O Free Cinema britânico, apesar da existência efémera, deixou marcas profundas. Após a II Guerra Mundial, se o documentário apontava, por um lado, para o distanciamento em relação aos filmes de propaganda explorando novos caminhos de aprofundamento do vínculo com o real, era obrigado, por outro lado, a olhar para um novo e poderoso medium, a Televisão, cuja natureza se afigurava distinta do cinema, colocando, como tal, novas questões e novos problemas. Por sinal, os países onde a televisão se desenvolveu mais rapidamente, os Estados Unidos e o Reino Unido, foram precisamente aqueles nos quais o cinema documental mais se ressentiu no imediato. Em meados dos anos 50, no Reino Unido, a tentativa de inverter a situação veio de um grupo de jovens cinéfilos. Beneficiando de um conjunto de circunstâncias culturais favorável, designadamente o aparecimento de uma nova geração de escritores ferozmente crítica da ordem social vigente, os “angry young men”, esses jovens iriam romper com a tradição cinematográfica institucional e lançar as bases da futura New Wave britânica. A sua opção estética - a estética Free Cinema - assentava em três eixos: cortar com o cinema de estúdio e levar as câmaras para a rua, indo ao encontro do dia a dia das pessoas; tirar partido dos novos equipamentos, leves e de grande mobilidade; aceitar trabalhar com orçamentos irrisórios colmatando a falta de financiamento com a busca de soluções “pobres”, todavia, engenhosas e criativas.
Retrospectiva: pós-guerra; contexto
Em Inglaterra, o governo trabalhista do pós-guerra pôs em marcha reformas nas áreas do cinema e da televisão, cujas consequências levaram ao início do desmantelamento das unidades de produção de cinema documental, nomeadamente da Crown Film Unit (ver neste blogue artigos sobre o Movimento Documentarista Britânico). Com o regresso ao poder dos conservadores, uma vez mais liderados por Winston Churchill, essa política foi prosseguida e a tarefa concluída. Apesar de considerada uma das principais, senão a principal contribuição dos britânicos para o cinema, os filmes inspirados no movimento criado por John Grierson tinham deixado de fazer sentido. A televisão, porém, acolheu o documentário chamando a colaborar alguns dos seus intérpretes mais conhecidos, entre os quais, Paul Rotha. Atribuída a Gus MacDonald da Granada Television, em Manchester, impôs-se como evidência a frase: “documentary is alive and well and living on television.” Nem sempre, porém, a experiência foi bem sucedida. Formatos jornalísticos, descuidados e conformistas, tornar-se-iam dominantes.
Na América, ao contrário do Reino Unido, a produção financiada pelo Estado foi sempre encarada com desconfiança e os estúdios nunca mostraram interesse pelo cinema documental. O clima da Guerra Fria, por outro lado, também desaconselhava filmes com preocupações sociais e políticas. E se o documentário de televisão foi ganhando o seu espaço pela mão de Edward R. Murrow e Fred Friendly, o filme documentário simplesmente desapareceu das salas (ver neste blogue os artigos sobre o célebre confronto mediático entre Edward R. Murrow e Joseph McCarthy no seio do qual se foi sedimentando a ideia de documentário jornalístico). Reportando a este período os historiadores têm dificuldade em citar mais do que dois ou três títulos relevantes. Normalmente a minúscula lista é encabeçada por Louisiana Story (1948) de Robert Flaherty, seguido de The Quite One (1949) de Sydney Meyers e de All My Babies (1952) de George Stoney. Seria necessário esperar pelos anos 60 e pelo direct cinema para se verificar um novo, pujante e contraditório, impulso, ao qual não foi estranho o cruzamento com a televisão e para o qual contribuiu de forma pioneira Robert Drew e o seu screen journalism.
Em contrapartida, na Europa continental, ainda que de forma assimétrica, o pós-guerra trouxe um interesse renovado. Alguns autores aludem mesmo a uma idade de ouro do filme documentário europeu resultante da convergência de elementos de natureza política, económica, cultural e financeira. A indústria cinematográfica, profundamente atingida pela guerra, estava ou com os estúdios destruídos ou em péssimas condições. Muitos técnicos e artistas emigraram para os Estados Unidos. Nestas condições, diferentes países optaram por elaborar políticas públicas de apoio às respectivas cinematografias. Uma nova geração de cineastas dedicou-se a fazer produções de baixo orçamento, sobretudo curtas-metragens e documentários.
A iniciativa privada também não ficou indiferente a este movimento vendo nele a possibilidade de encontrar um novo veículo de promoção das suas empresas e dos seus produtos. Assim, boa parte dos documentários europeus dos anos 50 teve origem em encomendas públicas ou privadas, muitas das quais inseridas em projectos associados a tarefas da reconstrução, mormente com fundos do Plano Marshall. Se nalguns países surgiram obras excepcionais - a título de exemplo poder-se-ia falar de Alain Resnais -, noutros, que beneficiaram do Plano Marshall, a produção foi mais obediente ao pragmatismo político, não revelando grandes preocupações de ordem estética, salvo raras excepções, caso dos filmes do holandês Herman van der Horst.
A televisão, entretanto, viera para ficar. Nenhum país europeu deixou de conviver com essa nova realidade sendo observável, no tocante ao documentário, um desenvolvimento gradual e contraditório em função de dois eixos: um demarcando-se do campo televisivo e preparando o terreno para a política dos autores; outro investindo essencialmente no documentário de televisão. O Reino Unido, por sinal, teria excelentes praticantes em qualquer dos cenários.
Free Cinema: “Um estilo significa uma atitude”
Em meados dos anos 50 o cinema documental britânico conheceu um novo impulso. Sob a liderança de Lindasy Anderson, insurgindo-se contra os pressupostos do documentário inspirado por John Grierson, o Free Cinema teve origem nos esforços de um grupo de jovens cineastas britânicos para mostrarem os seus filmes, experimentais e inovadores, os quais, de outro modo, estariam fatalmente condenados ao anonimato. Inicialmente, Free Cinema designava apenas a primeira sessão de uma série de seis programas, na sua maioria constituída por curtas-metragens documentais, exibida no National Film Theatre de Londres entre Fevereiro de 1956 e Março de 1959. Contudo, dado o sucesso, com todas as sessões esgotadas e uma entusiástica cobertura mediática, Free Cinema, a designação cunhada por Lindsay Anderson, passou a identificar os filmes e, sobretudo, o movimento que lhes dera origem. Para além dos trabalhos dos cineastas britânicos, essas sessões, consideradas memoráveis, permitiram também revelar cineastas estrangeiros como Lionel Rogosin, George Franju, Norman McLaren, Roman Polanski, Walerian Borowcyzk, Claude Chabrol e François Truffaut.
Dos documentaristas britânicos das gerações anteriores apenas Humphrey Jennings mereceu a aprovação unânime dos jovens turcos de Anderson (ver neste blogue o artigo sobre o Movimento Documentarista Britânico consagrado a Jennings). Todos os demais passaram a ocupar, na melhor das hipóteses, um lugar secundário o que, na altura, levou John Grierson a comentar depreciativamente os filmes do Free Cinema, aos quais chamou “Baby stuff”. Próximos da crítica social levada a cabo na literatura pelos “angry young man”, entre os quais se destacava John Osborne, autor do célebre Look Back in Anger (1956), os cultores do novo movimento criticavam igualmente a produção cinematográfica mainstream, incapaz de reflectir os sinais do tempo. Muito focado na classe operária e virulentamente antagónico dos valores das classes médias o Free Cinema fez prova disso mesmo logo no seu primeiro programa, o qual incluiu O Dreamland (1953) do próprio Anderson, Momma Don’t Allow (1956) de Karel Reisz e Tony Richardson, e Together (1956) de Lorenza Mazzeti. Os seus objetivos foram nessa altura, em Fevereiro de 1956, assim resumidos num curto manifesto:
“Estes filmes não foram feitos com um propósito comum; nem com a ideia de os mostrar em conjunto. Mas quando se juntaram, sentimos haver neles uma atitude comum. Implícita nessa atitude está o acreditar na liberdade, na importância das pessoas e na relevância do quotidiano.
Enquanto cineastas acreditamos
Que nenhum filme pode ser demasiado pessoal.
A imagem fala por si mesma. O som amplifica e comenta.
A duração é irrelevante. A perfeição não é um fim.
Uma atitude significa um estilo. Um estilo significa uma atitude."
Assinado por Lorenza Mazzetti, Lindsay Anderson, Karel Reisz e Tony Richardson, o manifesto viria a constituir um ponto de viragem no cinema britânico abrindo espaço a uma atenção renovada ao real, mesmo em filmes de registo mais poético, como é caso de Together, uma história sobre dois trabalhadores surdos-mudos das docas de East End, área urbana marginalizada até então praticamente invisível no ecrã. Poderosa alegoria a propósito das franjas privadas de voz, Together encara a deficiência dos dois trabalhadores condenados ao isolamento como a outra face de uma sociedade, afinal, também ela deficiente, posto que maltrata e ignora quem mais precisa. O filme termina com a morte de um dos trabalhadores afogado no Tamisa depois de tentativas desesperadas para chamar a atenção.
O Dreamland de Lindsay Anderson é um filme feito praticamente sem orçamento. Utilizando uma câmara Bolex de 16mm sem som síncrono, com uma autonomia de apenas 40’’, Anderson, tomando como ponto de partida o parque de diversões de Margate, faz em 12’00’’ uma extraordinária parábola da sociedade capitalista britânica do pós-guerra. O filme principia com uma cena de quatro planos onde se pode ver um homem a puxar o lustro dos cromados de um Rolls Royce, seguindo-se uma panorâmica descritiva da via que conduz à entrada do parque frequentado pelas famílias operárias durante o fim-de-semana. Sucedem-se imagens da chegada de sucessivos autocarros de aluguer sobrelotados.
As diversões são grotescas. Manequins em tamanho natural servem para explicar às crianças as execuções dos “espiões Rosenberg” na cadeira eléctrica e de Joana d’Arc na fogueira da Inquisição. A gargalhada de um boneco de feira é utilizada recorrentemente como contraponto de rostos em grande plano exprimindo uma variedade de emoções - incómodo, perplexidade, desconforto -, mas nenhuma de júbilo, relaxamento ou alegria. A utilização diegética do som, como sucede com o recurso a I Believe, uma canção gospel interpretada por Frankie Laine, funciona como um ponto de interrogação sobre as razões porque se deve acreditar naquilo que, afinal, o parque de Margate propõe como modelo de vida. O mesmo sucede com a música de Juke Box debitando temas soporíferos trauteados por adolescentes sem convicção ou acompanhando os passos perdidos de quantos deambulam sem rumo à procura de uma quimera. O filme termina à noite com a imagem à distância do parque iluminado, na verdade, uma miragem, a terra da ilusão e vacuidade. Realizado em 1953, O Dreamland viria a revelar-se um filme precursor, entre outras razões, porque, apesar da curtíssima duração dos planos, assenta numa perspectiva de observação cujas consequências só teriam expressão cabal a partir da disponibilização de equipamentos posteriormente desenvolvidos.
Em Nice Time (1957) de Claude Goretta e Alain Tanner, a atenção ao quotidiano revelada no filme de Anderson ganha outra expressão. Os dois suíços, atraídos pelo sucesso dos programas anteriores, bem como pelo destaque dado pela imprensa especializada, tinham-se instalado em Londres. Com fundos do British Film Institute - de facto, o financiamento era irrisório, umas meras 240 libras - e o apoio do polivalente John Flectcher filmaram 25 noites de sábado em Picadilly Circus. Utilizando uma Bolex de 16 mm, funcionando muitas vezes como câmara oculta, mostraram num filme de 17’00’’, composto por 190 planos, as emoções e desilusões, encontros e desencontros dos frequentadores de Picadilly na sua busca semanal de divertimento e aventura. O tratamento do som adopta os procedimentos semelhantes aos do filme de Anderson. Combina a mistura em estúdio de música, silêncio e som ambiente.
Tal como O Dreamland também Nice Time sugere aquilo a que Jean Vigo chamou o “point de vu documentaire”, em 14 de Junho de 1931, no Vieux Colombier, na apresentação do seu A Propos de Nice: “Ce documentaire social se distingue du documentaire tout court et des actualités de la semaine par le point de vue qu’y défend nettement son auteur. Ce documentaire exige que l’on prenne position, car il met les points sur les i. S’il n’engage pas un artiste, il engage du moins un homme.” Em rigor, essa era também a filosofia dos praticantes do Free Cinema, aliás, admiradores incondicionais do cineasta francês.
Free Cinema: “A perfeição não é um fim”
Em síntese, estes filmes representaram um “desafio à ortodoxia”, para utilizar a expressão contida no manifesto de 1959 assinado por Lindsay Anderson, John Fletcher, Walter Lassally e Karel Reisz que pôs fim ao movimento alegando dificuldades financeiras, mas deixando nas entrelinhas a ideia de missão cumprida. Produzidos à margem do sistema, procurando reflectir sobre o quotidiano da classe trabalhadora, recusando a retórica da propaganda e reivindicando total liberdade de expressão artística, os filmes do Free Cinema afastaram-se de qualquer perspectiva educativa ou jornalística. Prescindindo, na maioria dos casos, da voz off – Everyday Except Christmas (1957) de Lindsay Anderson é a principal excepção – são sempre a preto e branco, utilizam a montagem de imagem e som de forma inovadora e, apesar das limitações dos equipamentos, colocam a ênfase na observação, embora sem prescindir das reconstruções quando a situação o aconselhasse.
Finalmente, Everyday Except Christmas, a par de We are the Lambeth Boys (1959) de Karel Reisz, sendo dos filmes mais ambiciosos em termos de orçamento, merece atenção por outros motivos. Karel Reisz acabara de ser contratado para o departamento de promoção da Ford, mas impusera como condição poder produzir uma série de documentários sem intuitos publicitários que deveriam dar continuidade ao Free Cinema. O de Anderson foi o primeiro. Filme de encomenda, presta homenagem aos trabalhadores do mercado de Covent Garden e nele, pela primeira vez, alguns diálogos são síncronos. Por outro lado, o director de fotografia Walter Lassaly, utilizando uma nova película de alta sensiblidade, conjugou imagens de intenso recorte poético com planos de observação extremamente reveladores do dia a dia do mercado. Inicialmente, pensado sem voz off, o filme acabou por incluí-la por pressão do patrocinador. Se Lindsay Anderson fez uma pequena concessão, a verdade é que mesmo assim conseguiu reforçar o ponto de vista artístico através do uso que fez da palavra. Everyday Except Christmas foi premiado em Veneza com o Grande Prémio para o documentário.
De todos os movimentos contemporâneos associados a formas de cinema de observação na fase de consolidação da televisão, o Free Cinema terá sido aquele que dela mais se distanciou. Na maioria dos seus documentários predomina o modo reflexivo, na terminologia de Nichols, associado a práticas observacionais e a cambiantes poéticas inspiradas muitas vezes nos filmes de Humphrey Jennings. Para tanto terão contribuído quer razões de natureza cultural, artística e ideológica, quer de ordem tecnológica, pesando, neste caso, as limitações dos equipamentos, designadamente a inexistência de som síncrono. Na fase final, contudo, surgiram filmes nos quais são reconhecíveis procedimentos televisivos. É o caso, por exemplo, de March to Aldermaston (1959) com realização colectiva de um comité de voluntários composto por realizadores e técnicos de cinema e da televisão.
March to Aldermaston documenta a marcha de protesto de quatro dias, durante a Páscoa de 1958, entre Londres e a fábrica de armas nucleares do mesmo nome. Organizada pela Campanha Pelo Desarmamento Nuclear e contando, entre outros, como o apoio da New Left Review, a marcha foi coberta por uma grande variedade de operadores de cinema e de televisão utilizando câmaras muito diferentes. O resultado é um misto da espontaneidade e capacidade de lidar com as pessoas de forma poética e humanista própria do Free Cinema com a visão proporcionada pela reportagem televisiva que recorre a entrevistas e procede fundamentalmente de modo expositivo. Nem sempre a combinação funciona. O texto simplista e retórico dito por Richard Burton também não ajuda.
Após o sexto programa do Free Cinema em março de 1959, Anderson, Reisz e Richardson deram a tarefa por terminada. Em breve, todos eles iram dirigir longas metragens que se tornariam marcos do cinema britânico. Lindsay Anderson fez This Sporting Life (1963), Karel Reisz aventurou-se com Saturday Night and Sunday Morning (1960) e Tony Richardson com A Taste of Honey (1961) reincidindo pouco depois com The Loneliness of the Long Distance Runner (1962). Estava aberta a porta à 'British new wave’, um cinema social de cariz realista cujos filmes ainda hoje não deixam de espantar.