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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 4 de fev. de 2021
  • 8 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023

Parecia estar tudo dito sobre o movimento documentarista britânico criado pelo escocês John Grierson no final dos anos 20 do século passado, eis que o tema voltou a ser motivo de debate. Para tanto, muito contribuíram as excelentes publicações do British Fim Institute (BFI) em DVD de uma parte da sua produção, porventura a melhor. De 1929 a 1939, ou seja, até ao início da II Guerra Mundial, foram feitos mais de 300 filmes envolvendo 60 profissionais. Durante a guerra, estima-se que possa ter sido produzida cerca de mais uma centena. Como se compreenderá, dada a heterogeneidade do movimento, esses filmes são bastante diferenciados, embora neles possam identificar-se basicamente duas tendências, uma mais poética e narrativa, outra de índole mais didática e jornalística. Grierson, aliás, ao cunhar a palavra documentário como sendo “o tratamento criativo da atualidade”, deixou, desde o início, o caminho aberto a ambas. Os textos que se seguem reportam à História e Teoria do movimento e resultam quer da recuperação de episódios da minha tese de Doutoramento quer de notas dos cadernos de apontamentos que tenho vindo a acumular ao longo dos anos. São textos revistos e, na medida do possível, atualizados. Em artigos já publicados no segmento de Cinema de Narrativas do Real, os mais interessados poderão encontrar informação complementar útil, por exemplo, na entrevista que fiz a Brian Winston, bem como num outro artigo sobre os anos de ouro das atualidades cinematográficas em que se fala de March of Time.


John Grierson. Fonte: Australasian Screen Studies Network

Dada a influência que exerceu no plano da teoria e da prática o movimento documentarista britânico é uma referência matricial de praticamente tudo quanto diz respeito ao cinema documental após o advento do cinema sonoro. Durante muito tempo foi encarado como uma escola de virtudes na qual um punhado de cineastas radical teria dado corpo a uma obra excepcional. Não foi bem assim. A sua influência foi indiscutível, mas a imagem que durante muito tempo perdurou do movimento resulta da aceitação de um mito. Entre os que o alimentaram destaca-se Henri Langlois, da Cinemateca Francesa, cujo prestígio, só por si, praticamente garantia a legitimação das opiniões que emitia. Bastaria, no entanto, confrontar o mito com testemunhos e textos de reflexão contemporâneos do percurso de duas décadas do movimento documentarista britânico, designadamente os do próprio John Grierson e de Paul Rotha, para se constatar até que ponto ele simplificava uma realidade complexa. Posteriormente, o escrutínio e revisão crítica levados a cabo nos anos 80 e 90 do século passado, quer por autores de algum modo influenciados pelo pós-modernismo quer por outros mais radicais à esquerda, permitiu repensar não só o movimento mas também a própria ideia de documentário, bem como dos mecanismos subjacentes à sua produção, realização e institucionalização. Mas a história não acaba aqui. Na segunda década do século XXI, O British Film Institute (BFI), ao lançar em DVD uma parte dos filmes produzidos no âmbito do movimento, designadamente do General Post Office (GPO), o debate reacendeu-se assumindo novos contornos.


Industrial Britain (1931) de Robert Flaherty

No seu ensaio de 1942 The Documentary Idea Grierson, declarou que “o documentário foi desde o início (...) um movimento anti-estético ”. Como teremos ocasião de verificar, o seu pensamento é contraditório, mas isso mesmo resulta, por estranho que pareça, de uma posição de coerência. Com efeito, Grierson encarou sempre o documentário como um produto do seu tempo e, como tal, susceptível de assumir múltiplas faces. Fazendo justiça a essa coerência, que remete para a historicidade, a primeira nota a reter é o movimento documentarista britânico ter sido criado para estar ao serviço da propaganda.


Stephen Tallents, o homem que levou Grierson para o Empire Marketing Board, era, ele próprio, um brilhante propagandista, autor de Projection of England, uma obra na qual se procurava, designadamente, enquadrar o papel dos artistas para efeito de promover uma imagem positiva do Império. Grierson nunca negou esse aspecto, chegando a lamentar que isso não fosse compreendido pelos candidatos a trabalhar nas suas unidades de produção, na maioria dos casos, em seu entender, mais preocupados com a arte do cinema do que com a sua função educativa.


Stephan Tallents, autor de Projection of England, uma obra na qual se procurava, designadamente, enquadrar o papel dos artistas para efeito de promover uma imagem positiva do Império. . Fonte: National Portrait Gallery

Na prática, a circunstância histórica produziu efeitos a dois níveis. Em primeiro lugar, a eficácia da propaganda, sendo fundamentalmente dirigida às massas, tinha de estar associada a um intuito instrumental capaz de tirar partido da expansão dos meios de comunicação social. O documentário desenvolveu-se, portanto, num contexto de articulação e cruzamento de media. Em segundo lugar, todo o edifício institucional do movimento documentarista foi construído a partir de uma rede de compromissos cuja tela de fundo era, justamente, a propaganda. De acordo com o próprio Grierson, o movimento documentarista, tal como ele o concebeu, foi uma ideia saída da faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, no início dos anos 20, e não do interior do mundo do Cinema.


John Grierson, arte e propaganda


Em Outubro de 1924, então com 26 anos, John Grierson, Leitor da Universidade de Durham com um mestrado em Filosofia e Literatura, chegou aos Estados Unidos com uma bolsa da Rockefeller Foundation para estudar os problemas da imigração. Rapidamente o seu interesse derivou para os meios de comunicação social, o que o levou a estudar a imprensa, a rádio e o cinema e a colaborar como jornalista no Evening Post de Chicago onde teve uma coluna sobre pintura. Virou-se depois para a crítica cinematográfica, através da qual alcançou rápida notoriedade.


Pouco tempo antes, em 1921, Walter Lippmann publicara Public Opinion, hoje um obra clássica da Comunicação. Segundo Lippman havia uma contradição entre a afirmação dos princípios igualitários subjacentes à democracia e a hierarquia social resultante da moderna sociedade de massas. Para ele, as mensagens veiculadas através da imprensa eram incapazes de proporcionar uma visão rigorosa da complexidade do mundo dando lugar, pelo contrário, a leituras estereotipadas e, como tal, a uma simplificação do entendimento do real com consequências negativas para o exercício da cidadania. Influenciado pelo pensamento conservador, Lippman partiu de considerações deste tipo para justificar a necessidade de governos de elites e de especialistas capazes, dada a sua qualificação, de ajudarem a resolver os problemas da sociedade.


Walter Lippmann, autor de Public Opinion. Fonte: Brewminate

Embora sendo um admirador do escritor e jornalista americano, o jovem Grierson não só não partilhava do seu pessimismo quanto aos media, como viu neles e, em particular no cinema, a possibilidade de ultrapassar os constrangimentos ao exercício da cidadania. Inserido num contexto pedagógico, o filme, segundo Grierson, poderia contribuir para o reforço das estruturas da sociedade democrática e ajudar a resolver os problemas existentes. Foi este o fundamento a partir do qual viria a elaborar a sua teoria e prática do filme documentário, uma e outra enraizadas na tradição do pensamento idealista que influenciou a vida intelectual britânica desde 1880 até à eclosão da II Guerra Mundial.


Na linha dessa tradição, em parte transmitida pelo pai, em parte assimilada enquanto estudante de filosofia na Universidade de Glasgow onde se familiarizou com o pensamento de Platão, Kant e Hegel, bem como com os neo-hegelianos e com os socialistas idealistas, Grierson viria a assumir-se como um pedagogo que acreditava na aplicação de medidas reformistas capazes de melhorar o funcionamento das instituições democráticas. Nessa perspectiva, afastando-se do materialismo marxista, “rejeitava a ideia da existência de divisões fundamentais no seio da sociedade, argumentando que a vida social se caracterizava por uma matriz de relações interdependentes e, como tal, que sociedades e instituições altamente integradas eram superiores àquelas que o não eram”. Partilhando com John Reith, o primeiro director executivo da BBC, preocupações quanto à função educativa dos meios de comunicação social, Grierson entendia, ainda assim, no final dos anos 20 do século passado, que a arte se situava num plano superior devendo evitar, por isso, expressar-se de modo didáctico.


Todas estas influências convergiram na primeira sistematização teórica de Grierson a propósito do filme documentário constante de um memorando apresentado ao Empire Marketing Board (EMB), a organização governamental para onde fora trabalhar após o seu regresso dos Estados Unidos. A missão do EMB consistia em estreitar os laços de comércio com as diferentes partes do Império Britânico desenvolvendo, para o efeito, acções de propaganda e de relações públicas. Contando com o apoio de Stephan Tallents e do poeta e dirigente do Partido Conservador Rudyard Kipling, Grierson pôde assim delinear, entre 1927 e 1929, um plano de produção de filmes cuja concretização seria cometida à sua unidade de cinema criada em 1930.


Rudyard Kipling. Fonte: Templo Cultural Delfos

Os filmes que viessem a ser produzidos deveriam contribuir para alterar a visão que a metrópole britânica tinha do seu império, na medida em que se pretendia substituir os velhos paradigmas da dominação colonial por outros que permitissem reforçar o espírito de comunidade. Na prática, como sugerem alguns autores, entre os quais Barnouw, o que estaria realmente em causa era uma tentativa de acautelar eventuais manifestações de autodeterminação e independência por parte dos povos colonizados .


Em todo o caso, John Grierson tinha em mente um projecto inovador em relação às práticas institucionais correntes. No memorando apresentado ao EMB considerava a principal função do filme documentário representar a “interdependência e evolução das relações sociais de uma forma dramática, descritiva e simbólica”. Essa função obedecia simultaneamente a requisitos de ordem sociológica e estética: “sociológica porque envolve a representação das relações sociais, e estética porque exige a imaginação e meios simbólicos com vista à sua concretização”. Grierson destacava, por outro lado, a superioridade do cinema face aos outros media em termos de abordagem do real, uma convicção adquirida através do conhecimento - e admiração - dos filmes soviéticos, como, aliás, o demonstra Drifters, a sua primeira obra como realizador, na qual é evidente a influência de Eisenstein.


Drifters (1929) de John Grierson. Fonte: BFI

Drifters é um filme sobre a pesca do arenque e foi estreado em 10 de Novembro de 1929 como complemento de O Couraçado Potemtkin. A crítica inglesa não lhe poupou elogios, embora os responsáveis do Empire Marketing Board tivessem chegado a sugerir a supressão de algumas cenas. Independentemente dos seus méritos ou deméritos, Drifters tornou-se numa referência quanto aos princípios orientadores do movimento documentarista britânico dos primeiros tempos – até 1934/35 –, basicamente assim resumidos: prioridade à imagem na linha de teorias anteriores ao advento do som, nomeadamente de Balazs, Arnheim e Kracauer, sendo que no caso dos teóricos realistas o cinema era ainda visto como um instrumento capaz de tornar o “real” visível; valorização da montagem como elemento determinante da atribuição de sentido, na linha de pensamento dos formalistas soviéticos; incidência nos temas sociais e na sua representação.


Estes princípios estão contemplados num ensaio de 1932 intitulado First Principles of Documentary. Contudo, apesar da insistência no primado da imagem, Grierson exprime reservas em relação a filmes sinfonia como Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti e Berlim (1926) de Walther Ruttmann, uma vez que já considerava o poder da arte indissociável do seu impacto social.

Apesar dos pressupostos alinhados pelo pensamento teórico dominante no cinema da época, a maioria dos filmes produzida no tempo do EMB, segundo Sussex, tem hoje interesse meramente académico. Os enunciados de Grierson, nomeadamente a exigência do tratamento criativo da actualidade, pouco eco tiveram. A importância dos primeiros anos do movimento parece assim residir, fundamentalmente, nas condições institucionais criadas para um posterior desenvolvimento, por um lado da produção e realização e, por outro, da teoria e prática do documentário.


Ainda assim, Aitken admite que o modelo inicial de Grierson se circunscreve ao Empire Marketing Board, “sendo gradualmente ultrapassado por outros mais próximos da história documentada ou da abordagem didáctica, uma e outra de carácter mais jornalístico”. Esta posição poderá ser parcialmente justificada pela coexistência do movimento documentarista britânico dos anos 30 com newsreels como March of Time, mas dificilmente poderá ser tomada à letra tendo em conta a produção ulterior e a diversidade dos colaboradores de Grierson.




(Continua)


Bibliografia


AITKEN, Ian – The Documentary Film Movement - An Anthology, Edited and Introduced by Ian Aitken, Edinburgh University Press, Edinburgh, 1998.

BARNOUW, Erik – El Documental – Historia y estilo, Editorial Gedisa, Barcelona, 1996.

GRIERSON, John – Grierson on Documentary, Forsyth Hardy, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1966.

Grierson on Documentary, ed. Forsyth Hardy, Faber and Faber, London and Boston, 1966.

LIPPMANN, Walter – Public Opinion, MacMillan, New York, 1921.

ROTHA, Paul – Documentary Film, Faber and Faber, London, 1952.

- Documentary Diary, Hill and Wang, New York, 1973.

- Television in the Making, edited by Paul Rotha, The Focal Press, London and New York, 1956.

SUSSEX, Elisabeth – The Rise and Fall of British Documentary, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1975.

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 6 de jan. de 2021
  • 27 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


Quem tenha visto e sentido o rosto do Fürher em O Triunfo da Vontade nunca o esquecerá. Há-de persegui-lo nos dias, nos sonhos, na vontade, como uma chama silenciosa, queimando no interior da alma.
Joseph Goebbels

Este texto é sobre Leni Riefenstahl. Assume-se como algo especulativo posto que se permite incursões na esfera privada da cineasta de Hitler para suscitar questões da esfera pública, designadamente, no campo da estética. Na verdade, transita em torno da sexualidade. Como teremos ocasião de verificar, não se trata de uma abordagem nova. De diferentes maneiras já outros a empreenderam. Regra geral, ou fazendo a reabilitação de um génio – caso das famosas cartas de Jean Cocteau – ou desconstruindo uma mentira – como sucede de modo contundente em Fascinating Fascism de Susan Sontag. Depois, evidentemente, há o testemunho pessoal de Riefenstahl onde sobram confissões e justificações mais ou menos oblíquas, mas nunca desinteressadas, à volta da sua vida privada e até da sua intimidade. Uma coisa, porém, ela não esconde nas suas Memórias, o fascínio pelo Fürher: “Foi como se tivesse sido iluminada por um relâmpago” (Bach, 2007)”.


Fonte: Chronogram Magazine

Privou com ele e a ele teve acesso até ao fim, mesmo quando a guerra já era dada por perdida. Privou, igualmente, com a elite do III Reich, embora sempre tenha alegado nada saber de política e menos ainda das atrocidades do nazismo. Este sentido de negação é fascinante. E inquietante. O nosso tempo, de forma mais ou menos explícita, recupera uma simbologia cujo conteúdo latente sugere a possibilidade de lidar confortavelmente com a banalidade do mal ou, simplesmente, ignorando-a ou dela ficando refém, como um vício.


Essa banalidade está presente em filmes como Os Malditos (1969) de Luchino Visconti ou O Porteiro da Noite (1974) de Liliana Cavani. Ambos tomam a esfera privada como ponto de partida para uma abordagem do nazismo enquanto lugar de uma paranóia construída em função de valores desviantes, contudo, socialmente aceites. Portanto, uma paranóia normativa. Mais recentemente, o cineasta russo Alexander Sokurov recriou a intimidade de Hiltler em Moloch (1999), um dos filmes da sua Tetralogia do Poder, na qual cabem, igualmente, Lenine em Taurus (2001), o Imperador Hirohito do Japão em O Sol (2005), bem como Fausto (2011), baseado na obra homónima de Goethe, um retrato aterrador de relações de poder e do sentido da vida de quem persegue a imortalidade. As figuras, simultaneamente messiânicas e irrisórias, de Sokurov têm um denominador comum: venderam a alma ao diabo.


Em Moloch, Hitler é um ser hipocondríaco, impotente e patético, incapaz de lidar com o mundo a desmoronar-se à sua volta. No início do filme Eva Braun surge nua a exibir o corpo nas ameias e varandas de Berghof, a casa e quartel-general do Fürher em Obersaizberg, nos Alpes bávaros. Ela sabe que a guarda pessoal do ditador colocada nas montanhas em redor a observa com potentes binóculos através de uma neblina a fazer lembrar os Nibelungos (1924) de Fritz Lang. Dá-se a quem não a pode ter e cuja missão é velar pela segurança do homem que não satisfaz o seu desejo. Ele está prestes a chegar na companhia do casal Goebbels, Joseph e Magda, do seu braço direito Martin Boorman e ainda do inevitável secretário amanuense cuja missão é anotar tudo quanto o Hitler possa dizer, de modo a que nada se perca da eloquente clarividência que lhe é atribuída.


Moloch (1999) de Alexander Sokurov

Noutra cena, Magda Goebbels confidencia a Eva Braun o fracasso do seu casamento com o Ministro da Propaganda e gaba a sorte da amiga por ser amante de um génio. Amar um génio, responde Eva Braun, é como estar perto da Lua ou do Sol. Ou seja, longe. Hitler absorvido com o seu passatempo favorito, ver e rever as actualidades cinematográficas (Deutsche Wochenschau), não se apercebe da conversa. Boorman tinha advertido para não se falar na frente Leste. Mas é esse o tema dos filmes, cuja qualidade Hitler deplora. Terminada a sessão, Eva Braun sugere-lhe ironicamente que mande os responsáveis para Auschwitz. Auschwitz, pergunta ele, o que é Auschwitz?


É o mesmo tipo de resposta tantas vezes dada pela cineasta do III Reich Leni Riefenstahl quando confrontada com as suas responsabilidades. Aliás, também ela frequentou Berghof – um lugar recuperado e decorado pelo próprio Hitler – por onde passaram convidados como Mussolini, Aga Khan, Lloyd George, o Duque e a Duquesa de Windsor e até um eufórico Neville Chamberlain, o primeiro-ministro britânico que deixou a Alemanha convencido de poder anunciar à Inglaterra e ao mundo que não haveria a guerra cujo início seria dias depois. Por lá passaram, também, intocáveis como Speer, Himmler, von Ribbentrop, Wolff e Hydrich, todos eles presenças regulares. De quando em vez, a casa enchia-se também de artistas considerados símbolos maiores da “grande arte de expressão alemã” como Arno Breker, o escultor dos corpos perfeitos.


Até agora, o texto tem convocado elementos cujo interesse decorre da importância atribuída à esfera privada para efeito de uma leitura da História e dos seus protagonistas a partir do trabalho de criação. E o cinema, como se sabe, é um poderoso meio de reflexão sobre o mundo. Nas páginas seguintes, porém, encontrar-se-á uma combinação de registos factuais com outros de natureza mais opinativa, através dos quais se pretende desenhar o contexto no qual Leni Riefenstahl emergiu como estrela de primeira grandeza. Finalmente, tratando-se de lidar com o mito, bem como com os dois filmes que perpetuam o culto a ele associado, optou-se por esbater fronteiras – o real e o ficcional – de modo a alargar o campo das possibilidades de interpretação e perspectivar uma conclusão em aberto. No fundo, trata-se de proceder como faz o cinema documental quando se propõe dar a ver um real imaginado.


Escultura de Arno Breker, favorito de Hitler

Propaganda, a sedução do génio


Tal como noutros países totalitários, a Alemanha recorreu à concentração e combinação de media para ampliar o efeito de persuasão das mensagens. Se a importância atribuída à imprensa foi relativa, ainda que não negligenciada, foi na rádio e no cinema onde essencialmente incidiu o esforço da propaganda nazi. Hitler fazia questão de ter opinião própria sobre tudo e acreditava que a vitória do nacional-socialismo passava pela conjugação do cinema, da rádio e do automóvel. O automóvel não será para aqui chamado, apesar da popularidade do “carocha” da Volkswagen e da imensidão das suas tropas motorizadas. A rádio foi eficaz a ponto de ter obrigado os Estados Unidos a criarem, em 1938, o Institute for Propaganda Analysis e, depois, A Voz da América, como forma de descobrir o antídoto e dar resposta ao bombardeamento informativo germânico. O cinema, a par de filmes medíocres e de outros mais ou menos interessantes – entre 1933 e 1944, foram produzidos mais de mil, na sua maioria comédias, filmes de aventuras, melodramas, policiais e musicais – fez numerosas actualidades cinematográficas e deu a conhecer ao mundo o fenómeno Leni Riefenstahl.


De um modo geral, os homens mais próximos de Hitler eram fanáticos a quem, hoje, salvo raras excepções, não se reconhece estatura intelectual. Joseph Goebbels, o ministro da propaganda, era uma excepção. Albert Speer, outra. Ambos tinham noção da importância do cinema. Goebbels acreditava que os filmes, para serem eficazes, deviam combinar propaganda e um elevado grau de exigência artística. Advertia para as consequências de trabalhos formalmente descuidados e subscrevia pontos de vista semelhantes aos do cineasta soviético Dziga Vertov quando advogava, por exemplo, a necessidade do cinema cortar as amarras que pudessem ligá-lo a outras artes, como o teatro, de modo a afirmar-se como linguagem universal. Entendia, por outro lado, que


“manter uma qualidade artística e técnica ao mesmo tempo que se diverte e educa o público não implica cair num esteticista vazio nem encenar mundos fictícios que nos afastem da realidade. O cinema há-de ser uma arte popular na melhor acepção da palavra, e através dele representar as autênticas vivências do povo, as suas alegrias e as suas dores, tudo aquilo que o possa comover” (España, 2000).


Hitler e Goebells em Berghof

A Albert Speer estavam cometidas outras tarefas, em particular a de desenvolver o projecto urbanístico e arquitectónico de Berlim enquanto futura capital do Império de Mil Anos de Hitler. A sua passagem pelo cinema fica ligada às monumentais encenações de massas para os filmes de Riefenstahl, ainda que a cineasta tenha posteriormente reclamado o exclusivo da criação quer de O Triunfo da Vontade (1935) quer de Olimpíada (1939). Estes filmes, apesar dos intuitos proclamados pelo Ministro da Propaganda, são os únicos produzidos pelo III Reich que se impuseram ao tempo e continuam a ser sistematicamente citados e alvo da atenção do público cinéfilo. Para tanto, independentemente do mérito intrínseco que se lhes possa atribuir, muito contribuiu a mitologia que em torno deles foi sendo construída pela cineasta ao longo de uma vida centenária em permanente conflito com o mundo e consigo própria.


Leni Riefenstahl - Helene Bertha Amalie Riefenstahl (1902-2003) - vinha de uma família abastada da classe média, ao que parece com preocupações culturais. Mas, nas suas Memórias, sugere um ambiente familiar repressivo dominado por um pai opressor face a uma mãe submissa, situação que a teria levado à rebeldia e a desenvolver a energia e a força de vontade indispensáveis para vencer numa sociedade organizada segundo regras masculinas. Conheceu bem a Berlim dos anos 20, culturalmente fulgurante e economicamente na bancarrota, e tornou-se uma bailarina relativamente conhecida, mas não tão conhecida quanto quis fazer crer quando se comparava, por exemplo, a Isadora Duncan. Segundo ela, teve de abandonar o palco devido a um acidente quando dançava num teatro, em Praga. Terá sido a primeira das sucessivas adversidades que haveriam de marcar a sua vida e que, certamente, contribuíram para a criação do mito da feminista indómita – de resto, alimentado por ela própria – que a tudo resiste e tudo consegue ultrapassar. Esse mito ganhou espaço ao ponto de mulheres do mundo do cinema como Agnès Varda, Mai Zetterling e Shirley Clarke, insuspeitas de simpatia pelo nazismo, lhe darem crédito.


Leni Riefenstahl na montagem de Olympia. Fonte: The Telegraph

Em Leni Riefenstahl - The Seduction of Genius, Rainer Rother traça o retrato de uma mulher de beleza invulgar que associava o culto do corpo a uma vontade de ferro não só de vencer, mas também de sobreviver sempre que foi caso disso. Na verdade, se algo de fascinante existe nesta personagem é a forma como ela se foi reinventando, numa relação oblíqua daquilo que nela foi da esfera pública e da esfera privada. Numa idade já muito avançada, ela afirmou que a sua relação com o III Reich tinha sido como fazer um pacto com o diabo. Mas, quer na sua autobiografia, quer em obras que lhe são dedicados, como a supracitada de Rother, a ideia que fica é que ela jogou o jogo da sedução com o diabo.


Não lhe terá sido difícil atrair a atenção de Arnold Frank, um dos cineastas mais conhecidos da época, especialista nos chamados filmes de montanha. Amante do desporto, atlética, temerária, parecia predestinada a transformar-se na heroína natural desses filmes. Assim aconteceu, mas não sem antes ter disputado sem sucesso a Marlene Dietrich o papel principal em O Anjo Azul de Joseph von Sternberg junto de quem se insinuara. Com Franck e com o operador de câmara Hans Schneeberger aprendeu a fazer cinema e, em 1931, realizou o seu primeiro filme A Luz Azul (Das blaue Licht), para o qual contou com a colaboração do teórico do cinema comunista de origem húngara Bela Balázs, cujo nome viria posteriormente a ser apagado dos créditos. Das Blaue Licht é um melodrama sobre uma guardadora de rebanhos com estranhos poderes, Junta, interpretada pela própria realizadora, que se apaixona por um pintor de Viena de passagem pela montanha e tem de enfrentar o desprezo e a maledicência dos habitantes da sua aldeia. O filme estreou em 1932 e agradou particularmente a Hitler que, pouco depois, seria chanceler da Alemanha.


Das Blaue Licht (1932) de Leni Riefenstahl

Propaganda, a solução final


A República de Weimar deixara um legado de grandes filmes, quer no período do cinema mudo, designadamente, com a experiência do Expressionismo, quer após o advento do som. Mas esse legado, que passava, entre outros, por Caligari (1919) de Robert Wiene, A Princesa das Ostras (1919) de Ernst Lubitsch, Dr. Mabuse (1922) e Metrópolis (1927) de Fritz Lang, Nosferatu (1922), A Última Gargalhada (1924) e Fausto (1926) de F. W. Murnau, e A Ópera dos Três Vinténs (1931) de G. W. Pabstt, em breve daria lugar a outro tipo de produções.


Numa primeira fase, Goebbels defendeu que os filmes não deviam ser imediatamente reconhecidos como propaganda e, de acordo com a lei do cinema de 1934, que introduziu a censura, tinham de ser “política e artisticamente relevantes” (Barsam, 1992). Nesse mesmo ano, 14 mil pessoas estavam ligadas à indústria cinematográfica e, no ano seguinte, o estado investiu 40 milhões de marcos na produção teatral e cinematográfica, uma soma exorbitante para a época. Entretanto, numerosos intelectuais, nomeadamente, a maioria dos mais qualificados pensadores da Escola de Frankfurt, deixaram o país. Grande parte dos cineastas, técnicos e actores mais conhecidos seguiu o mesmo caminho. Entre outros, Fritz Lang Ernst Lubitsch, Joseph von Sternberg, G. W. Pabst (voltaria à Alemanha mais tarde alegando motivos familiares), Erich Pommer, Robert Siodomak e Peter Lorre.


Apesar da tentativa de criar uma imagem positiva do Reich no exterior, tal não aconteceu. Pelo contrário, a UFA, a principal produtora alemã – que durante anos colocara as suas fitas com facilidade no mercado europeu, oferecendo versões em várias línguas – viu as suas exportações reduzidas, chegando a um ponto crítico nos anos de 1936/37. A Alemanha respondeu ao boicote com intensa actividade diplomática limitando, simultaneamente, a importação de filmes estrangeiros, designadamente, americanos. Mas soube tirar partido da situação. Em The Collaboration - Hollywood’s Pact with Hitler, Ben Urwand apresenta provas de como os grandes estúdios acederam a branquear o nazismo em troca de quotas de exibição no mercado germânico. Ironicamente, os produtores americanos eram, na sua maioria, judeus.


Deutsche Wochenschau. Hitler, com a guerra a aproximar-se do fim, a saudar crianças soldados

Em 1938, Goebbels enveredou por uma espécie de solução final para o cinema. Criou a Academia do Filme destinada a preparar novos realizadores e técnicos e acelerou o processo de concentração que atingiu o seu ponto mais alto nos anos de 1940/41. Com a guerra chegara o momento de pôr em prática a fórmula de Hitler que preferia a “mentira directa” (Barsam, 1992) à propaganda dissimulada. Para alargar internamente a base de apoio do nacional-socialismo e aterrorizar os espectadores estrangeiros com a exibição de imagens do poderio militar alemão, os nazis radicalizaram a sua mais importante arma política, as actualidades cinematográficas (Deutsche Wochenschau), cuja passagem antes dos filmes de fundo era obrigatória em todas as salas, sendo interdita a entrada aos retardatários.


Quando comparadas com os blocos de newsreels dos americanos e ingleses as diferenças são evidentes “pela sua muito maior extensão (cerca de 40 minutos), por uma montagem sofisticada, pela utilização de música por forma a obter efeitos emocionais e pela preferência dada às imagens visuais em detrimento do comentário falado” (Welch, 1987). Por outro lado, dispunham de uma estrutura narrativa dramatizada, de modo a que todos os acontecimentos surgissem como sendo parte de uma mesma história na qual convergiam a Camaradagem, o Heroísmo, o Partido, o Sangue e a Terra, o Exército e a Guerra e, acima de tudo e de todos, o Führer.


Vistos hoje, estes filmes de actualidades são uma espécie de museu do terror justamente porque se fica com a ideia que foi possível conviver naturalmente com o mal. Nunca se apurou até que ponto Riefenstahl participou neles. Mas não restam dúvidas de duas coisas. A primeira, ela acompanhou as equipas de cinema que fizeram a cobertura da invasão da Polónia em 1939. A segunda, foi-lhe reiteradamente pedida opinião ao mais alto nível sobre essa matéria. De resto, ao contrário do que pôs a correr, não fez apenas dois filmes por encomenda do partido. Fez cinco. Todos inequivocamente nazis. E um deles, realizado em 1933, Dia da Liberdade: O Nosso Exército (Tag der Freiheit: Unsere Wehrmacht) era já como que uma antecipação da glória da Guerra.


Nuit et Brouillard (1955) de Alan Resnais

Nuit et Brouillard (1955) de Alan Resnais, um dos mais famosos documentários sobre os campos de concentração, com texto do romancista e poeta Jean Cayrol, ele próprio um sobrevivente do extermínio, termina com imagens do julgamento de Nuremberga, durante o qual diversos acusados rejeitam qualquer responsabilidade alegando nada saber ou que se tinham limitado a cumprir ordens. Resnais fecha o filme com uma pergunta: “Se ninguém é responsável, quem é responsável?” Quando a guerra terminou, também Leni Riefenstahl foi levada a julgamento. Manifestou-se surpresa com a acusação – era conhecida como a cineasta de Hitler, mas nem disso sabia – e disse não fazer ideia da existência de campos de concentração, apesar de os figurantes do seu último filme Tiefland – rodado entre 1940 e 1944 – serem ciganos romenos seleccionados de entre os prisioneiros de um deles. Muitos anos mais tarde diria ao cineasta Ray Müller, autor do documentário The Wonderful Horrible Life of Leni Riefenstahl (2000), que lamentava o envolvimento com o III Reich, mas reiterou que sempre fora movida exclusivamente pela beleza e pelo amor à arte.


O fascínio de Hitler por Leni Riefenstahl remonta a 1932. O interesse de Leni Riefenstahl por Hitler, também. Na suas Memórias, ela relata o efeito hipnótico do futuro ditador sobre as massas e sobre ela própria quando, “por curiosidade” (Riefenstahl, 2000), o foi ver pela primeira vez num comício no Palácio dos Desportos, em Berlim. Diz ter ficado espantada quando lhe respondeu a uma carta na qual dizia que gostaria de o conhecer, tendo ele agendado um encontro para Wilhelmshaven onde, num passeio à beira mar, lhe terá manifestado profunda admiração pelo seu desempenho como Junta, a protagonista de Das Blaue Licht, para, de seguida, a abraçar – “olhava-me excitado” (Riefenstahl, 2000) –, deixando-a “perplexa” (ibidem). Várias passagens das Memórias são igualmente dedicadas aos avanços de Goebbels que, tal como no caso de Hitler, segundo ela, foram sempre rejeitados. “Deve ter percebido que eu não simpatizava com ele e isso ainda o excitava mais” (Riefenstahl, 2000). Sobre um dos seus primeiros amantes, Hans Schneeberger, escreveu: “… era sete anos mais velho do que eu, mas deixava-se levar de bom grado: ele era o elemento passivo, eu o activo” (Riefenstahl, 2000). Curiosas declarações. Ao longo das 600 páginas da sua autobiografia faz passar a ideia que teve de lidar com um universo masculino corruptor em nome de um ideal estético alheio à fealdade do mundo.


A intimidade e a esfera privada não teriam qualquer relevância não fosse dar-se o caso de haver uma relação estreita com a esfera pública na génese e afirmação de uma obra cinematográfica cuja matriz não diverge substancialmente dos princípios da “grande arte de expressão alemã” que se afirmou por oposição àquilo a que Hitler chamou “arte degenerada”. Para os nazis “arte degenerada” era basicamente a arte moderna, sobretudo as obras vanguardistas da pintura e da escultura de carácter abstracto, surrealista ou expressionista. Kandinsky, Chagall, Picasso, Max Ernst e Paul Klee, por exemplo, foram banidos. Quando, em 1937, Goebbels organizou, em Munique, uma exposição “degenerada” tinha em mente fazer a demonstração da perfídia dos seus autores – judeus bolcheviques, segundo ele –, cujas mentes doentias davam corpo a representações do homem e da natureza que envenenavam a sociedade. A “grande arte de expressão alemã”, pelo contrário, correspondia à idealização da raça pura, legitimada pela herança da Idade Clássica, como fim supremo do nacional-socialismo. Riefenstahl disse nunca ter estado de acordo com esta política. Mas no ano seguinte à exposição de Munique fez Olimpíada.

Os filmes malditos: Riefenstahl ao espelho


“Em 1934, a noção que se tinha das coisas nada tinha a ver com o julgamento entretanto feito pela História” – afirma Riefenstahl no documentário de Ray Müller já mencionada. Nessa altura, diz e ela, “90 por cento do povo alemão era a favor de Hitler”. Convidada a realizar um filme sobre o partido, em 1933, teria desejado rejeitar a proposta, sugerindo até Walter Ruttman como sendo a pessoa mais indicada para levar a cabo a empreitada. Ruttman, que trocara as convicções comunistas pelo nazismo, era um dos poucos realizadores de talento que tinham ficado na Alemanha. Mas, a insistência de Hitler acabou por demovê-la visto que, segundo escreveu, seria um obra diferente e não a propaganda habitual das actualidades cinematográficas. Surgiu assim A Vitória da Fé (Der Sieg des Glaubens) sobre o V Congresso do NSDAP, que decorreu em Nuremberga de 30 de Agosto a 3 de Setembro de 1933. Apesar de ter sido visto por 22 milhões de pessoas, o filme foi subitamente retirado da circulação e esteve dado como perdido durante 70 anos. A cineasta alegou falta de qualidade. Pelo menos foi essa a justificação dada para fazer no ano seguinte O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens) sobre o VI Congresso do Partido.


A Vitória da Fé (1933) de Leni Riefenstahl

Muito mais do que a obra de uma cineasta de génio, O Triunfo da Vontade é uma litania do fascismo, a deificação do Fürher através de um meticuloso dispositivo cinematográfico que subconscientemente propõe o Fürher como objecto de desejo. Hitler tinha a noção do carácter hipnótico da imagem e acreditava na necessidade de estetizar a política. Teve lições de representação por forma a melhorar o desempenho público e sabia que num lapso de tempo muito curto, quase instantâneo, a imagem pode proporcionar uma visão do ser humano que a palavra escrita apenas consegue fazer passar através de um período longo de leitura. Não acreditava nem na racionalidade nem na lógica. Preferia estimular emoções e afectos em torno de símbolos poderosos. Por exemplo, a suástica, segundo Wilhelm Reich, era originariamente um símbolo sexual representativo da cópula e só mais tarde viria a ser associada à roda do moleiro, um ícone do trabalho (in Grant e Sloniowski, 1998). Na sua análise da psicologia de massas do fascismo, o mesmo autor constata, por outro lado, a necessidade do líder encarnar a mitologia da nação, pois, só assim, poderia personificá-la e, desse modo, obter a adesão necessária à crença.


Rodado na ressaca da célebre “noite das facas longas”, em Junho de 1934, quando Hitler mandou assassinar Ernst Röhm, o chefe das SA, O Triunfo da Vontade reflecte o intuito de apaziguar forças em litígio no interior do nacional-socialismo. Isso é claro em diversas passagens, em particular, no discurso feito perante os camisas castanhas das SA alinhados em parada. Do ponto de vista criativo e simbólico, A Vitória da Fé não é assim tão diferente de O Triunfo da Vontade. Bem pelo contrário. Então, porque foi retirado de circulação? Pela simples razão de que Röhm, entretanto assassinado, aparecia praticamente em pé de igualdade com Hitler e a História do III Reich já não passava por ele. Poderia Riefenstahl ignorar os acontecimentos? Ela que contou com tudo quanto quis para a realização de O Triunfo da Vontade? Que dispôs de condições logísticas semelhantes às das grandes produções de Hollywood?


A análise de conteúdo dos filmes de Leni Riefenstahl – conteúdo manifesto e conteúdo latente – permite revelar não só o mecanismo das representações do nacional-socialismo, mas também a razão pela qual ética e estética se confundem, podendo inclusive suscitar o problema da deslocação da intimidade da autora para a fantasmagoria da tela. A cada passo, adivinha-se a intensidade do relâmpago que a iluminava na presença de Hitler. Em O Triunfo da Vontade ela encena um grande espectáculo ritual, convocando uma imagética carregada de símbolos religiosos associados a outros do campo da sexualidade. À crença juntam-se os interditos e o desejo reprimido numa combinação de signos pensada para subjugar o público, alimentando o seu fascínio e as suas fantasias.


Hitler e Leni Riefenstahl. Fonte: The Times of Israel

As alusões ao Novo Testamento e ao Livro das Revelações são recorrentes. O filme começa com imagens de um avião rompendo as nuvens e sobrevoando Nuremberga, a cidade de passado mitológico desde o alvorecer da Idade Média que conheceu a glória do Renascimento e que, em 1934, era o símbolo da nova alvorada do “espírito alemão”. Nas legendas iniciais lê-se “dezasseis anos após a crucificação da Alemanha” e “dezanove meses após a ressurreição”. A primeira é uma forma de aludir às sanções impostas pelo Tratado de Versalhes após a derrota na I Guerra Mundial. A segunda, uma referência à chegada dos nazis ao poder. Hitler é o enviado do céu para resgatar o seu povo. Esse povo, porém, é dado a ver de duas maneiras. Numa é uma massa difusa, o que acontece quando Riefenstahl coloca Hitler em plano próximo no centro do ecrã de modo a desfocar o fundo. Na outra, são grandes planos de rostos extasiados, sobretudo de mulheres e crianças, filmados em picado e olhando para cima, para o lugar onde se encontra o Fürher. Tão próximo e, contudo, inacessível na sua grandeza. Que melhores imagens de um povo à procura da identidade face à figura totémica que aponta o caminho da terra prometida?


O indivíduo é apenas a peça de uma máquina e o instrumento de um desígnio inquestionável. Tudo o mais são símbolos. Pulsão e desejo reprimido. Desejo de se rever no chefe e de ouvir a sua palavra redentora. Pulsão do destino colectivo numa atmosfera adensada pela música de ressonância wagneriana de Herbert Windt. O comício final é concebido como um acto litúrgico. Hitler aparece à multidão de fiéis rodeado dos seus apóstolos. Rudolph Hess proclama que o Partido é Hitler, tal como Hitler é a Alemanha e a Alemanha é Hitler. O silogismo é trôpego. Mas a multidão explode. Hitler vai falar. Faz-se um silêncio profundo. Hitler olha longamente o seu povo. Finalmente, fala. É o clímax colectivo dos crentes. Em Fascinating Fascism, Susan Sontag escreveu:


“Em contraste com a castidade assexuada da arte oficial comunista, a arte nazi é ao mesmo tempo pruriente – no sentido de despertar um desejo sexual descontrolado (nota do autor) – e idealizada. Uma utopia estética (a identidade enquanto dado biológico) implica um ideal erótico (a sexualidade convertida no magnetismo dos líderes e no júbilo dos fiéis). O ideal fascista é transformar a energia sexual em força “espiritual” para bem da comunidade. Mas, sendo tentação, a carga erótica é tanto mais sublime quanto mais heroicamente for reprimida (Sontag, 1975)”.


Joachim Fest, um ex-oficial da Werhmacht, especialista na História do III Reich e autor do livro no qual se inspirou o filme de Oliver Hirschbiegel A Queda (2004) sobre os últimos dias de Hitler no seu bunker, em Berlim, lembra que os seus comícios eram peculiarmente obscenos (Bach, 2007). Riefenstahl operou a metamorfose dessa obscenidade na coreografia operática de uma cerimónia litúrgica. A irmã de Nietzsche, recorda Fest, via em Hitlter mais um evangelista do que um líder político. Para Goebbels, Leni Riefenstahl era “a única grande estrela que nos compreende (Rother, 2002). Na realidade, o que hoje se questiona é se o poder hipnótico do Fürher sobre as pessoas não será, em boa medida, o resultado da imagem estetizada que a sua cineasta dele criou em O Triunfo da Vontade. Ao contrário do que sempre afirmou, ela encenou tudo. A maioria dos discursos foi ensaiada e repetida. Em nome da arte?


Multidão em êxtase saúda Hitler à chegada a Karlsbad em 1938. Fonte: AEOM

Olimpíada, o filme seguinte sobre os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, é igualmente um objecto predominantemente sensorial. Beneficiando da experiência adquirida, a cineasta explora e refina procedimentos anteriores na composição da imagem, na imprevisibilidade dos ângulos de vista, na exploração do limite das possibilidades criativas em função dos meios técnicos existentes e, sobretudo, no modo de olhar o corpo humano. Não transporta consigo a marca da infâmia que continua a perseguir O Triunfo da Vontade. Neste último, a retórica da propaganda nazi é explícita e sempre presente. Olimpíada, por seu turno, afirmar-se-ia mais como cinema em busca da dimensão poética. Será assim?


A génese do filme está ligada a relatos contraditórios e Riefenstahl contribuiu para que assim fosse. Disse, primeiro, que o filme correspondia a um pedido pessoal de Hitler e, mais tarde, que o convite teria partido de Carl Diem, o chairman do Comité Olímpico alemão. Em rigor, uma coisa não invalida a outra. Certo é que logo após a chegada ao poder, em 1933, Hitler, com o intuito de passar para o mundo uma imagem positiva da nova Alemanha, empenhou-se pessoalmente para que os Jogos fossem um êxito. Desagradado com o projecto previsto para o estádio, já em construção, mandou chamar Albert Speer. Do dia para a noite Speer procedeu a alterações, ampliando-o substancialmente – a lotação subiu para 100 mil espectadores – e introduziu elementos que permitiam reforçar a identificação do edifício com os padrões neoclássicos. Seria a primeira grande obra de arquitectura paradigmática do nazismo. Também foi construído um imenso complexo desportivo para as diferentes competições, designadamente uma piscina para as provas de natação com 18 mil lugares e uma aldeia olímpica até então sem paralelo. Enfim, ninguém teria dúvidas sobre a importância atribuída pelo III Reich a este evento, o qual, em diversas ocasiões, criou um clima de tensão entre as autoridades alemãs e o Comité Olímpico Internacional (Downing, 1992).


Leni Riefenstahl a filmar Olympia. Fonte: The Times of Israel

Riefenstahl, já com o estatuto de estrela maior do cinema do III Reich, não podia ignorar este enquadramento. De resto, só uma confiança incondicional lhe poderia ter permitido total controle sobre o projecto. Apesar das alegadas interferências de Goebbels – descrito como um homem baixinho de rosto enxuto e olhos penetrantes ((Riefenstahl, 2000), louco por possuí-la a ponto de lhe dizer “por si faço qualquer sacrifício que possa imaginar” ((Riefenstahl, 2000) – ela contou com meios nunca antes disponíveis. Que Olimpíada é um feito cinematográfico está fora de questão: colocação de rails para os travellings, utilização do zeppelin Hindenburg e de um avião da Força Aérea para filmar sobre o estádio, câmaras miniaturizadas, operadores de câmara ao ombro – o que então raramente se via – gigantescas teleobjectivas de 600mm, câmaras operadas automaticamente, imagens subaquáticas para as provas de mergulho e natação, tudo ao serviço de uma ideia pensada ao pormenor. Até as equipas de newsreels ficaram sob as suas ordens, de modo a não colocarem entraves às soluções técnicas por ela engendradas.


Entre os seus colaboradores contava-se Willy Zielke. Influenciado pelos construtivistas e por artistas do movimento Bauhaus como Lazslo Moholy-Nagy e Albert Renger-Patzsch. Zielke fez Das Stahltier (1935) – The Steel Beast, em inglês – um documentário comemorativo do centenário dos caminhos de ferro. Segundo Barsam, “este terá sido, talvez, o maior tributo alguma vez prestado pelo cinema ao mundo das máquinas” (Barsam, 1992), no qual o comboio se transforma numa criatura viva, apocalíptica e redentora, transportando consigo a morte, a mudança e o progresso (ibidem). Mas o filme desagradou profundamente a Goebbels e foi banido por alegadamente causar graves danos à reputação germânica. Só viria a ser exibido 20 anos mais tarde. Zielke foi internado num asilo psiquiátrico. Ao recuperá-lo, a cineasta estaria certamente a pensar no genial fotógrafo e operador de câmara que ele era e nas suas extraordinárias fotografias de nus, as quais, por sinal, não se coadunavam com aquilo que era, por exemplo, a estética nazi de escultores do regime como Arno Breker e Joseph Thorak. As imagens originais do prólogo de Olimpíada são, portanto, de Zielke, mas a sua nazificação é obra de Riefenstahl.


Ollympia (1939) de Leni Riefenstahl

Olimpíada, em rigor, são dois filmes: O Festival do Povo (Fest der Völker) e O Festival da Beleza (Fest der Schönheit). A primeira parte abre com o prólogo de 20 minutos filmado por Zielke cuja mensagem tem conteúdo simbólico idêntico ao da abertura de O Triunfo da Vontade. A viagem da chama olímpica a partir da Grécia até Berlim foi introduzida por Carl Diem, o alemão do Comité Olímpico, e servia na perfeição os propósitos de propaganda do III Reich. Nunca antes se verificara nos jogos modernos. Mussolini e os fascistas italianos já se tinham apoderado do passado e recuperado o fascio (feixe) – símbolo de poder dos magistrados do antigo império romano – para legitimar a nova Roma Imperial. Os nazis quiseram recuperar a essência do mundo clássico. O Prólogo, fundamental para a estrutura dramática da narrativa, evoca, numa atmosfera wagneriana, o percurso mítico que, segundo o imaginário nazi, tem origem no universo primitivo, ganha novas raízes no classicismo e emerge pujante na Alemanha nacional-socialista. A chama olímpica é transportada até Berlim por atletas esculturais cuja nudez sem vestígio de esforço exalta o culto do corpo. Esse culto é explícito no encadeamento de imagens da estatuária da Grécia antiga com as imagens de pessoas reais cuja estampa física sugere uma origem divina. No final do percurso surge um mapa da Alemanha e sobre ele é sobreposta uma gigantesca suástica. A leitura é óbvia: a tocha da civilização do mundo clássico tem no nacional-socialismo o seu destino natural. Quando o último atleta entra com a chama no Estádio Olímpico de Berlim, apinhado de um público entusiasta, lá está Hitler, na tribuna. É ele o eleito a quem cabe dar corpo à mitologia e cumprir o desígnio superior de redimir o povo e a raça: close up.


Ollympia (1939) de Leni Riefenstahl

À semelhança do que acontecera em O Triunfo da Vontade, o filme foi encenado. Por exemplo, nas competições de canoagem muitas imagens foram feitas durante os treinos, visto que em prova os operadores de câmara não poderiam acompanhar os remadores. O som foi quase todo feito em estúdio e as vozes que se ouvem nos relatos das competições são de alguns dos mais conhecidos locutores da rádio alemã. A linguagem é racista e bélica. O comentador da maratona: “As forças finlandesas estão a combater para atingir a frente. Três corredores, um País, uma vontade” (Rother, 2002). O comentador da prova de natação dos 200 metros crawl: “Os nadadores mais rápidos da Europa e da América lutam contra a frente japonesa” (Rother, 2002). O comentador da prova de atletismo dos 800 metros: “Dois corredores negros lado a lado com os representantes mais fortes da raça branca (ibidem)”. Na montagem, que levou dois anos a concluir, há verdadeiros achados como acontece com os saltos para a água onde a cineasta introduziu subtis inversões do movimento dos atletas de modo a fazê-los pairar como pássaros e a suavizar o contacto com a água. Belíssimo, sem dúvida. Revelador de um talento genial. Mas, em todo o caso, Rifenstahl a olhar-se ao espelho, porventura revelando na tela o mais íntimo e secreto de si mesma.


É improvável que alguma vez a intimidade com Hitler a tenha levado a ser sua amante ainda que, já octogenária, tenha admitido que se ele lhe tivesses pedido, certamente não deixaria de lhe fazer a vontade. De resto, os seus amantes, regra geral, obedeciam a padrões físicos facilmente identificados com ela própria enquanto Junta em Das Blaue Licht e nada tinham a ver com a figura do Fürher. Eram belos, atléticos, esculturais. Fisicamente predestinados. Anatol Dobrianky, por exemplo, um dos estafetas do Prólogo de Olímpiada, recrutado em Delfos durante o casting de corpos perfeitos, exerceu sobre ela uma tal atracção que se dispôs a pagar aos pais do rapaz 200 marcos para o levar consigo para Berlim. Foi o que fez. Pô-lo numa escola de actores onde não vingou. Anatoly acabou por aderir ao nazismo e, ao que se julga, desapareceu na fogueira da guerra. Durante os jogos, em Berlim, os seus colaboradores divertiam-se a vê-la lidar com os atletas. De forma vulgar e deselegante chamavam-lhe “a fenda glacial”. Ela sofreu com isso. Mas não se inibiu de confessar que se tinha sentido trespassada na troca de olhares com o vencedor do decatlo, o americano Glenn Morris, durante a cerimónia de entrega das medalhas: “desceu os degraus do pódio, tomou-me nos braços, rasgou-me a blusa e beijou-me os seios mesmo no meio do estádio, diante de cem mil espectadores” (Bach, 2002).


Leni Riefenstahl e Anatol Dobrianky em Delfos durante a rodagem de Olympia

A banalidade do mal e o vício dele: conclusão


Em Fascinating Fascism, Susan Sontag recupera uma entrevista da cineasta aos Cahiers du Cinéma na qual é colocada perante a questão de saber se a atenção dada à forma, quer em O Triunfo da Vontade quer em Olimpíada, tem a ver com algo de especificamente alemão. Ela responde:


“Apenas posso dizer que sou espontaneamente atraída por tudo quanto é belo. Sim: beleza, harmonia. Talvez esse cuidado com a composição, este tributo à forma seja muito alemão. Mas eu própria não estou muito segura disso. Há qualquer coisa que me é sugerida pelo inconsciente, não vem da razão... Que mais posso dizer? Tudo quanto seja estritamente realista, mediano, quotidiano, não me interessa... Sou fascinada por aquilo que é belo, forte, saudável, pelo que está vivo. Procuro a harmonia. Quando ela se concretiza, fico feliz (Sontag, 1975)”.


Mas a beleza e harmonia que Riefenstahl reclama para os seus filmes é algo cuja origem se encontra na génese do ideário fascista: a identificação com o primitivo e a busca de uma pureza inicial limpa de qualquer vestígio de imperfeição. Daí à legitimação da hegemonia dos fortes sobre os fracos, dos vencedores sobre os vencidos, dos puros sobre os impuros, é um pequeno passo. Se vencer é o destino dos eleitos, justifica-se o extermínio dos perdedores. Glorificar a guerra e os seus símbolos valida a excepcionalidade do ser superio “belo, forte e saudável”. Exaltar a submissão ao líder resulta de ser dele o exclusivo da palavra. Quando viu e ouviu Hitler discursar pela primeira vez, no comício do Palácio dos Desportos de Berlim, em 1932, Leni Riefenstahl afirmou:


“Eu fiquei com uma visão apocalíptica que nunca fui capaz de esquecer. Parecia que a face da terra estava a expandir-se à minha frente (...) como um hemisfério que subitamente se divide a meio, vomitando um enorme jacto de água tão poderoso que toca o céu e abala a terra. Senti-me completamente paralisada (Bach, 2007,p. 137)”.


O Porteiro da Noite (1974) de Liliana Cavani

Paralisada, sim, a ponto de identificar no Fürher uma visão estética do mundo insusceptível de ser abalada pela ordem negra do quotidiano, como se os episódios do dia a dia não merecessem consideração face à monumentalidade da tarefa movida pela utopia do belo. Visceralmente nazi, também ela se revia no culto da submissão ao líder. Nas suas mãos o cinema foi mais um instrumento ao serviço dos rituais litúrgicos indispensáveis à construção de uma realidade virtual coreografada por forma a sugerir a espessura de um real tangível. Místico e forte. Erotizado. Provavelmente, o espelho da sua relação consigo mesma e com os homens. Certamente, o espelho da sua relação pessoal com Hitler. O fascínio. O relâmpago. Nas suas Memórias é evidente que situações e desabafos de terceiros não são mais do que projecções de si mesma. No Moloch de Sokurov, o diálogo entre Magda Goebbels e Eva Braun é, realmente, inspirado nessa obra que quis deixar para memória futura. Durante uma visita à casa do Ministro da Propaganda, em Berlim, Magda fala-lhe da sua vida íntima. A única razão que a teria levado a casar com Goebbels, escreve Riefenstahl, tinha sido a possibilidade de ver Hitler assiduamente. Não suportava estar longe dele. Sentia-se hipnotizada. Incapaz de resistir.


Tal como a personagem feminina (Charlotte Rampling) de O Porteiro da Noite de Liliana Cavani, uma ex-prisioneira dos campos de concentração feita escrava sexual de um oficial das SS que reencontra, em Viena de Áustria, dez anos mais tarde, e a quem volta a procurar para se prestar aos mesmos rituais de submissão e humilhação e, desse modo, reencontrar uma morte anterior, alegórica, da qual não podia ser resgatada. Na verdade, a volúpia da morte. Essa mesma volúpia ambígua, poderosa e destruidora suspensa dos uniformes negros das forças SS em parada em O Triunfo da Vontade. O glamour da dominação. Fetiches. Espelhos: Eva Braun a exibir o corpo nu em Berghof, no filme de Sokurov, não é senão a evocação da memória da personagem de Junta em Das Blaue Licht, a heroína da montanha preferida de Hitler. E em Os Malditos de Visconti, Frederich Bruckman (Dirk Bogarde), do clã dos von Essenbeck, família que controla a siderurgia na Alemanha – ferro e aço, aquilo de que os guerreiros do século XX precisam para os seus jogos mortais –, reaparece na pele do ex-oficial das SS de O Porteiro da Noite. Também ele não pode deixar de sucumbir ao deleite de submeter e matar.


Os Malditos (1969) de Luchino Visconti

Durante o período nazi, diria Visconti – como sempre fascinado pelo potencial dramático da decadência da vida familiar – ocorreram massacres e assassínios que ficaram impunes. O mal tomou conta da Alemanha. No seu filme, cujo início se situa na fase final da República de Weimar, explora as relações dos von Essenbeck – na vida real a família Krupp – com o poder nazi emergente. Bruckman, o director das fábricas, é um homem ambicioso que destrói os outros sentindo piedade de si mesmo. Em nome do interesse do seu império industrial, a família convive com todo o tipo de taras dentro de casa e fora dela: o incêndio do Reischstag, a “noite das facas longas”. Nada é impossível neste país, diz a baronesa Sofia (Ingrid Thulin), amante de Bruckman e mãe de Martin von Essenbeck (Helmut Berger), com quem tem uma relação incestuosa. Martin, que imita Marlene Dietrich em Lili Marleen (1932) de Josef von Sternberg, adere às tropas SS e mata a mãe e o amante depois de os sujeitar a uma humilhante cerimónia de casamento. Tal como o médico do Fausto de Sokurov, também os von Essenbeck venderam alma ao diabo. No nazismo, diz Visconti, tudo é trágico. Operático.


Nos filmes malditos de Leni Riefenstahl, apesar de ela ter privado com a tragédia, nada é trágico, tudo é operático. O mal, tal como o cinema tantas vezes o deu a ver e do qual ela diz nunca ter tido conhecimento, está ausente das suas imagens. A sua dramaturgia faz-se de representações grandiosas, em tensão, no contexto de relações hierarquizadas e de valores pré-estabelecidos. No topo da pirâmide humana, omnipresente, omnisciente, está o líder. Os figurantes, porém, são já a criação idealizada pelo criador. Seres admiráveis. Na maneira como correm, saltam, mergulham, desfilam, prestam vassalagem. A tela é o lugar de revelação dessa identificação mágica do criador com as suas criaturas. É, justamente, por isso, que as imagens de Leni Riefenstahl são as imagens mais aterradoras alguma vez produzidas sobre o nazismo. E o embuste consiste em esconder natureza do nazismo sob a máscara de um ideal: a vida enquanto arte.


O Triunfo da Vontade (1935) de Leni Riefenstahl


BIBLIOGRAFIA


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Barsam, Richard M. – Non-Fiction Film, a Critical History, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1992.

Downing, Taylor – Olympia, British Film Institute, London, 1992.

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Grant, Barry Keith and Sloniowski, Jeannette, ed. – Documenting the Documentary - Close Readings of Documentary Film and Video, Wayne State University Press, Detroit, 1998.

Riefenstahl, Leni – Memorias, Evergreen, Taschen, Espanha, 2000.

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Rother, Rainer – Leni Riefenstahl - The Seduction of Genius, Continuum, London-New York,2002.

Sontag, Susan – Fascinating Fascism, The New York Review of Books, New York, 1975.

Urwand, Ben – The Collaboration - Hollywood’s Pact with Hitler,

Welch, David – Propaganda and the German Cinema 1933-1945, Oxford University Press, New York 1987.

Winston, Brian – Claiming the Real (the documentary film revisited), British Film Institute (BFI Publishing), Londres, 1995.


FILMOGRAFIA


A Linha Geral (1929) de Sergei Eisenstein

A Queda (2004) de Oliver Hirschbiegel

A Vida Maravilhosa e Horrível de Leni Riefensthal (2000) de Ray Müller

Fausto (2011) de Alexander Sokurov

Lili Marleen (1932) de Josef von Sternberg

Moloch (1999) de Alexander Sokurov

Noite e Nevoeiro (1957) de Alain Resnais

Olimpíada (1938) de Leni Riefenstahl

O Porteiro da Noite (1974) de Liliana Cavani

O Triunfo da Fé (1933) de Leni Riefenstahl

O Triunfo da Vontade (1934) de Leni Riefenstahl

O Sol (2005) de Alexander Sokurov

Os Malditos (1969) de Luchino Visconti

Os Nibelungos (1924) de Fritz Lang

Taurus (2001) de Alexander Sokurov


Publicado em









Atualizado: 22 de out. de 2023


Fonte: Criterion.com

Há hoje tendência para não fazer distinção entre o cinema documental e o chamado cinema ficcional. É tudo cinema, diz-se. De acordo. Mas, dito assim, sem mais, pode ser enganador. Há um mapa de décadas de história e teoria, cuja presença, queira-se ou não, tanto perdura naquilo que se faz quanto resiste a simplificações apressadas. O que se segue é uma breve declinação em torno do contexto no qual surgiu o debate sobre o filme documentário protagonizado, entre outros, por John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico. Sendo o ponto de partida o campo dos media, não o cinema, a ideia pode parecer deslocada. Não é. Há um território comum, contaminações, fronteiras imprecisas que vale a pena explorar. Ainda hoje. Este texto reporta a um tempo em que, também no cinema documental, a palavra ameaçou tomar o lugar da imagem. Parte dele está na minha tese de doutoramento. A restante, num caderno de apontamentos acompanhado da bibliografia que aparece no final. De modo que acaba por ser uma espécie de colagem sobre quando o som chegou ao cinema de newsreels e o jornalismo se cruzou com o documentário. Na rádio e no cinema.


The Jazz Singer, o som chegou ao cinema. Fonte: A Damn Fine Cup of Culture.

Da arte à ciência, da política ao desporto, em todos os domínios os anos 20 do século passado foram anos de euforia. Nas atualidades cinematográficas, porém, essa euforia foi, muitas vezes, sinónimo de frivolidade. Os compromissos com as salas obrigavam os produtores de newsreels a prepararem semanalmente blocos de dez minutos, nos quais, devido a uma concorrência sem regras, cabia tudo. Sem alinhamentos coerentes, multiplicavam-se aleatoriamente acontecimentos improváveis, extravagâncias de celebridades, proezas de todo o tipo. Por vezes, os produtores nem sequer se coibiam de arranjar pretextos para provocar notícias. Durante algum tempo o grande público não atribuiu qualquer importância a estes procedimentos.


No final da década, porém, começaram a surgir protestos, cuja razão de ser era não tanto a exigência de rigor, mas motivações de natureza política. A Grande Depressão trouxera a instabilidade. A instabilidade abrira campo aos fascismos. A rádio atingira a maioridade e a introdução do som no cinema abria novos horizontes. Estavam maduros os tempos para outro tipo de jornais de imagens em movimento. March of Time combinou a rádio com o cinema documental. Os anos 30 seriam os anos de ouro das atualidades cinematográficas.


Mas foram também os anos da rádio. As suas vozes e o seu estilo tornaram-se omnipresentes invadindo quer newsreels quer o filme documentário. A força da palavra tornou-se determinante.


Anos da Rádio


A rádio transforma-se num medium de massas no início dos anos 20. É certo que os noticiários radiofónicos têm dificuldade em impor-se. No Reino Unido, por exemplo, os patrões dos grandes títulos da imprensa movem-lhes uma luta sem quartel, por duas razões principais. Por um lado, pensam que o jornalismo tem nos jornais o seu habitat natural; por outro, a concorrência das estações radiofónicas põe em risco o ingresso de publicidade, fonte de financiamento indispensável à imprensa. Acresce que as estações, na maioria dos casos, pertencem a fabricantes de equipamentos desejosos de os vender e, também por isso, sentindo a necessidade premente de produzir conteúdos, designadamente, notícias.


Radio nos anos 30 na América. Fonte: www.teachrock.org

As primeiras soluções encontradas no sentido de compatibilizar interesses impõem horários tardios à difusão de informação radiofónica, ao fim da tarde ou à noite, de modo a eliminar a concorrência com os matutinos e vespertinos da imprensa. É o que acontece em Inglaterra. Mas vai-se mais longe. Muitos blocos noticiosos são obrigatoriamente fornecidos quer pela imprensa quer por agências, seguindo o exemplo de parcerias anteriores entre os proprietários de jornais e os produtores de actualidades cinematográficas.


O caso da BBC é paradigmático. Quando começou as emissões em 1922, sob a liderança de John Reith, foi obrigada a não dar notícias antes das 19.00 horas, as quais, por sua vez, se limitavam a resumos com origem nas agências noticiosas. A greve geral de 1926, afetando a saída dos jornais, trouxe a informação radiofónica para a ribalta. A BBC emitiu então cinco blocos informativos diários com início às dez da manhã. Mas, uma vez terminada a greve, voltou-se ao ponto de partida. No ano seguinte, as notícias foram antecipadas para as 18.30. Apesar da turbulência política e social que caracterizou a época no plano internacional, raramente foi concedido à rádio maior protagonismo. O departamento de notícias da BBC só foi autonomizado em 1934 e as restrições só foram totalmente levantadas em 1939, no início da II Guerra Mundial. A partir de então, devido ao rigor e contenção dos seus blocos informativos, a BBC começou a construir uma imagem de credibilidade em contraste, por exemplo, com os noticiários alemão e italiano, ambos fortemente dramatizados ao serviço de uma propaganda agressiva, muitas vezes baseada na mentira.


John Reith, o primeiro diretor geral da BBC. Fonte: BBC

Diferente foi a situação nos Estados Unidos. Muitas estações pertenciam a magnatas da imprensa. Mesmo assim, a partir de 1930, a difusão de notícias radiofónicas atingiu tais proporções que as receitas publicitárias dos jornais caíram a pique. Chegou a ser encarada a hipótese de impor restrições semelhantes às vigentes do outro lado do Atlântico. A expansão já alcançada pela rádio, porém, condenou a tentativa ao fracasso. Nos Estados Unidos operavam mais de 700 estações, nas quais prevalecia a lógica do entertainment, aliás, extensiva à informação.


Com efeito, numa fase inicial, tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha nem sempre informação na rádio foi sinónimo de notícias. Primeiro porque, à semelhança das atualidades cinematográficas, nunca deixou de puxar pelos faits divers para captar o interesse de um público heterogéneo, maioritariamente pouco instruído. Segundo, porque, durante algum tempos, privilegiou aquilo a que o mundo anglo-saxónico designou por talks, traduzido à letra, conversas. Por vezes, essas conversas eram, na verdade, monólogos de personalidades conhecidas dirigindo-se diretamente aos ouvintes, ora em termos mais coloquiais, ora adoptando um tom mais didático. Roosevelt, Mussolini, Trotsky e Bernard Shaw, por exemplo, foram colaboradores da rádio. A popularidade dos talos, bem como o prestígio e relevância dos seus protagonistas, são parte da explicação de, à época, serem raros os jornalistas de rádio. Predominavam os produtores cuja função era a de atraírem convidados com prestígio e notoriedade para os seus programas. E assim se ficava a saber das notícias do mundo.


A dada altura, porém, quer por razões de ordem política, quer por razões tecnológicas como a expansão da onda curta, soprou um forte vento de mudança. Na vertigem de uma espiral por onde passavam a Grande Depressão, a ascensão e triunfo dos fascismos, a consolidação do poder soviético e a crise dos impérios coloniais, gradualmente, a rádio passou a ser encarada não apenas como um meio de informação e entretenimento, mas, sobretudo, como arma de propaganda.


Estaline, em 1929, deu início na URSS a emissões regulares de Rádio em linguas estrangeiras. Fonte: www.history.com

Estaline desencadeou a primeira grande ofensiva neste domínio. Em 1929, a União Soviética deu início às emissões regulares em alemão e em francês e, no ano seguinte, em inglês e holandês. Foi o corolário de uma estratégia de exportação da Revolução resultante das teses do III Congresso da Internacional Comunista que previa uma rede de comunicações à escala global. A partir de 1931, a Rádio Vaticano imitava o exemplo soviético e passava a ter emissões em várias línguas. Igualmente poliglota, a rádio na Alemanha tornou-se num instrumento de guerra psicológica. Em 1933, o III Reich inaugurou as suas emissões em onda curta a partir de Zeesen, nos arredores da capital. Três anos mais tarde, por altura da realização dos Jogos Olímpicos de Berlim, já difundia em 28 línguas. Em 1935, Mussolini ordenou o início de emissões em árabe para a África e o Médio Oriente.


Dado o clima de crispação, ingleses e americanos começaram igualmente a tomar medidas no plano da propaganda. Em 1938, a BBC passou a emitir em 23 línguas. Posteriormente, esse número aumentou consideravelmente. Nos Estados Unidos, onde predominava uma forte corrente isolacionista, a reação foi mais tardia e só após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 7 de Dezembro de 1941, portanto já em plena II Guerra Mundial, a Casa Branca decidiu criar a Voz da América. Pelo meio, todas as tentativas da Sociedade das Nações no sentido de fomentar pactos radiofónicos de não agressão foram frustradas.


A partir de 1934, Roosevelt utilizou a Rádio para se dirigir aos americanos nas suas Conversas à Lareira. Fonte: www.history.com

O documentário de rádio: dar a conhecer o mundo interpelando os homens


Foi neste contexto que a rádio levou a cabo experiências narrativas cuja importância, embora reconhecidas à época, viriam depois a resvalar para o esquecimento. Uma delas é o aparecimento de March of Time, um jornal radiofónico de notícias dramatizadas - como veremos, mais tarde, também, de cinema - que teve tremendo impacto. A outra é o documentário de rádio, aliás, indissociável de March of Time.


Em Documentary in American Television (1965), o autor, William Bluem, recorre a uma obra hoje praticamente invisível intitulada The Radio Play (1951) de Martin Maloney para definir o documentário de rádio:


“Tal como a biografia, o documentário (de rádio) é um texto apresentado dramaticamente. É suposto dramatizar a vida real por forma a dissecar os problemas da maioria das pessoas e expor ideias. O documentário assemelha-se ao drama na forma de apresentação; os factos não são meramente relatados, são antes organizados como se de ficção se tratasse”.

A alusão à biografia não é casual. Por volta de 1926 apareceram na rádio biografias de figuras históricas. Um pouco mais tarde, em 1932, a Time, Inc. lançou March of Time, um novo tipo de programa jornalístico cuja abordagem da atualidade não enjeitava o recurso a atores. Fazia uso da voz humana combinada com música e efeitos sonoros. Neste caso a voz era de Westbrook Van Voorhis, o radialista mais famoso do seu tempo, posteriormente figura de proa dos jornais cinematográficos. A enorme popularidade do programa ficou também a dever-se à utilização de técnicas de dramatização, designadamente a recriação de acontecimentos em estúdio, com o intuito de aprofundar os assuntos. Um dos artifícios mais utilizados consistia em imitar vozes de líderes mundiais por via de atores como, por exemplo, Ted de Corsia, o italo-americano que encarnava Mussolini. Corsia saiu-se tão bem do desempenho que, onde quer que fosse, o chamavam não pelo nome próprio, mas por Mussolini.


The March of Time na Rádio. Fonte: Old Time Radio

Encarando as notícias como tendo uma componente de entretenimento e na impossibilidade, por razões de ordem técnica ou logística, de se deslocar aos locais dos acontecimentos, March of Time viria a ter uma importância determinante na evolução do discurso jornalístico, aproximando-o do documentário. Esse efeito, no entanto, terá resultado mais das circunstâncias e do espírito da época – com todas as incidências de carácter social decorrentes da Grande Depressão – do que propriamente de um intuito renovador. Era um programa feito com poucos meios visando motivar uma audiência tão alargada quanto possível. Tendo deixado de ser emitido pela CBS em 1939, March of Time reapareceu durante a guerra, passando a incluir depoimentos dos verdadeiros protagonistas e já não de actores, método, entretanto, introduzido por alguns dos seus imitadores, nomeadamente We the People, também da CBS, o qual valorizava a tensão e o conflito e procurava contar as suas histórias do ponto de vista das personagens envolvidas.


É verdade que nos primeiros tempos da rádio e, pelo menos até à eclosão da II Guerra Mundial, não houve grande consenso, se é que chegou a haver algum, em torno da natureza e definição do documentário de rádio. De qualquer modo, a sua influência e reputação viriam a ser gradualmente reconhecidos. Assim, no final dos anos 30, multiplicaram-se os trabalhos cujo enfoque ia ao encontro das necessidades sociais como, por exemplo, Democracy in Acetino emitido pela CBS com patrocínio governamental. Outros programas, como Roof over America, sobre problemas da habitação ou Municipal Government, sobre as funções do poder local, desempenharam um papel semelhante ao dos filmes do movimento documentarista na América e no Reino Unido.


Como tal, e porque neles havia sinais de uma estrutura narrativa dramática, o termo documentário, segundo Bluem, pode ser legitimamente aplicado a estes programas:


“Tal como os filmes documentários da época, eles procuraram dar a conhecer o mundo interpelando os homens. Procuraram mudar atitudes e alargar pontos de vista e perspetivas; e, atendendo às circunstâncias, as considerações de ordem técnica seriam sempre secundárias face à presença evidente dos objetivos propostos pelo documentário”.


Newsreels: a arte da narração


Apesar de tentativas anteriores remontando a 1924, o primeiro noticiário filmado integralmente sonoro só foi exibido pela Fox Movietone News em Outubro de 1927. Mês e meio mais tarde os jornais cinematográficos da Fox estavam presentes semanalmente em todo o mundo, o que levou a Pathé, a Gaumont, a MGM e a Paramount a equiparem-se com som.


A determinada altura, a popularidade crescente das notícias levou à abertura de salas - normalmente situadas nos locais de passagem mais movimentados como as estações ferroviárias e as principais artérias das grandes cidades - para exibição quase exclusiva de newsreels. Em França e noutros países francófonos essas salas ficaram conhecidas por Cinéac, um neologismo criado a partir das palavras cinéma e actualité. No início da II Guerra Mundial, a Fox, a maior companhia, estava habilitada a fazer imagens com meios próprios em 51 países e dispunha de delegações nas principais capitais do mundo.


A 2 de novembro de 1929 William Fox comprou o Embassy Theatre na Broadway, NY, para sessões contínuas de newsreels. Foi o primeiro do género nos Estados Unidos. Fonte: Greenbriar Pictures Shows.

Três ordens de razões, aliás indissociáveis, convergiram para fazer dos anos 30 os anos de ouro das atualidades cinematográficas: primeiro, a conjuntura política, carregada de ameaças, e a consequente necessidade de informação; segundo a inovação tecnológica e os efeitos da rádio; terceiro, o impacto da versão cinematográfica de March of Time.


Em relação ao primeiro ponto, importa anotar a resistência inicial dos produtores em investir em noticiários. Encaravam-nos como mero complemento dos filmes de fundo. Contudo, na Europa, a determinada altura, setores operários começaram a insurgir-se contra a futilidade dos assuntos. Promoveram estridentes manifestações de assobios, obrigando à interrupção das sessões. Nos Estados Unidos, por outro lado, o público - na verdade, só parte dele - dava sinais de não entender os motivos pelos quais, por exemplo, as deploráveis condições de vida de muitas famílias americanas, em consequência da Grande Depressão de 1929, eram simplesmente ignoradas.


Também a situação internacional suscitava preocupação, dando argumentos a quantos se insurgiam contra a tendência para o entretenimento dominante nas atualidades. Na Europa intensificava-se a luta política, à esquerda e à direita, com a consolidação do poder soviético e a ascensão dos fascismos. Em Portugal era instaurada a ditadura do Estado Novo. Em Espanha, após um conturbado período republicano, estalava a Guerra Civil, cujo desfecho permitiria ao general Francisco Franco governar em ditadura tendo como aliados a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler. Mussolini alimentava o desígnio de restaurar o antigo império romano. Hitler, numa Alemanha renascida da humilhação imposta pelos ditames do Tratado de Versalhes, propunha-se criar um império de mil anos.


Equipa da Fox Movietone News, anos 30. Fonte: NH Filmaker

Quanto ao segundo ponto, a inovação tecnológica disponibilizava equipamentos cada vez mais ajustados à velocidade exigida pela informação. Ainda antes do cinema sonoro as câmaras de filmar já eram mais leves, com maior autonomia e capacidade ampliada de armazenamento de bobines. Substituídas as manivelas por motores, o cinema mudara de ritmo, passando de 16 para 24 imagens por segundo. Dadas as dificuldades da captação do som direto - entre outras, os equipamentos, pesados e complexos, retiravam mobilidade ao operador de câmara - o poder enunciativo da palavra gravada em estúdio passou a ocupar um lugar central. O comentário impôs-se a ponto de, muitas vezes, substituir as próprias imagens, dando origem a uma verdadeira arte da narração. Comentadores como Lowell Thomas tornaram-se celebridades mundiais.


Um exemplo dessa arte de narrar encontra-se na cobertura que a Fox fez, em 1934, do assassínio do rei Alexandre da Jugoslávia durante uma visita a França. O rei seguia numa viatura com o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Barthou, quando da multidão apinhada nas ruas de Paris saiu um homem que disparou sobre os dois estadistas. O atirador pôs-se em fuga, mas foi logo detido. As imagens não mostram os disparos. A narração, contudo, compõe um quadro de tal modo impressivo que se fica com a sensação de se ter assistido à integralidade da ação. Para produzir tamanho efeito os textos tinham de ser imaginativos, redigidos para serem ditos e não lidos, e as vozes adequadas ao intuito de sugerir continuidade visual onde, na verdade, ela não existia.


Lowell Thomas apresentou a 29 de setembro de 1930 o primeiro programa diário de notícias da Rádio CBS. Posteriormente, seria uma das vozes emblemáticas de Newsreels. Fonte: Britannica

Finalmente, a influência de March of Time. Numa altura em que os talks e os blocos noticiosos proliferavam nas estações de rádio americanas, recolhendo a preferência dos patrocinadores, foi lançada a versão cinematográfica de March of Time, a qual, tal como o programa radiofónico do mesmo nome, tratava os temas da atualidade através de narrativas altamente dramatizadas.


March of Time no cinema


Henry Luce, fundador da Time Inc. e proprietário de March of Time, quis transportar para o ecrã um jornalismo que tratasse as matérias em profundidade sem, no entanto, prescindir de uma parcela de entretenimento. Entregou a tarefa de encontrar a solução a dois produtores, Louis de Rochemont e Roy Larsen, ambos partidários da observância dos critérios jornalísticos, o primeiro com experiência de Hollywood, o segundo da rádio. Uma mistura explosiva, dir-se-ia. Em conjunto, propuseram-se revolucionar os jornais cinematográficos.


Louis de Rochemont e o Oscar de Wollywood atribuído ao jornal cinematográfico March of Time. Fonte: NH Filmaker

Rochemont fora repórter de imagem de diversas companhias e as suas ideias eram pouco ortodoxas. Não se coibia, a par da utilização recorrente de imagens de arquivo, de promover a encenação de acontecimentos e, eventualmente, até a reconstrução, por forma a tornar as peças mais apelativas. Os operadores de March of Time tanto recorriam à câmara oculta quanto faziam os protagonistas representar diante dela, embora recusando, por norma, a participação de atores profissionais. Figuras públicas começaram a ser dirigidas por March of Time com o intuito de as fazer melhorar os seus desempenhos. O general McArthur, por exemplo, não só deu instruções para unidades das forças armadas americanas colaborarem, mas também, ele próprio, aprendeu a representar-se a si mesmo. Henry Luce chegou a justificar estes procedimentos como sendo afins do cinema documental, invocando, inclusivamente, semelhanças com o método de Robert Flaherty, ou seja, tratar-se-ia de encenar de modo a chegar o mais próximo possível da verdade, portanto, em nome da verdade.


A primeira exibição de March of Time teve lugar a 1 de Fevereiro de 1935 no Teatro Capitólio, em Nova Iorque. Um ano mais tarde o magazine era exibido em mais de 5.000 salas dos Estados Unidos e em 709 no Reino Unido, sendo visto por mais de quarenta milhões de pessoas em todo o mundo. Na sua primeira edição cobriu seis assuntos em vinte e dois minutos, o que não diferia substancialmente do que faziam outros jornais de atualidades. Na edição seguinte, os temas tratados foram cinco e na quinta edição apenas dois. Desde essa altura, durante três anos, March of Time abordou dois a quatro temas até que, em Janeiro de 1938, dedicou a sua atenção a um único assunto num filme intitulado Dentro da Alemanha Nazi.

O filme mostrava o quotidiano no III Reich. A sua exibição foi recusada por alguns distribuidores, aliás, por razões contraditórias visto ser acusado de pró-nazi por uns e anti-nazi por outros, o que só pode ser compreendido devido à peculiar situação interna dos Estados Unidos. Por um lado, a embaixada alemã exercia pressão constante sobre a indústria do cinema americano ameaçando suspender a importação de filmes de Hollywood, por outro, o movimento isolacionista rejeitava qualquer tipo de ação que pudesse comprometer o país na eventualidade de uma guerra.


Clip de uma reconstrução de Inside Nazy Germany produzido por March of Time. Fonte: New York Times

Neste caso, porém, colocava-se ainda um outro problema. Boa parte de Dentro da Alemanha Nazi tinha sido rodada e encenada na América com protagonistas escolhidos entre os membros de uma comunidade germânica com padrões de vida tradicionais. March of Time foi acusado de falta de ética e a polémica estalou. Se a acusação não era inocente, a polémica foi criativa. O filme alertou a opinião pública americana para a ameaça nazi e marcou o ponto de viragem com a prática tradicional de newsreels. Diria Louis de Rochemont, citado por Fielding:


“Esta expansão do tempo no processo de reportagem foi importante principalmente porque permitiu um estilo jornalístico no qual a ênfase se dividia entre o drama inerente ao acontecimento e a técnica dramática da sua representação”.


March of Time estabelecia, assim, uma ordem discursiva na qual a apresentação dos factos avançava rumo a um clímax dramático, o qual, por sua vez, assegurava a continuidade narrativa. Admitia-se pela primeira vez num medium audiovisual, observados determinados limites, a legitimidade do recurso à encenação de acontecimentos em trabalhos jornalísticos. Era essa a sua força, mas, também, a sua maior debilidade. À época, do ponto de vista da ideologia da objectividade, em crescendo desde o início dos anos 20, o programa foi acusado de risco de inconsistência, visto as reconstruções serem dificilmente compatíveis com os critérios jornalísticos. Reservas foram igualmente colocadas ao método de dramatização.


Seja como for, com ou sem reservas, March of Time impôs-se a ponto de conquistar os grandes de Hollywood, de Darryl Z. Zanuck a Walter Wanger, de Irving Thalberg a David O. Salznick. Ganhou até um Oscar da Academia. Expressando a sua admiração, Salznick afirmou: “Sinto que o aparecimento de March of Time – com a sua coragem e novidade – é a mais importante inovação cinematográfica desde a invenção do som ”.


No seu ensaio The Course of Realism, depois de criticar a leviandade e irrelevância da generalidade dos noticiários cinematográficos, John Grierson dizia que March of Time ganhava onde até então todos os outros tinham falhado:


“Vai para além da notícia, analisa os factores de influência e confere uma perspectiva aos acontecimentos. Não são já os exércitos em parada, mas a corrida ao armamento; não é apenas a inauguração de uma barragem, mas a história completa das experiências da administração Roosevelt em Tennessee Valley; não se limita a noticiar o lançamento à água do Queen Mary, antes faz o levantamento da navegação britânica a partir de 1918. Tudo feito de um modo penetrante, em profundidade, e, como tal, dramático”.


John Grierson, fundador do movimento documentarista britânico, foi um dos entusiastas de March of Time. Fonte: BBC

March of Time foi certamente um produto da sua época. O seu estilo tinha muitos pontos em comum com o documentário da rádio. Parte do movimento documentarista britânico, a mais próxima do registo jornalístico, dar-lhe-ia grande atenção, como, de resto, sucedeu com o próprio Grierson, um conhecedor e entusiasta do campo dos media.


De um modo geral, March of Time assumiu posições antifascistas, embora não tivesse desempenhado um papel militante. Esse papel, no entanto, foi assumido por outros, nos Estados Unidos e na Europa, que contribuíram para o sucesso da propaganda e para a denúncia das injustiças sociais. Constituíram uma espécie de newsreels alternativo, promovendo, em simultâneo, uma via paralela de institucionalização do cinema de não-ficção.


Atualidades de combate, cineclubes militantes


Se a crítica da frivolidade dos jornais de atualidades americanos chegou a ser feroz, na Europa iria ainda mais longe. A dada altura, chegou a envolver o movimento comunista internacional.


Bert Hogenkamp, professor de Estudos de Cinema da Universidade de Amesterdão e autor de Film and the Left in Britain 1950-1970, recupera um texto de 1929 de um crítico cinematográfico de The New Leader no qual se resumia o programa de newsreels acabado de ver:


“Primeiro, o resumo de um jogo de futebol entre duas equipas escolares na disputa de um troféu; segundo, a princesa Mary inaugurando um edifício; terceiro, a construção de um pavilhão num campo de corridas de cavalos com alguns animais a percorrerem a pista; quarto, o príncipe de Gales inaugurando a Exposição de Newcastle; quinto, o capitão Campbell a falhar a tentativa de bater o recorde de velocidade automóvel do major Segrave; sexto, o rei a ser transportado de Bognor para Windsor onde iria convalescer de uma doença”.


No mesmo texto, fazendo eco das preocupações sociais da época, o crítico dava conta do que, em seu entender, deveria ser a alternativa:


“Podemos ter newsreels que mostrem manifestações políticas e de trabalhadores da indústria; as causas sociais que levam às greves; actividades de cooperativas; os efeitos das oito horas de trabalho nos mineiros e nas suas famílias; o contraste entre as nove pessoas que são obrigadas a partilhar um quarto numa habitação de trabalhadores e a pessoa das classes abastadas que dispõe só para si de nove divisões”.


Entre 1928 e 1939, em diversos países, este estado de espírito levou à produção de newsreels por iniciativa ou de organizações de trabalhadores, de algum modo dando expressão à ideia de Vertov de multiplicar as redes de Kinoks, ou de associações radicais como a Nykino nos Estados unidos. Umas e outras fazem parte da história dos anos de ouro das atualidades cinematográficas.


Willi Münzenberg, figura lendária do movimento comunista internacional, mestre da propaganda, depois incompatibilizado com Estaline. Fonte: Welt

Na década de 30 assistiu-se, igualmente, à afirmação dos cineclubes. O movimento teve frequentemente motivações políticas. Havendo censura institucional, mesmo em países cuja tradição democrática levaria a supor o contrário, casos do Reino Unido e dos Estados Unidos, os filmes soviéticos raramente podiam ser vistos fora de circuitos alternativos. O Socorro Vermelho Internacional, uma organização comunista animada por Willi Münzenberg, no quadro do Komintern, procurou contornar a situação. No final dos anos 20, na Alemanha, Münzenberg começou a desenvolver esforços para difundir a produção soviética considerada da maior importância para ganhar o operariado e a intelectualidade do ocidente. Para tanto, fundou uma distribuidora, a Prometheus Films - também produtora de newsreels -, contando com o apoio de uma rede de publicações associada aos sindicatos e outras organizações de trabalhadores.


Em breve, os cineclubes operários estavam a produzir os seus próprios noticiários e documentários. Coube à Alemanha um papel pioneiro. Antes da subida de Hitler ao poder, os socialistas alemães mostraram ter aprendido a lição dos kinoks de Dziga Vertov ao utilizarem imagens retiradas dos jornais de atualidades da UFA dando-lhes sentido revolucionário. Joris Ivens fez o mesmo na Holanda. Outros repetiram a experiência no Reino Unido, nos Estados Unidos e em França onde, durante a Frente Popular, se multiplicaram as iniciativas levadas a cabo por comunistas e socialistas com a colaboração de artistas e intelectuais como Jacques Prévert, Louis Aragon, Jean Renoir e Germaine Dulac. De um modo geral, as produções eram de orçamento reduzido. Contudo, episodicamente, fizeram-se filmes mais ambiciosos como La vie est à nous (1936), um trabalho colectivo para o Partido Comunista Francês sob a orientação de Jean Renoir, cujo argumento se serve das atualidades cinematográficas para legitimar a retórica ficcional.


Clip de La Vie Est à Nous (1936), filme produzido com fundos recolhidos junto do mundo operário com a participação, entre outros, de Henri Cartier-Bresson, Jean Renoir e Jacques Becker. Concebido para a campanha eleitoral da Frente Popular, só foi exibido em sala 30 anos mais tarde devido à censura do Estado francês. Fonte: Film Forum

As raízes desta luta pelas imagens mergulham nos primeiros tempos do poder soviético quando Vertov alertou para a impossibilidade do cinema revolucionário coexistir com narrativas construídas a partir dos códigos da burguesia. Logo após a tomada do poder pelos bolcheviques, Vertov colocou-se ao lado de Lenine quando este defendeu a atribuição de 75 por cento dos recursos destinados ao cinema aos filmes de não-ficção. Em causa, segundo Seth Feldman, da Universidade de York, Canadá, e autor de dois livros sobre Vertov, estava a atenção que deveria ser prestada ao dia a dia homem comum:


“Ideologicamente, esta ênfase do homem comum nas notícias tem ramificações quer na arte socialista, quer na história do cinema. Embora o cinema em si mesmo não constituísse qualquer novidade para o povo russo, a verdade é que colocar esse mesmo povo no lugar até então reservado no ecrã a actores e gente famosa era não só uma novidade sem precedentes, mas também um modo de celebrar a sua vitória na luta de classes. (...) Para Vertov, isto quis dizer que o cineasta devia ser aceite na nova sociedade como um camarada-trabalhador e não como o patrão (que era na produção dos filmes de estúdio) ou o observador desapaixonado (que era suposto ser nos jornais cinematográficos da época)”.


Sendo esta a linha de rumo da produção mais radical no movimento socialista, nem por isso deixaram de existir outras manifestações visando a utilização do cinema como arma política. Bem pelo contrário. A partir da introdução do som, foi até nos países fascistas, primeiro na Itália, depois, como se viu, na Alemanha, com Deutsche Wochenschau que cinema e newsrels mais se identificaram com a propaganda. No caso alemão, fica até registo de obras extraordinárias como os documentários de Leni Riefenstahl.


O sonho interrompido de Buster Keaton


É certo que parte significativa da produção de newsreels dos anos 30 era rotineira, subordinada ao entretenimento e de má qualidade. No entanto, apesar das reservas e independentemente de March of Time, os jornais cinematográficos eram parte integrante da cultura popular tendo criado à sua volta, ainda antes do advento do som, uma aura e um mito que Buster Keaton iria desmontar magistralmente em The Cameraman (1928).

Fonte: Gale Literature Resource Center

Keaton é um fotógrafo ambulante que ganha a vida fazendo o retrato de transeuntes. No dia em que Charles Lindbergh é recebido em apoteose em Nova Iorque, depois do seu famoso voo transatlântico, perde-se de amores pela namorada de um operador de newsreels, actividade a que ela própria se dedica como funcionária de agenda. Para a impressionar, resolve tentar também ele a sua sorte. Vende a velha máquina fotográfica e compra um antiquado modelo de máquina de filmar do qual todos fazem troça. Depois de clamorosos fracassos, acaba por ser protagonista de um episódio acidental em que é obrigado a ficar com o macaco de um pedinte. O macaco passa a acompanhá-lo na sua deambulação em busca de furos jornalísticos. A história, obviamente com origem na visão glamourizada que então se tinha do mundo dos operadores de newsreels, é, daí em diante, premonitória.


Buster Keaton é informado pela jovem de que algo de importante vai acontecer no bairro chinês, estando iminente um confronto entre bandos rivais. Assim é. E o cameraman depressa descobre como proceder. Primeiro, inadvertidamente, porque é desastrado, no meio de um tiroteio cai em situações que, sendo perigosas, são espetaculares. Apercebendo-se disso, rapidamente começa a induzir ele próprio ainda maior violência entre os bandos, de modo a conseguir imagens que sabe irão agradar ao patrão. Deixa, portanto, de agir como repórter para se transformar em alguém que cria a notícia. Porém, de modo acidental, e hilariante, quem acaba por ficar com os louros é o seu rival. “As melhores imagens que já vi na minha vida”, exclama o patrão.


No dia seguinte, rival e rapariga da agenda estão a bordo de um pequeno barco num lago a ver uma corrida de motonáutica. Na margem, Buster Keaton filma a prova com o macaco pendurado nos ombros. A determinada altura o barco em do par é abalroado. O companheiro da jovem nada para a praia abandonando-a à sua sorte. Buster Keaton atira-se à água e consegue trazê-la para terra aonde chega inanimada. Corre em busca de ajuda. Quando regressa com auxílio a sua amada está nos braços do rival que se vangloria de a ter salvo. Ela não se cansa de agradecer a bravura do parceiro. Mas o filme tem um final feliz. O macaco, por efeito de imitação, apossara-se da câmara e filmara tudo, mostrando a coragem do dono e a cobardia do impostor...


Crítica social do mundo das notícias cinematográficas e do glamour a ele associado The Cameraman, deixando de lado a trama romanesca e o gigantesco talento de comediante de Buster Keaton, coloca basicamente três tipos de questões e permite uma conclusão. Em primeiro lugar, expõe a lógica dos produtores de newsreels que faziam da espetacularidade da imagem uma espécie de valor notícia, se necessário anulando qualquer critério jornalístico. Em segundo lugar, pondo a nu procedimentos de cameramen capazes de fabricar situações para corresponder às expetativas de patrões e público. Em terceiro lugar, o papel da câmara enquanto agente de revelação da verdade. Por alguma razão Vertov dizia que o olho da câmara é mais perfeito do que o olho humano para efeito do conhecimento do real e não foi certamente por acaso que o seu O Homem da Câmara de Filmar faz citações de The Cameraman. Conclusão: a câmara tanto pode ser usada para elucidar e fazer ver, quanto pode, se entregue à frivolidade, dar lugar ao desastre.


Nos anos de ouro das atualidades cinematográficas, desde o advento do cinema sonoro até ao final da II Guerra Mundial, houve de tudo. Para o bem e para o mal. A imagem conheceu diferentes formas de combinação com o som, por vezes, cedendo o primado da enunciação à palavra. Multiplicaram-se as hipóteses narrativas. Talvez por isso mesmo, o filme documentário adquiriu, durante este período, adquiriu considerável arsenal teórico no meio de acesas controvérsias. O movimento documentarista britânico nasceu e cresceu neste contexto.


The Cameraman de Buster Keaton e Edward Sedgwick comtempla um conjunto de questões recorrentes da relação da imagem com o real, nomeadamente os limites da intervenção da câmara de filmar num contexto em que a espetacularidade, acedendo ao estauto de valor notícia, justifica a transgressão da norma ética e confina a informação jornalística ao voyeurismo inerente ao domínio do consumismo simbólico. Clip de The Cameraman (1929).

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- Documentary Diary, Hill and Wang, New York, 1973.

- Television in the Making, edited by Paul Rotha, The Focal Press, London and New York, 1956.



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Jorge Campos

arquivo

        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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C A T E G O R I A S

Ensaios, conferências, comunicações académicas, notas e artigos de opinião sobre Cultura. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes  quando se justificar.

Iluminação Camera

 

Ensaios, conferências, comunicações académicas, textos de opinião. notas e folhas de sala publicados ao longo de anos. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes quando se justificar.

Estático

Arquivo. Princípios, descrição, reflexões e balanço da Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura, da qual fui o principal responsável. O lema: Pontes para o Futuro.

televisão sillouhette

Atualidade, política, artigos de opinião, textos satíricos.

Notas, textos de opinião e de reflexão sobre os media, designadamente o serviço público de televisão, publicados ao longo dos anos. Textos  de crítica da atualidade.

Notas pessoais sobre acontecimentos históricos. Memória. Presente. Futuro.

Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

Todo o conteúdo © Jorge Campos

excepto o devidamente especificado.

     Criado por Isabel Campos 

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