).



Conclusão

A derradeira citação é uma consequência da experiência de Eisenstein em diversos países europeus, nos Estados Unidos e no México na viragem da década de 20 para a década de 30. Nessa altura, apesar da censura, os filmes soviéticos passavam em circuitos mais restritos e suscitavam o entusiasmo de elites tão interessadas no Cinema quanto na Revolução. Vertov teve igual receptividade em França. Certamente, as ideias de Eisenstein resultaram mais da curiosidade do artista e do visionário do que propriamente dos métodos de uma qualquer ciência exacta. O mesmo é aplicável a Vertov. Mas, por isso mesmo, o pensamento de ambos tem singular alcance prospetivo, porventura ultrapassando até o universo do cinema para se estender ao plano da teoria e da linguagem de outros media e, em particular, da televisão. A ênfase posta nos processos fisiológicos e sensoriais nas suas relações com o cinema antecipa, de algum modo, aspectos do pensamento contemporâneo como sucede com Marshall McLuhan. Na medida em que se estabelece um vínculo entre o que se considera ser a natureza de um medium e a sua linguagem abre-se, por outro lado, o caminho à fundamentação que autoriza a identificação de discursos e narrativas. Tal como na Literatura, também no cinema há metáforas, alegorias, figuras de estilo, subtextos. Sim, o Cinema precisa de ser pensado e as imagens carecem de ser lidas. E, expurgadas dos aspectos mais datados da ideologia, as obras de Vertov e Eisenstein continuam a desafiar o conformismo inscrevendo-se no plano da cidadania.


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Publicado em: (Im) possíveis (trans) posições, Ensaios Sobre Filosofia, Literatura e Cinema, Zéfiro, 2014.























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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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