top of page
8811.jpg
   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 17 de dez. de 2024
  • 21 min de leitura

 

“Não há filme político sem moralidade, não há filme político sem teologia, não há filme político sem misticismo.”

                                                                          Jean-Marie Straub

 

Jean-Marie Straub tinha 81 anos quando fez Kommunisten (2014) em homenagem aos resistentes comunistas, bem como à sua mulher, Danièle Huillet, entretanto falecida. Com textos de autores como André Malraux, Elio Vittorini, Mahmoud Hussein, Franco Fortini e Friedrich Hölderlin, o filme evoca episódios de um longo período histórico no qual o cineasta foi observador e interveniente, não se eximindo de produzir, frequentemente, declarações incendiárias. No seu capítulo final, Kommunisten faz a encenação da utopia de um Mundo Novo (Neue Welt), livre da exploração, onde se dá o reencontro do homem com a natureza. Indissociável do materialismo histórico e da luta de classes, este comunismo ecológico resulta da praxis quotidiana assente na dialéctica, que é condição da liberdade. Nos últimos anos de vida, Straub costumava dizer ironicamente “sou um velho estalinista.” Não era. Não há lugar para o dogma na sua obra, que é, também, a obra de Huillet. Pelo contrário, os seus filmes convocam o pensamento, apelam à cultura e à memória, contrariam o caos simbólico: exigem perguntas. Kommunisten não foge à regra. Face à desrealização do real no mundo contemporâneo não é coisa pouca.  

 

Em função da narrativa construída a partir de argumentos marxistas, poder-se-ia pensar ser um filme de mensagem retórica linear, porventura, a expressão nostálgica de uma outra ordem do passado, ou, então, um mero texto laudatório daqueles que foram presos, torturados e mortos em nome da grande utopia do século XX. É o contrário. Complexo, meticuloso e depurado, não autoriza o imediatismo dedutivo da relação causa-efeito. Tão pouco há resquício, na sua organização textual, das simplificações de que se fazem as vulgatas. Sendo um filme político é, também, um filme sobre o cinema. Procura fazer a síntese de um percurso, tarefa dir-se-ia impossível, dada a dimensão do acumulado ao longo do tempo.

 

ENTRA FOTO I STILL DE KOMMUNISTEN 2 HOMENS NA PRISÃO com legenda  Jean Marie-Straub: “C’est un film sur l’âme communiste, point final.” Da apresentação de Communisten na Cinémathèque Française, 23 de Fevereiro de 2015.
Jean Marie-Straub: “C’est un film sur l’âme communiste, point final.” Da apresentação de Communisten na Cinémathèque Française, 23 de Fevereiro de 2015.

Talvez por isso Jean-Marie Straub tenha dito que Kommunisten resultou de incontáveis noites de insónia. Feito de segmentos de outros filmes, interrompido e recomeçado por diversas vezes até as diferentes peças encaixarem de modo a formarem um mosaico coerente, adivinha-se nele o extenuante corpo a corpo com as imagens. Mas não só. Porque, carregado de memória e referências, procedente de autores cujos textos acompanharam a vida do casal, bem como da música erudita que sempre amaram, este cinema, dando ideia de nada acontecer, exige, na verdade, o tumulto. Declara guerra ao conformismo do espectador. Insurge-se contra a fragmentação narrativa, denuncia a imagem-mercadoria, expõe o vazio do consumismo inerente à produção simbólica industrial.

 

Em suma, nada em Kommunisten tem a chancela do conforto. Não obedece aos significantes convencionais nem às articulações previsíveis. O prazer do texto, se a ele se conseguir chegar, releva do incómodo de pensar, do trabalho da memória, da capacidade de imaginar. Hermético, radicalmente poético, Kommunisten é, na verdade, imensamente desafiador. Jean-Marie Straub disse um dia que ele e a mulher faziam filmes para que as pessoas tivessem a liberdade de poder sair da sala.     

 

1. um certo olhar, uma maneira de ser. Faz algum tempo, assisti, durante semanas, sempre ao domingo, a uma retrospectiva integral de Straub-Huillet. Até então, eu teria visto pouco mais de meia dúzia de filmes, entre os quais, dois simplesmente deslumbrantes: Crónica de Anna Magdalena Bach (Chronik Der Anna Magdalena Bach) (1967) e Sicilia! (1998). Um amigo meu, crítico de cinema com muitos anos de experiência e créditos firmados, no final de uma das sessões - tanto quanto me lembro A Morte de Empédocles: Ou Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde (Der Tod des Empedokles oder: Wenn dan der Erde Grün von neuem Euch erglänzt)(1986) -, deixou escapar: ”Isto é como ir à missa.” Fiquei a pensar. Ir à missa, para um fiel, é motivo de júbilo. Mas, por obrigação, a missa é uma estopada. Olhando em volta, lembro-me de identificar à primeira vista quer o júbilo dos correligionários da chamada internacional straubeana, quer a perplexidade de outros cinéfilos em busca de uma explicação no quadro do adquirido.

 

Straub não acreditava na linguagem cinematográfica. Não se coibia de o afirmar. Todavia, era um conhecedor profundo do Cinema. Ainda adolescente, deixou a cidade de Metz, onde já dirigia o cine-clube local, para frequentar as universidades de Estrasburgo e Nancy. Conheceu então a futura mulher, Danièle Huillet. Com ela, em 1954, foi para Paris. François Truffaut levou-o para os Cahiers du Cinéma. Nem sempre a relação entre ambos terá sido pacífica, dada a recusa de publicação de alguns do seus textos. Mais amistosa foi a relação com Jean-Luc Godard de quem foi vizinho, na Suíça, nos últimos anos de vida. Assistente de realização em filmes de Jacques Rivette, Abel Gance, Jean Renoir, Robert Bresson e Alexandre Astruc, o nome de Jean-Marie Straub, ao contrário do que, por vezes, se pensa, não ficou associado à Nouvelle Vague através de obra própria. Mas guardou dela a atitude.

 

Perante a possibilidade de ser convocado pelo exército francês, temendo ser mobilizado para a Argélia, cuja luta pela independência apoiava, optou por viver na República Federal da Alemanha onde realizou os primeiros filmes. Ao lado de cineastas como Wim Wenders, Werner Herzog, Volker Schlöndorff, Hans-Jurgen Syberberg e Rainer Werner Fassbinder, fez caminho no movimento do Novo Cinema Alemão, todavia, tal como Syberberg, à margem do cânone dos seus pares. A partir de Chronik Der Anna Magdalena Bach, nomeado para o Urso de Ouro de Berlim, vencedor de um Bafta e de um prémio dos Cahiers du Cinéma, a singularidade do cinema dos Straub ganhou exuberante evidência.

 

Na fase italiana, em Roma, para onde o casal foi viver no início da década de 70, iriam desenvolver as suas ideias em contacto com obras de escritores como Franco Fortini, Cesare Pavese e Elio Vittorini. O trabalho a partir de textos literários, por vezes associados à música, teatro e até à pintura, seria, aliás, uma constante ao longo dos anos. Levaram para a tela Kafka, Hölderlin, Brecht, Dante, Corneille, Schönberg, Sófocles, Mallarmé, Montaigne, Cézanne e outros mais. Nunca fizeram, porém, adaptações cinematográficas no sentido convencional. Privilegiaram sempre os textos, na língua original, por vezes, nas versões arcaicas. Na maioria dos casos, chamaram actores não profissionais para os lerem ou declamarem diante da câmara. Escolheram cenários naturais. Som directo. Planos longos. A cor e a preto e branco.

 

Como se adivinha, ainda que premiado ou distinguido em algumas ocasiões, este cinema nunca teve relação fácil com os festivais, com a crítica e, menos ainda, com o público. Apelando à sensibilidade e inteligência, sem espaço para a evasão, não só pôs em xeque os critérios dos programadores, mas, também, baralhou a crítica e afastou o chamado grande público, apesar de deixar a porta aberta a quem estivesse disponível para o frequentar.

 

Jean-Marie Straub: “Nowadays film directors can’t see anything anymore; 90% of them are blind. They shoot movies where you’ve the impression of having seen so many things, but in reality, you can’t see a single thing. Before shooting a film, you need to intensely investigate locations and spaces. If you don’t do this work beforehand, maybe you can shoot, but after that, you won’t manage to see a single thing. What I’m trying to say is that there will be some images, but no imagination at all, etymologically speaking.” in Senses of Cinema, Class Relations: A Conversation with Jean-Marie Straub and Danièle Huillet, Edoardo Bruno and Riccardo Rosetti, June, 2017. Foto: Film Review 
Jean-Marie Straub: “Nowadays film directors can’t see anything anymore; 90% of them are blind. They shoot movies where you’ve the impression of having seen so many things, but in reality, you can’t see a single thing. Before shooting a film, you need to intensely investigate locations and spaces. If you don’t do this work beforehand, maybe you can shoot, but after that, you won’t manage to see a single thing. What I’m trying to say is that there will be some images, but no imagination at all, etymologically speaking.” in Senses of Cinema, Class Relations: A Conversation with Jean-Marie Straub and Danièle Huillet, Edoardo Bruno and Riccardo Rosetti, June, 2017. Foto: Film Review 

Como se observa, por exemplo, no meticuloso, quase invisível, trabalho de montagem, o cinema do casal remete para algo em suspenso entre a obsessão do rigor e o fascínio do mistério. Veja-se, a propósito, Où Gît Votre Sourire Enfoui? (2001) no qual Pedro Costa observa o trabalho dos cineastas no processo de edição de Sicilia! Face a essa suspensão, na recepção exigir-se-á, obviamente, ousadia equivalente à dos autores no sentido de interpelar as múltiplas faces do seu cinema-mundo, aliás, por eles defendido de forma intransigente. São numerosos os episódios que o atestam.

 

Um exemplo. Em fevereiro de 1997, durante um debate televisivo sobre o impacto da imagem virtual, no meio de acalorada discussão, Straub, em defesa do real, acusou o seu interlocutor, o engenheiro e filósofo Philipe Quéau, de defender ideias piores do que as de Goebbels. Quéau, por sinal, um seu admirador, ficou estarrecido. Essa ferocidade, longe de afastar a tribo cinéfila, contribuiu para o aparecimento de uma irmandade informal de seguidores tão intransigente na defesa da obra straubeana quanto os próprios cineastas.

 

Outro exemplo. Aquando da passagem no Festival de Veneza de Que Lori Inconti (2006), o último filme do casal antes da morte de Huillet, o Júri, presidido por Catherine Deneuve, atribuiu-lhes um Leão especial por terem inventado a sua própria linguagem cinematográfica. Os Straub não compareceram para receber o prémio e enviaram em seu lugar os actores de Que Lori Inconti que eram portadores de três curtas mensagens. Não lhes foi dada a palavra. O próprio director do Festival, Marco Muller, leu-as perante a imprensa. A primeira, jogando com Trop Tôt, Trop Tard (1981), dizia que a distinção vinha “demasiado cedo para a nossa morte - demasiado tarde para a vida”. A segunda listava presenças anteriores em Veneza sem qualquer distinção. A terceira deu um escândalo. Palavras de Jean-Marie Straub: “Eu não seria capaz de ser festivo num festival pejado de polícia, pública e privada, à procura de terroristas - Eu sou o terrorista, e deixem-me dizer-vos, parafraseando Franco Fortini: enquanto houver o capitalismo imperialista Americano, nunca seremos bastantes terroristas no mundo.” As severas medidas de segurança tinham sido justificadas com o 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque.

 

2. dialektiké; Mes dates clés. O método dos filmes straubeanos exige a dialéctica, palavra que vem do grego dialektiké, ou seja, a arte do diálogo. Para o marxismo, o diálogo com o mundo deve ser levado a cabo através do reconhecimento das contradições nele existentes. Só assim será viável a superação, tal como sugere o paradigma hegeliano - tese, antítese, síntese - actualizado por Marx e Engels ao introduzirem a luta de classes. Para entender a História, portanto, é necessário levar a cabo diversas operações, desde logo, analisar as condições de vida, as mentalidades e as representações em função do modo de produção que as determina.

 

No cinema, o materialismo conheceu várias declinações tendo, porventura, momentos  determinantes na teoria da montagem dialéctica de Sergei Eisenstein e no Cine-Olho de Dziga Vertov. Eu acrescentaria o método de Straub-Huillet. Nos seus filmes, em linha com o marxismo, sente-se, é certo, a presença do bisturi analítico a dissecar a complexidade do real. Mas não o determinismo. O que pulsa é a respiração da utopia de um cinema puro, Indissociável da utopia do comunismo. São filmes inexplicáveis em sentido literal. Existem para dialogar com o que lá está, seja uma longa panorâmica sobre o dorso de uma montanha, o peculiar modo de ler ou declamar um texto, o próprio texto, a postura do corpo dos protagonistas, a intensidade do sopro do vento, a paisagem dos rostos, o zumbir de um insecto, a luz rarefeita no interior de uma prisão, a sombra na parede de um suspeito sob interrogatório da polícia política, a ruína de um monumento da antiguidade habitada por personagens em trajes de época com um automóvel ao longe ou um avião a riscar o céu. Tudo isto faz parte, também, da materialidade dos filmes dos Straub. No ecrã, paisagens, actores, peças musicais, textos literários, o que quer que seja, na tela valem por si mesmos. De novo: dialektiké.  

 


Jean-Marie Straub: “Je ne sais pas si je suis un marxiste. Je ne sais pas, parce qu’il y a plein de façons d’être marxiste. Je n’ai pas lu tout Marx. Le marxisme est une méthode, ce n’est pas une idéologie.” in revue Période, fev, 2005. Foto: Criterion Collection
Jean-Marie Straub: “Je ne sais pas si je suis un marxiste. Je ne sais pas, parce qu’il y a plein de façons d’être marxiste. Je n’ai pas lu tout Marx. Le marxisme est une méthode, ce n’est pas une idéologie.” in revue Période, fev, 2005. Foto: Criterion Collection

Outro aspecto importante do diálogo é o conhecimento prévio da experiência de vida dos cineastas. Em abril de 2003, o jornal Libération publicou Mes dates clés (As Minhas Datas Chave), um texto de Jean-Marie Straub, então com 70 anos, no qual ele nomeia episódios determinantes do seu modo de ser, pensar e agir. Escreve, à laia de introdução, “Sou mais velho do que Baudelaire quando ele dizia ter mais de mil anos”, uma forma de evidenciar o peso da memória e a presença da História. Por ser extremamente revelador, recupero, por vezes de forma literal, parte desse texto. Eis algumas das datas:

 

1842 - A floresta alemã é interditada aos pobres ficando estes privados de bens essenciais para a sobrevivência como a madeira, os cogumelos e os castanheiros que passam para o domínio da indústria. O jovem Karl Marx insurge-se nas páginas da Gazeta renana. Em consequência, é despedido.

 

Inverno de 1942 - Straub tem apenas nove anos e está a patinar na placa gelada do rio Mosela. ESTALINEGRADO! (Sic). O pai diz-lhe ser o princípio do fim da guerra.

 

1945 - Pouco antes da guerra terminar, para pressionar Estaline, os B17 americanos bombardeiam duas vezes Dresden, uma das mais belas cidades alemãs. O número de vítimas civis é superior ao produzido pelas bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki “pour nous libérer du péril jaune”, diz Straub.

 

Até 1948 - A ESPERANÇA! (Sic). Straub é estudante liceal. Apesar de muito jovem segue apaixonadamente a vida política do pós-guerra. Congratula-se com as leis anti-trust, as nacionalizações e as expropriações da família Renault. Considera O Plano (económico) francês mais ousado do que o da República Democrática Alemã.

 

A partir de 1948 - McCarthy, a caça às bruxas, uma maré negra começa a invadir a Europa. Servidão face ao plano Marshall, criação da NATO. Na zona de ocupação inglesa, Churchill opta pela colaboração com nazis em detrimento dos sobreviventes dos campos de concentração. Está em marcha o capitalismo selvagem que traz consigo a barbárie, a máfia (juízo de Straub). Onde se fala de milagre económico, identifica empobrecimento e miséria. “Les débats à l'Assemblée nationale, où les insultes fusent, me réjouissent”, escreve.

 

1950-1953 - “Comédia sangrenta e grotesca em torno do paralelo 42. MacArthur sonha lançar bombas atómica sobre a Coreia? E porque não sobre a China?” (Tradução literal do original)

 

1953 - 1954 - FINALMENTE UM DIA DE GLÓRIA! (Sic). Um jovem de génio, Ho Chi Minh - diz Straub - impõe sucessivas derrotas ao exército colonial francês na Indochina e humilha os seus generais em Dien Bien Phu.

 

Novembro de 1954 (transcrição do texto original na legenda da foto seguinte, na qual estão Straub e Huillet) -

 


Jean Marie Straub e Danièle Huillet.  Jean Marie Straub: “J’arrive à Paris (jusque-là seulement quelques allers et retours Metz-Paris, en auto-stop, pour voir certains films : Journal d'un curé de campagne, Los Olvidados, The Quiet Man, le Fleuve, le Carrosse d'or, The Big Sleep, To Have and Have not, Monkey Business, African Queen, Beat the Devil, Big Heat, Der Blaue Engel, Subida al Cielo...). Je rencontre Danièle Huillet et lui propose de travailler à ce qui deviendra en 1967 Chronik Der Anna Magdalena Bach. Les premières grenades algériennes éclatent sur le pavé parisien et aux terrasses des cafés distingués; «Péguy, Péguy, voilà nos hommes», s'écrie Jeanne d'Arc. Onze ans d'exil à Munich pour avoir refusé l'incorporation sous les drapeaux en Algérie et avec elle la complicité directe avec la torture «institutionnalisée.» in Libération, le 30 avril 2023. Foto: Cinemateca
Jean Marie Straub e Danièle Huillet. Jean Marie Straub: “J’arrive à Paris (jusque-là seulement quelques allers et retours Metz-Paris, en auto-stop, pour voir certains films : Journal d'un curé de campagne, Los Olvidados, The Quiet Man, le Fleuve, le Carrosse d'or, The Big Sleep, To Have and Have not, Monkey Business, African Queen, Beat the Devil, Big Heat, Der Blaue Engel, Subida al Cielo...). Je rencontre Danièle Huillet et lui propose de travailler à ce qui deviendra en 1967 Chronik Der Anna Magdalena Bach. Les premières grenades algériennes éclatent sur le pavé parisien et aux terrasses des cafés distingués; «Péguy, Péguy, voilà nos hommes», s'écrie Jeanne d'Arc. Onze ans d'exil à Munich pour avoir refusé l'incorporation sous les drapeaux en Algérie et avec elle la complicité directe avec la torture «institutionnalisée.» in Libération, le 30 avril 2023. Foto: Cinemateca

Em 1956 - O coronel Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito, nacionaliza o canal do Suez. HURRA! (Sic). Simbolicamente, é o fim dos impérios francês e britânico.

 

Em 1961 - Um parêntesis feliz: A BAÍA DOS PORCOS (Sic). Os contra-revolucionários US são derrotados pelos cubanos, escreve Straub.

 

Início de 1968 - Chronik existe finalmente! (Sic). Após a apresentação, em Munique, Straub dedica o filme aos camponeses da floresta bávara e ao Vietcong (os B52 americanos bombardeiam Hanói todos os dias). Um jovem estudante da escola de cinema de Berlim, de nome Holger Meins, vai ver o filme a Frankfurt e diz a Straub ser o melhor filme da História do Cinema.

 

1973 - “Une boucherie au Chili.” Alusão à carnificina no Chile após o golpe militar de Pinochet.

 

No início de 1975 - Em Roma, os Straub veem na primeira página do Paesa Sera a foto de um cadáver a ser retirado da prisão de alta segurança de Hamburgo. É Holger Meins, cineasta, membro de uma organização radical chamada Fracção do Exército Vermelho, o mesmo que dissera que Chronik era o melhor filme da História do Cinema. Meins morrera na sequência de uma greve da fome. Os Straub ficam consternados. Dedicam-lhe Moses und Aron (1975), então em montagem. São 24 fotogramas no genérico que desencadeiam uma guerra com a televisão alemã.

 

1986 - Em A Morte de Empédocles, um texto escrito por Holderlin em 1790, os Straub descobrem a utopia de um jovem que se insurge contra a ameaça da revolução industrial e o mito do progresso. O comunismo ecológico pode ainda ainda salvar o planeta.

 

1988 - A última data mencionada. Straub viaja ao longo do Tibre no banco de trás de um automóvel, na companhia de Alberto Moravia. Vão a caminho da Porta Portese, em Roma. Não se lembra de quem ia ao volante, mas recorda-se do que lhe disse o escritor: “A próxima guerra será no Golfo, uma guerra planeada, programada. Falei com cinco generais da NATO, americanos e alemães. Foram eles que mo disseram.”

 

Apesar do texto ser de 2003, a enumeração das datas cessa, como se pode constatar, em 1988. Straub não deixa de sugerir, porém, que a partir de então sobreveio a derrocada da esperança, o reino da arbitrariedade. Cita Brecht fazendo falar o seu Tirésias: “ O mais quer sempre mais para no fim se transformar em nada.” E acrescenta que a mentira se tornou oficial, o rolo compressor da propaganda.

 

Manifestamente, a listagem das datas identifica sem ambiguidade um “inimigo principal”, expressão da retórica marxista mais agressiva. Fará prova de uma opção ideológica clara, subjacente a toda a obra de Straub-Huillet. Todavia, nunca arrasta os cineastas para o filme panfletário. Também não há notícia de envolvimento orgânico de qualquer deles com organizações partidárias, à excepção, eventualmente, de Huillet que teve contactos com o Parido Comunista Italiano. Tão pouco se conhecem manifestações de simpatia para com os regimes do leste europeu, ainda que Kommunisten comece com o Hino da República Democrática Alemã, o qual tem música de Hanns Eisler e letra do poeta Johannes Becher, mais tarde Ministro da Cultura. 


3. utopia, memória: Cinema. Ecrã a negro. A máxima opacidade no cinema, segundo Gilles Deleuze. Surge o título: Kommunisten. Eleva-se a música e coro de Reerguidos das Ruínas (Auferstanden aus Ruinen). Segue-se, austero e breve, o genérico. De novo o negro, a sala  fica mergulhada na escuridão até ao fim do Hino Nacional da RDA. 

 

Do negro irrompe em cut a imagem a cores, o Capítulo I do filme. É um plano fixo, filmado em diagonal, num espaço mal iluminado onde estão dois homens cujas sombras se projectam na parede. O espaço é uma sala de interrogatório. Os dois homens são presos políticos, suspeitos de pertencerem ao Partido Comunista.

 

Neste primeiro capítulo, o único inédito no conjunto do filme, Straub trabalha sobre excertos de Le Temps du Mépris de André Malraux, escrito em 1935. O livro resulta da experiência de Malraux na Indochina, entre 1924 e 1926, onde terá ganho consciência da violência da política colonial francesa, À época não foi tido em grande apreço, nem da parte da crítica nem do próprio escritor. No pós-guerra, porém, em parte devido à revelação das atrocidades nazis, em parte porque os comunistas estiveram na linha da frente da Resistência, o livro foi reavaliado, sendo-lhe, finalmente, reconhecido o mérito literário. 

 

A personagem central é um escritor comunista alemão de nome Kassner, preso num campo de concentração. Viria a ser libertado graças ao gesto heróico de um outro prisioneiro com quem, entretanto, fizera amizade. Os alemães sabiam da existência de Kassner, um elemento preponderante do Partido, mas não sabiam reconhecê-lo. O amigo, fazendo-se passar por ele, permitiu-lhe recuperar a liberdade para prosseguir a luta contra o nazismo. Nas mãos de Straub, os excertos de Le Temps du Mépris perdem o carácter de enredo, dando origem a três momentos de cinema tão intensos quanto despojados: o interrogatório, a reflexão sobre a tortura e o regresso do prisioneiro a casa.

 

No primeiro momento, o enquadramento e a iluminação difusa, bem como as marcações do espaço cénico ocupado pelos dois homens, permitem estabelecer uma relação triangular, hierarquizada, entre quem está em campo e quem não está, ou seja, aquele que é o inquiridor de quem apenas se ouve a voz. A voz é a do próprio Straub no papel de verdugo, num registo declamado, com pausas prolongadas, que intimida não pelo excesso vocal mas pelo pendor oblíquo do discurso.  Súbito, de novo o ecrã a negro, cerca de cinco minutos. A tortura não se mostra, mesmo se apenas sugerida no interrogatório. Sem imagem com a qual possa identificar a acção, o espectador fica prisioneiro na sala escura: efeito brechtiano. Cut. Imagem Estão duas figuras enquadradas de costas para a câmara, uma de pé, o prisioneiro libertado, outra sentada, a sua mulher. Ambos sofreram: “Foi terrível.” Contemplam através da ampla abertura de uma janela o mundo exterior.

 


– C’était comment?
–Terrible.
– J’avais si peur… / Ils ont accepté la fausse identité?
– Non, C’est-à-dire, pas du début. Ensuite quelqu’un a déclaré qu’il était Kassner. Je ne sais pas qui.
– Tué?
– Je ne sais pas…
C’était comment?
–Terrible.
– J’avais si peur… / Ils ont accepté la fausse identité?
– Non, C’est-à-dire, pas du début. Ensuite quelqu’un a déclaré qu’il était Kassner. Je ne sais pas qui.
– Tué?
– Je ne sais pas…

É a passagem para o Capítulo II retirado de Operários, Camponeses (Operai, Contadini), (2001). Dois homens e uma mulher estão na floresta de Buti, na região da Toscânia. Filmados à luz do dia em plano de conjunto frontal, fitando o solo, com a câmara colocada um pouco acima da linha dos olhos como se tivessem de prestar contas uns aos outros ou de reflectir com a ajuda de terceiros, eventualmente, do público. Vão ler excertos de Le Donne di Messina de Elio Vittorini, livro publicado no final de 1946, posteriormente sujeito a diversas  atualizações.

 

Primeiramente ligado ao Partido Nacional Fascista de Mussolini, do qual viria a ser expulso por tomar partido a favor dos republicanos na Guerra Civil de Espanha, Elio Vittorini juntar-se-ia depois ao Partido Comunista Italiano. Vice-director do jornal L’Unitá, em Milão, e destacado membro da resistência à ocupação nazi, foi preso pela primeira vez após a publicação, em 1941, de Conversazioni in Sicilla, um dos grandes romances do anti-fascismo italiano. Exerceu enorme influência no círculo dos escritores mais jovens, entre os quais se contava Italo Calvini. Vittorini é uma das principais referências de Straub e Huillet.

 

Os atores de Operai, Contadini são operários fabris ou trabalhadores do campo, amadores do teatro regional de Buti. No segmento de vinte minutos escolhido para Kommunisten, os protagonistas refletem sobre o pós-guerra, o que mudou nas suas vidas e aldeias. A coreografia, bem como a leitura dos textos, faz lembrar o teatro antigo, o coro grego incluído. Se o primeiro episódio do filme é sobre a Resistência, este é sobre a Mudança. Começa, aliás, com uma pergunta de um dos homens sobre si mesmo: mudado? A mudança, em função da circunstância histórica, sugere uma nova consciência. O outro homem, outrora fascista, deixou de o ser. E a mulher, lê um excerto do texto sobre a impossibilidade “de ser feliz de outro modo, de ser bom de outro modo, de ser livre de outro modo, de ser humano de outro modo.” Portanto, mudança. Duas notas: o olhar dos actores dirige-se de quando em quando para um ponto indeterminado, como se estivesse a dirigir-se à comunidade onde tudo teve lugar; há nos diversos planos múltiplas variações da luz solar, o que acentua o carácter documental da imagem. Jacques Rancière diz que o discurso dos Straub é comunista posto unir e opor, em simultâneo, dois registos poéticos: “o registo lírico, que é a expressão do comum enquanto tal, e o registo dramático ou dialético, que é a expressão do comum como estando dividido ou marcado pela divisão.”

 

O som de uma sirene. A negro. Passagem para o Capítulo III constituído por um único plano sequência de Trop Tôt, Trop Tard (1981) filmado à porta de uma fábrica no Cairo. O filme, um díptico de cunho documental, reflete sobre as condições para a Revolução, relevando o papel do campesinato. A primeira parte, rodada em França, em boa parte no campo, remete para uma carta de Friedrich Engels dirigida a Karl Kautsky. Tem narração de Danièle Huillet. A segunda parte apoia-se no texto de Lutas Sociais no Egito 1945-1970, livro assinado por Mahmoud Hussein, mas, na verdade, o pseudónimo de dois jornalistas que o escreveram em conjunto, mantendo o anonimato. Com imagens de arquivo, designadamente do presidente Nasser, o mesmo que decretara a nacionalização o canal do Suez tão apreciada por Jean-Marie Straub, o filme valoriza sobretudo as tomadas de vista exteriores nas quais a presença do vento tem forte dimensão metafórica. Serge Daney diz mesmo que nunca ninguém depois de Victor Sjostrom, em 1928, tinha filmado o vento assim. Neste caso, os ventos da História. A narração é de Bahgat el Nadi.

 

O segmento de Trop Tôt, Trop Tard escolhido para Kommunisten, não fosse a narração inicial, seria um documentário em estado puro com som diegético: câmara colocada diante do portão de uma fábrica, plano fixo aberto, trabalhadores que saem confundindo-se com o movimento das pessoas na rua. Duração, dez minutos. Momento Lumière: o real tal qual dentro do enquadramento, a afirmação do poder de interpelação do Cinema. A narração dura um minuto. Dos nove restantes, quem estiver na sala fará deles o que bem entender.

 

A fábrica no Cairo, plano Lumière.
A fábrica no Cairo, plano Lumière.

Eis o texto de Mahmoud Hussein sobre as imagens na voz de Bahgat el Nadi:

 

“Em 1919 dá-se a revolução contra o ocupante britânico. As massas rurais, desamparadas e pobres são a sua força principal, multiplicando as sabotagens às vias de comunicação e organizando inúmeros confrontos com o exército de ocupação. Os objetivos revolucionários democráticos estão ligados aos objetivos patrióticos. Formas embrionárias de poder popular vêem a luz. Eclodem revoltas armadas contra os grandes proprietários. Operários, desempregados, estudantes, lojistas, funcionários encontram-se lado a lado ao longo do ano nas ruas do Cairo e de outras grandes cidades em manifestações violentas de uma amplitude desconhecida até então. Os operários passarão a formas de luta específicas, à ocupação das fábricas e à autodefesa contra as forças de repressão.”

 

A agitação diante da fábrica egípcia dá lugar ao sossego majestoso dos Alpes Apuanos. É o início do Capítulo IV, um longo excerto de Fortini/Cães (Fortini/Cani) (1976). Baseado em Cani Del Sinai, um livro de Franco Fortini escrito em 1967, o filme é um ensaio em torno da memória e do esquecimento. Faz lembrar, ainda que num outro registo, Nuit et Brouillard (1956) de Alain Resnais. Mas também é um filme sobre a raiva de um homem que escreveu um panfleto no qual compara a perseguição dos judeus pelos nazis à perseguição movida aos povos árabes pelo estado de Israel. Fortini, ele próprio de ascendência judaica, poeta e escritor marxista, viu o pai entrar na clandestinidade. Tal como o amigo Elio Vittorini, juntar-se-ia à Resistência.

 

O filme dos Straub começa com a imagem da capa de Cani Del Sinai, uma primeira edição, amarelecida pelo tempo, que apareceu nas livrarias pouco depois da Guerra dos Seis Dias entre Israel e o Egito. Pudesse ser folheada e ler-se-ia na primeira página uma citação de Zelman Lewental, em Auschwitz, datada de agosto de 1944: “Se tu non vuoi più credere alla verità, nessuno vorrà più credere.” Nas imagens seguintes, de arquivo, a televisão pública italiana toma partido pelo estado judaico em nome do “jornalismo sério”. Depois, os  Straub mostram pessoas, aparentemente de elevado estatuto social, que optam pelo silêncio ou por evasivas quando confrontadas com o assunto. A seguir, o contraste. Montagem dialéctica.

 

Corte para os Alpes Apuanos, na Toscânia, com os quais tem início o excerto de Fortini/Cani integrado em Kommunisten: a voz de Fortini, dez segundos, um primeiro contexto; longas panorâmicas descritivas das montanhas cobertas de florestas verdejantes, raras casas dispersas pela imensidão dos montes e vales. Nem uma palavra, apenas silêncio, o vento na copa das árvores, a dada altura o rumor do riso de crianças, porventura, no recreio de uma escola perdida algures na lonjura, uma aldeia onde não se vê ninguém, uma placa evocativa, estranho sinal, mais paisagens a perder de vista. Uma sequência de dezasseis minutos. Nada parece acontecer. 

 

Todavia, deu-se ali um dos maiores massacres perpetrados pelos nazis, com a ajuda de fascistas italianos, durante a guerra. Na manhã do dia 12 de Agosto de 1944, já a Wermacht estava a ser escorraçada para o norte de Itália pelas forças aliadas, tropas da 16ª Divisão Panzergrenadier SS comandadas pelo oficial Max Simon, cercaram uma pequena aldeia da região de Sant’Anna di Stazzema. A aldeia, com pouco mais de 400 habitantes, acolhera um milhar de refugiados e desertores, e era suspeita de apoiar os partigianos. Com brutalidade inaudita os nazis mataram 560 pessoas, das quais 130 eram crianças. O terror.

 


 Fortini/Cani (1976): Jean-Marie Straub, citando Franco Fortini, fala de “um cinema topográfico e telúrico, com os Alpes Apuanos, essas montanhas de mármore, tão eternas quanto indiferentes, implacáveis, externas ao sofrimento e, ainda assim, o teatro da luta de classes.” 
Fortini/Cani (1976): Jean-Marie Straub, citando Franco Fortini, fala de “um cinema topográfico e telúrico, com os Alpes Apuanos, essas montanhas de mármore, tão eternas quanto indiferentes, implacáveis, externas ao sofrimento e, ainda assim, o teatro da luta de classes.” 

A vastidão das montanhas dá lugar à presença de Fortini, filmado em close up de perfil, depois de frente. Lê o seu livro em voz alta. As mudanças de enquadramento fazem-se através de inserts de imagens de páginas impressas, um procedimento convencional que, neste caso, o não o é. O dispositivo, pelo modo da alternância do corte, revela o homem e a sua circunstância, alguém zangado que escreveu insurgindo-se contra o apagamento da memória: “Dentro de alguns anos ninguém compreenderá o que foram a guerra do Vietname e o conflito israelo-árabe.” Alguém que denuncia o manto de irrealidade das representações dominantes, as quais, anestesiando as consciências, geram uma multidão de indiferentes. Sobre estes: “Por fim, há apenas uma notícia chocante, feroz: não estais no lugar onde acontece o que decide o vosso destino. Não tendes destino. Não tendes e não sois. Em troca da realidade foi-vos dada uma aparência perfeita, uma vida bem imitada. Andais distraídos da vossa morte, para desfrutardes de uma espécie de imortalidade. A recitação da vida nunca terá fim. Abençoados.” Portanto, alienação, segundo os marxistas. Finalmente, Fortini, de novo filmado de perfil, agradece a quantos, anónimos, combateram o nazismo tendo em mente o sonho utópico de uma ideia maior. Corte.

 

Capítulo V. Há agora, tal como na imagem da fábrica no Cairo, um longo longo plano fixo, neste caso, de oito minutos. O cenário já não é o dos Alpes da Toscânia, é o sopé da encosta do Etna, na Sicília, onde, após ano e meio de ensaios, os Straub filmaram A Morte de Empédocles: Ou Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde para Ti (Der Tod des Empedokles oder: Wenn dan der Erde Grün von neuem Euch erglänzt) (1986) a partir da primeira das três versões do poema dramático de Friedrich Hölderlin. É o momento em que Kommunisten propõe a utopia do comunismo ecológico. 

 

Hölderlin, figura cimeira do idealismo alemão, acolhe na sua poesia o espírito da Grécia antiga. Tradutor de autores clássicos como Sófocles, via o mundo como um palco no qual contínuos enfrentamentos de toda a ordem dão origem a sucessivas novas configurações. Em A Morte de Empédocles, dramatiza a recusa do filósofo de Agrigento em aceitar, por coerência, a expulsão da cidade, o que haveria de o conduzir ao suicídio pelo fogo por forma a que as suas cinzas pudessem alimentar o ciclo da vida. Segundo Empédocles, a natureza é constituída por quatro elementos primordiais: terra, ar, água e fogo. 

 

No excerto do filme dos Straub a ressonância desta filosofia é evidente. Estão lá a luz, as montanhas intemporais, mais uma vez o vento, as árvores, as nuvens, os sons das pequenas criaturas que habitam o esplendor da terra e da luz que a ilumina. São oito minutos de contemplação. Oito minutos de respeito absoluto pelas ideias e pelo texto de Hölderlin, declamado por Andreas von Rauch, que faz a exaltação da natureza. Diz Straub: "Hölderlin é citado na métrica justa. No teatro não se respeita a métrica. Os atores ligam as palavras segundo o seu sentido, em função da sintaxe. No filme, respeitámos o ritmo, a musicalidade e a métrica de Hölderlin.”

 

E assim se chega ao Capítulo VI, um segmento de Schwarze Sünde (Negro Pecado) (1989), que resulta de uma outra versão de A Morte de Empédocles. Straub vai buscar um plano belíssimo de Danièle Huillet no monte Etna, sentada no chão, imóvel como uma estátua. O espaço confere à cena algo de sagrado. Subitamente, ela vira a cabeça e pergunta: Neue Welt?

 

 NEUE WELT?
 NEUE WELT?

Obs.: Este texto foi originalmente publicado no livro comemorativo do 20º aniversário do Ciclo Imagens do Real Imaginado (IRI) organizado pela Escola Superior de Media, Artes e Design.

 

 




 

Atualizado: 6 de abr.


"Il vaut mieux rêver sa vie que la vivre, encore que la vivre, ce soit encore la rêver."

 

                                                                                                           Marcel Proust

 

 

Um belo dia, não sei exatamente quando, alguém me sugeriu a realização de um documentário sobre Mário Cláudio. Faria parte, tanto quanto me recordo, do conjunto de iniciativas pensado para as comemorações dos seus 50 anos de vida literária. Esse tipo de trabalho não me era estranho. Concedeu-me a sorte biografar para a televisão diversas figuras proeminentes da cultura portuguesa. Com todas elas, durante o processo de construção da narrativa, aconteceu, não diria algo de extraordinário, mas de relativa surpresa posto ter encontrado como denominador comum a ideia difusa, todavia inquestionável, de há muito as conhecer. Com Mário Cláudio não foi assim. Continuo sem saber bem porquê, sendo certo, no entanto, quando penso no assunto, entrever a silhueta furtiva do poeta Tiago Veiga.

 


O escritor em Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio (2016-2021) de Jorge Campos.
O escritor em Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio (2016-2021) de Jorge Campos.
Repérage em Venade, Paredes de Coura.
Repérage em Venade, Paredes de Coura.

 

Este texto reporta a essa experiência de quase quatro anos de duração, intermitente, devido a dificuldades relacionadas com a montagem do projeto, pese embora a história ter sido pensada inicialmente de modo a sugerir ocupar-se apenas de três dias consecutivos na vida do escritor. De tão dilatado período de execução resultou a necessidade, na parte final, de proceder a uma actualização em função de situações entretanto verificadas. Começarei aqui pela questão do nome do autor, depois falarei de duplos, mais ou menos oblíquos, somando referências literárias a procedimentos de índole cinematográfica. Quem souber da biografia de Tiago Veiga (2011) e tiver visto Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio poderá encontrar algum interesse no que se segue. Quem não souber e não tiver visto, também, se a interação de palavras, frases e parágrafos, associada a planos, cenas e sequências, puder de, algum modo, estimular a imaginação.

 

O documentário tem um início festivo, apesar de o ecrã surgir a negro. Em fade in, de pé e enquadrado de costas, ao centro, surge destacado o escritor. Percebe-se que escreve, saber-se-á, depois, num inseparável bloco de notas. A profundidade de campo permite identificar um coreto. Em cima do coreto uma banda. Um maestro. A música, primeiro em surdina, logo se torna exuberante. Corte para o maestro, grande plano. Corte para Mário Cláudio: grande plano.

 


Mário Cláudio e a banda no coreto.
Mário Cláudio e a banda no coreto.
O inseparável caderno de notas.
O inseparável caderno de notas.
Início: o maestro.
Início: o maestro.

 

nomes. Ao contrário de Miguel Torga e de Eugénio de Andrade, dois dos meus biografados, Mário Cláudio filho de uma família da burguesia do Porto, veio ao mundo em berço de ouro, como antigamente se dizia. Torga, o médico Adolfo Correia da Rocha, um transmontano de São Martinho de Anta, foi buscar o pseudónimo a uma pequena planta bravia, dir-se-ia invencível, dada a resiliência, abundante na sua terra natal. Tudo o que o rodeava, a começar pela confortável mas austera casa de Coimbra, era revelador de uma devoção sem limites ao propósito de escrever. Torga serve na perfeição ao escritor e ao homem que conheci. Quanto a Eugénio de Andrade chamava-se ele, na verdade, José Fontinhas e era funcionário da Segurança Social, nascido na Póvoa da Atalaia, pequena aldeia da Beira Baixa. Tinha parcos bens e habitava, na companhia de um gato, um pequeno apartamento despojado, para os lados de São Lázaro, no Porto. Ignoro a razão da escolha do pseudónimo literário que o projetou como um dos poetas mais amados, lidos e traduzidos de Portugal. A Mário Cláudio, foi dado o nome de Rui Manuel Pinto Barbot da Costa, mais tarde licenciado em Direito e com esse nome autor de um ensaio intitulado Para o Estudo do Analfabetismo e da Relutância à Leitura em Portugal (1979). Habita ele não uma, mas duas casas, uma no Porto, outra em Paredes de Coura, tão repletas de sinais reveladores de um certo estilo barroco quanto os primorosos textos saídos da sua mão. Tanto quanto julgo saber, a mudança de nome deve-se tão somente ao facto de ser outro aquele que escreve, segundo ele, mesmo quando escreve sobre si mesmo, diria eu. É aqui, não sendo pseudónimo nem heterónimo, que entra Tiago Veiga. 

 

Tiago Veiga (2011) é uma obra com cerca de 800 páginas na qual nos é proposto conhecer, finalmente, um dos nossos poetas mais notáveis, todavia, pouco conhecido, em parte, suponho eu, por vontade própria, ou não tivesse ele vivido uma vida tão singularmente tecida de sobressaltos, enganos e labirintos. Já nos primeiros anos deste século, quem pela primeira vez me falou da personagem, aliás, pouco ou nada dela sabendo, foi Manuel António Pina, numa daquelas então já raras tertúlias do Café Piolho, no Porto, onde outrora meio mundo se juntava para dar à língua sobre os motivos mais diversos, fossem eles pertinentes ou extravagantes. Referiu Pina a originalidade de Os Sonetos Italianos (2003) de Veiga, resgatados por Mário Cláudio, acrescentando ser grande a sua expectativa de saber mais sobre alguém de estatura literária possivelmente comparável à de Pessoa. A conversa ficou por aí e não pensei mais no assunto. Porém, tempos volvidos, chegou às minhas mãos a monumental biografia do misterioso Tiago Veiga - “a vida de um poeta quase desconhecido escrita por um grande ficcionista” - da autoria da única pessoa que poderia ter levado a cabo tamanha empreitada, ou seja, Mário Cláudio. 

 

De uma elegância e erudição invulgares, o livro recupera a memória histórico-cultural do século XX, com ênfase no mundo literário, levando o leitor ao encontro de muitas das suas figuras de maior relevância, justamente, pela mão de Tiago Veiga. Este, porém, sempre desconfiado de eventuais benesses que esses conhecimentos pudessem trazer-lhe, sobretudo nas Letras, mostraria desconforto no convívio com os pares, à excepção, porventura, de Teixeira Gomes, com quem privou em Londres, na juventude, embora num processo de gradual afastamento. Apesar da roda da fortuna lhe ter sido favorável nos momentos mais críticos, quando tudo parecia desmoronar-se à sua volta, o homem viveu sempre na esfera das reticências. Foi assim desde o dia em que veio ao mundo. À mãe, uma adolescente de nome Berta Maria, fizeram-na sair grávida, às escondidas, de Venade, Paredes de Coura, onde vivia, para ir parir nos confins de Castro Laboreiro, clandestina e horrendamente. Ao pai, um rapazola mal afamado, filho de Ana Plácido e de Camilo Castelo Branco, perdeu-se-lhe o rasto. E ao menino, nascido do pecado, foi dado o nome de Inácio, ao qual se acrescentaria Manuel dos Anjos, mas não o apelido paterno. Assim começou a saga de Tiago Veiga, o “infante algo bravio”, criado por duas tias na Casa dos Anjos, futuro poeta viajante de temperamento incerto, difícil para si próprio e para quem com ele haveria de lidar.

 

Tiago Veiga (2011) de Mário Cláudio: A vida de um poeta quase desconhecido escrita por um grande ficcionista.
Tiago Veiga (2011) de Mário Cláudio: A vida de um poeta quase desconhecido escrita por um grande ficcionista.
Tiago Veiga e Mário Cláudio, Galiza, maio de 1984.
Tiago Veiga e Mário Cláudio, Galiza, maio de 1984.

 

imagens, espelhos. Quando comecei o documentário sobre Mário Cláudio, logo me ocorreu ser ele renomado biógrafo, autor, por exemplo, da chamada Trilogia da Mão, na qual, em três livros, nos fala de Amadeo (1984), Guilhermina (1986) e Rosa (1988) - o pintor Amadeo de Souza-Cardoso, a violoncelista Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho, ceramista de Barcelos. Na introdução à sua biografia de Tiago Veiga, escreve: “Quem quer que se atreva à escrita da biografia de uma figura pouco favorecida pela notoriedade, e sobre a qual quase nada se sabe, sujeita-se a enfrentar um enredo de perplexidades.” Para o meu propósito de o biografar a ele, Mário Cláudio, a frase só serviria por metade. Primeiro, o favorecimento pela notoriedade nunca se colocou, visto tratar-se de um dos escritores portugueses mais prolíficos e que maior reconhecimento recolhe. Quanto ao enredo de perplexidades, aí, já a conversa é outra, ou a outra metade.

 

Bastaria entrar na sua casa do Porto para se ficar perplexo com a multiplicação de objetos meticulosamente organizados, nos corredores e nas várias divisões, tão diversos quanto: fotografias de antepassados entre as quais, há uma, desbotada pelo tempo, de Jacinta, a vidente de Fátima; brinquedos da infância como se essa fase da vida continuasse presente no dia a dia; retratos dele próprio, todos muito diferentes, segundo o olhar de artistas plásticos da sua amizade; uma infinidade de livros arrumados com critério, ocupando paredes inteiras de alto a baixo, sobressaindo, pareceu-me, À la Recherche du Temps Perdu de Marcel Proust; máscaras de Veneza alinhadas em prateleiras, eventualmente rostos dele próprio, certamente testemunhos da sua paixão por Itália; uma bela gravura de Gil Teixeira Lopes a fazer lembrar um crucifixo como se fosse uma imagem protetora colocada acima da cabeceira da cama onde dorme; uma profusão de óleos, desenhos, gravuras e serigrafias, de temática e estilo diversos, dando cor às paredes e sentido à sua volta; numerosas distinções literárias traduzidas em recortes, diplomas, estatuetas; os famosos leques com assinatura de notáveis da pintura; na sala de estar, um piano de cauda; na secretária de trabalho, imagens do amigo de sempre, Michael Lloyd, do pai e da mãe.

 

Para se conhecer a história destes últimos, pai e mãe, é preciso saber de António e Maria, personagens de Tocata Para Dois Clarins (2010), uma das minhas fontes primárias. Em 1936, em pleno Estado Novo, iniciaram eles o namoro que, quatro anos mais tarde, havia de os levar ao casamento, do qual nasceria o autor do livro. A viagem de núpcias teria Lisboa como destino. Aí se fazia a Exposição do Mundo Português, ideia megalómana de transplantar as partes do mundo colonial para Belém saída da chamada Política do Espírito do chefe da propaganda, o igualmente megalómano, todavia, genial, António Ferro, amigo de artistas futuristas, como Almada, apaixonado pelo Cinema, visita de Hollywood e autor dos maiores panegíricos sobre Mussolini alguma vez escritos na imprensa portuguesa. Dessa estadia na capital do império, da impressão nela causada, me deu conta a mãe de Mário Cláudio, uma admirável senhora, frágil, com mais de 90 anos, que encontrei ocupada à procura do lugar certo para as peças de um puzzle de grandes proporções, colocado sobre o tampo de uma mesa de estilo, onde se viam caravelas de quatrocentos em fundo azul chumbo a sulcar ondas alterosas, como se dessa busca dependesse um sentido para o mundo e não apenas o sentido de mares nunca dantes navegados. É uma das cenas do filme. Encaixaria, caso fosse possível, no puzzle que é o próprio Mário Cláudio.

 

Vive ele num edifício de três pisos entalado no gaveto de uma rua para os lados da estação do metropolitano da Senhora da Hora, lugar muito concorrido desde as primeiras horas da manhã, com composições lotadas vindas do Porto e de Matosinhos que se cruzam, anunciando, ainda envoltas nos últimos farrapos de neblina, o despertar da cidade. O escritor ocupa o último piso dessa construção de fachada pouco favorecida pelo traço, sendo visível, da rua, a janela do quarto onde dorme. Tem um novo romance na forja. Passou boa parte da noite a trabalhar nele sob o olhar atento de Eugénio de Andrade, presente em dois retratos na parede, o mesmo Eugénio de Andrade, de cujo helenismo, porventura excessivo, Tiago Veiga suspeitava, mas por quem o seu biógrafo nutria admiração e  estima. O livro viria a ser Os naufrágios de Camões (2017): “Que te importa o donde vim, e o aonde vou, se te basta conheceres que escrevo o que ninguém escreve, que invento o que ninguém inventa, e que descubro a cidade que ninguém descobre.”

 

Uma nesga de luz insinua-se através da cortinas da janela do quarto. Toca o despertador. É o início de um dia que se prevê longo. Mais logo, ao fim da tarde, Mário Cláudio vai estar na Escola Superior de Belas Artes para o lançamento de Retrato de Rapaz (2014), o seu último livro, no qual ficciona a turbulenta relação do mestre do Renascimento Leonardo da Vinci com o discípulo, singularmente belo, embora sem grande engenho, Salai de seu nome. Caberá a Alexandre Quintanilha a apresentação. Ainda mal acordado, o escritor trata da higiene matinal, arranja-se com esmero, mas sem vestígio de ostentação. Joaquim, o afilhado dedicado que tantas vezes o acompanha, vai levar o fidelíssimo cão à rua. Dona Helena, que trata da lide da casa, afadiga-se já a preparar o almoço.  A câmara de filmar acompanha a ação. Mário Cláudio sai de casa, no terceiro piso. Estamos a meio da manhã. Desce ele lentamente os degraus da escada em caracol, cujas paredes, tal como no interior da habitação, exibem pintura, havendo, ao longo delas, objetos sem função evidente, de qualquer modo, dando testemunho, uma vez mais, da vida vivida ou sonhada do biógrafo de Tiago Veiga, afinal, a condição do dia a dia dos seus dias. Detém-se diante da porta do apartamento por baixo do seu, habitado pela mãe, retira uma chave do bolso das calças que roda na fechadura, e entra. Encontra-a ocupada com o passatempo habitual, o puzzle. Troca com ela algumas palavras, inteira-se do progresso da construção, depois volta a sair. Maria da Conceição Barbot Costa contar-me-ia, então, a história da infância do seu menino, tendo os costumes do Estado Novo como pano de fundo, e, dir-me-ia, também, da educação dada ao petiz, bem como do tempo em que os namoros eram longos só se materializando em casamento depois de assegurado o indispensável e mútuo conhecimento dos namorados, sem precipitações, como acontece, diz ela, hoje em dia.


Mário Cláudio, a mãe e o puzzle.
Mário Cláudio, a mãe e o puzzle.

 

deriva. Da mãe voltaria a falar-se à noite, do seu estado de saúde, quando da visita de familiares, Luís Filipe Barbot Costa e a mulher, mas falar-se-ia, sobretudo, de Tiago Veiga, o livro. Aqui chegado, permito-me uma deriva, que é, também, uma explicação da razão pela qual não houve recurso a críticos literários ou a exegetas da obra de Mário Cláudio. Nada me move contra uns e outros. Eu próprio, em determinadas circunstâncias, fiz questão de utilizar o saber especializado, como sucedeu em Torga (1994), no qual encontrei em David Mourão Ferreira um narrador excepcional.  De passagem, porque estamos numa deriva, dir-vos-ei ter sido David Mourão Ferreira umas das pessoas mais extraordinárias que conheci. Mas, com razão ou sem ela, tendo a considerar o recurso a especialistas, enquanto método, como um risco, posto poder condicionar, quando não impor, um ponto de vista com ênfase no juízo da obra em detrimento do conhecimento da pessoa. Razão pela qual, neste caso particular, me pareceu mais adequado conversar com os amigos mais próximos e leitores dedicados, aqueles que leem os livros repetidamente, que conhecem e amam a vastíssima obra de Mário Cláudio, e ficam a aguardar, ansiosamente, pelo livro seguinte. Assim são, quer Luís Filipe Barbot Costa, jurista e primo para quem o escritor é o irmão que escolheu, quer Michael Lloyd, professor de inglês, que ao longo da vida tanto o ajudou a entender quem era. Juntando o testemunho da mãe, é, portanto, evidente a opção pelos afetos, algo, diga-se a talhe de foice, que Tiago Veiga parece nunca ter levado muito a sério, fosse pelas circunstâncias da vida pessoal, fosse por estar embrenhado na turbulência de dar corpo a uma obra incomum, a qual, de resto, se manifestaria indissociável do percurso existencial. O percurso de Tiago Veiga, certamente não por coincidência, tem numerosos pontos de contacto com o percurso do seu biógrafo, embora refractado, digamos assim, em função da distinta cronologia inerente ao tempo histórico de cada, mas, também, por causa de uma espécie de jogo perigoso a fazer lembrar a sequência do labirinto dos espelhos em The Lady of Shanghai (1947) de Orson Welles. Quando o tiroteio se instala, talvez abusivamente - e não o diria não fosse esta parte uma deriva -, vem-me à cabeça a ideia de Veiga, de certo modo, ser reflexo de estilhaços de Cláudio.

 


Luís Filipe Barbot Costa, o primo que é como um irmão e que tem Tiago Veiga como livro de cabeceira.
Luís Filipe Barbot Costa, o primo que é como um irmão e que tem Tiago Veiga como livro de cabeceira.
 Retrato de Mário Cláudio por Graça Martins em Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio.
Retrato de Mário Cláudio por Graça Martins em Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio.

 

fantasmas, sombras, júbilo. Em Astronomia (2015), livro autobiográfico dividido em três partes - Nebulosa, Galáxia, Cosmos - Mário Cláudio explora ficcionalmente a sua história de vida e fala, designadamente, da experiência da guerra colonial, nos anos 60, na Guiné, onde Veiga estivera muitos antes, integrado numa missão de saúde pública relacionada com a tripanossomíase, vulgarmente conhecida por doença do sono. O relato dessa experiência li-o como uma espécie de reverberação de fantasmas induzida, porventura, pela minha própria experiência em África, em circunstâncias semelhantes. Escreve ele reportando a si mesmo, na terceira pessoa: “Sentado à mesa metálica da sua burocrática função, analisa processos e processos que se ocupam de desastres em serviço, violações de nativas, furtos de viaturas, orgias homossexuais, e atos de insubordinação, e que propõem para as mais altas condecorações da Pátria heróis que esmagam a cabeça dos meninos no capot do Unimog, ou que espetam a faca de mato na barriga das grávidas.” Sabemos todos do que fala e de quem fala Mário Cláudio, nunca envolvido em ações militantes, todavia, atento ao mundo, exercendo o juízo crítico no plano da cidadania quando entende dever fazê-lo.

 

Está ele agora a ler, primeiro em plano geral, depois em plano próximo. A noite vai adiantada. Silêncio. A objetiva faz um travelling óptico até às cortinas entreabertas da grande janela envidraçada da sala de estar. Lá fora, o negrume. É dele que se levanta, em flashback, a ira, rara no escritor, face ao absurdo da guerra, um texto bruto, cru, associado a imagens difusas de um jovem oficial miliciano no teatro de operações que ora se dissolvem no negro ora emergem dele como se de uma fantasmagoria se tratasse.

 

Recordo que, dias antes da gravação desta cena, fora eu em visita de repérage até Paredes de Coura para para elaborar o plano de filmagens. Tal como sucedera a Mário Cláudio em Janeiro de 1962, também eu subi ao Monte da Senhora da Pena, ao volante, não de um Fiat 1100, mas de um todo o terreno coreano, para finalmente estacionar diante do portão da Casa dos Anjos, em Venade, onde Tiago Veiga habitara intermitentemente e passara os últimos anos de vida. É um casarão antigo com vislumbres de solar aristocrático, erodido pelo tempo, nele parecendo pairar a nebulosa de alguns dos mais próximos do poeta como Hellen Rasmussen, a segunda mulher, saída das brumas da Irlanda, de quem ele pouco terá cuidado. Nem dela, nem do filho de ambos. Deambulando pela casa veio-me à memória a impressão que Tiago Veiga, bem como a sua Casa dos Anjos, haviam causado a Mário Cláudio nesse dia longínquo de Janeiro de 1962 quando, pela primeira vez, se encontraram: “Fui descobrir o nosso homem naquilo que lhe servia de gabinete e biblioteca, uma ampla quadra onde se amontoavam livros e papéis, coexistindo com essa confusão de objectos heteróclitos que ajudam a detectar os picos mais notórios de toda uma história pessoal. Embrulhados em serapilheira, encostavam-se ao que sobrava de paredes rimas de quadriláteros, as quais viria eu a perceber serem os trabalhos de pintura da defunta Ellen Rasmunsen, e à toa pelas prateleiras disseminavam-se bibelots de distintas épocas, e de gosto misturado. (…) Abstendo-se de encetar o diálogo (…) Tiago concedeu-me o tempo necessário à análise discreta do seu habitat.” Foi o que  eu próprio fiz quando entrei na Casa da Ramada de Mário Cláudio, a qual, conjuga a sobriedade rural, evidência das raízes do lugar, com uma dimensão mundana encenada com intrigante imaginação, fazendo lembrar, por contraste, mas também pelo peso de uma discreta genealogia comum inscrita na pedra, a Casa dos Anjos de Tiago Veiga, a quinhentos metros de distância.    

 


No Monte da Senhora da Pena de onde se avista a Galiza.
No Monte da Senhora da Pena de onde se avista a Galiza.
Raízes seculares: Mário Cláudio e Michael Lloyd nas ruas de Tuy, na Galiza.
Raízes seculares: Mário Cláudio e Michael Lloyd nas ruas de Tuy, na Galiza.

 

É domingo. Trata-se de cumprir o último terço do filme. A meio da manhã, vai Mário Cláudio ao volante do automóvel na autoestrada que leva a Valença do Minho, lugar de passagem para Tuy, cujos restaurantes de aprimorada cozinha galega ele gosta de frequentar, não dispensando, igualmente, uma visita à Catedral de Santa Maria, com origem no românico do século XII, bem como ao Mosteiro de Santa Clara, conhecido por Convento das Clarissas ou das Monjas Encerradas para onde, após as aparições de Fátima, foi enviada a vidente Lúcia, de modo a ficar afastada do mundo. No automóvel, a seu lado, segue Michael Lloyd. A conversa recupera memórias de ambos ligadas à paixão comum pela Itália. Vai o dia enevoado, por vezes, cai uma chuva miúda. As escovas do limpa para-brisas como que pontuam o ritmo da viagem. Em frente, o asfalto molhado foge. Ao lado, são altas árvores de florestas antigas que ficam para trás. No tempo e no espaço do ecrã ouvem-se, num excerto de Astronomia, ecos de uma outra viagem: “E chega o momento do rapaz encontrar o rapaz, assim cumprindo um luminoso destino zodiacal. A efeméride desencadeia a rasura das hesitações, e o abraço da verdade, implicativo de árduas, e não raras vezes dolorosas, travessias do dia-a-dia. O outro vem dos nevoeiros nórdicos, terminado o seu percurso de aquisição das sabedorias adequadas ao futuro, realizado numa dessas medievais universidades, de muros de pedra a que as heras se agarram, de torres de relógios dourados que batem as horas certíssimas, e de borracheiras que desaguam no choro convulso, ou na fúria que se liberta pelo escaqueiramento da completa baixela.”

 

Degustados os diversos pratos do almoço opíparo numa casa de apetites em Tuy, faz-se o percurso da zona histórica numa caminhada durante a qual se fala da genealogia de Mário Cláudio, cuja antiga matriz aristocrática de proveniência diversa combina com a honrada ascendência do campo, bem como da sua obra e experiência de vida pela voz de Michael Lloyd que reitera ser o amigo um homem do Porto, crente na transcendência, em busca do sentido do mundo no absoluto do ato de escrever. O registo obedece agora a técnicas de reportagem, cruzando testemunhos, enquanto os dois homens atravessam ruas estreitas ladeadas de casas seculares até chegarem a uma porta lateral do Mosteiro das Encerradas onde Michael Lloyd vai comprar os famosos biscoitos conventuais em forma de peixe. A monja de clausura, uma das quatro ainda ali residentes, faz-se esperar. Quando chega, nunca sendo vista, entrega as guloseimas através de um pequena janela gradeada, enquanto Mário Cláudio, sentado no banco de pedra que acompanha a parede de fundo do átrio do mosteiro, toma notas, como que iluminando a penumbra. Ou produzindo sombras, não sei bem. Até porque também disso se fala em Tiago Veiga, ou fala Mário Cláudio enquanto Tiago Veiga, das zonas de maior incómodo de si mesmo, deixando antever um processo de auto análise, por vezes doloroso ao ponto de roçar a obscenidade, muitas vezes agreste por imperativo de nada ficar por dizer, assim revelando, na sua contingente humanidade, o ser complexo e vulnerável que é.

 

Michael Lloyd encomenda biscoitos conventuais a uma monja de clausura no Mosteiro das Encerradas, em Tuy.
Michael Lloyd encomenda biscoitos conventuais a uma monja de clausura no Mosteiro das Encerradas, em Tuy.
Mosteiro das Encerradas, Mário Cláudio aguarda o amigo. 
Mosteiro das Encerradas, Mário Cláudio aguarda o amigo. 

epílogo. Mário Cláudio escreve dedicatórias na página inicial de Retrato de Rapaz para envio do livro a amigos e oficiais do mesmo ofício. Segue-se uma entrevista de sete minutos, na qual aparece reclinado num canapé. A iluminação acentua discretamente um dos lados do rosto Fala, dos amigos, de ter sido amado, da mãe. A entrevista é como um apêndice criado para suprir falhas e complementar dados. A mãe de Mário Cláudio, Maria da Conceição, bem como a senhora D. Helena, que lhe tomava conta da casa do Porto, tinham, entretanto, falecido. Não chegaram, por isso, a ver o filme. Além do escritor e das senhoras mencionadas, participaram no filme Michael Lloyd, Luís Filipe Barbot Costa, Maria do Rosário Pedreira, Alexandre Quintanilha, Joaquim Luís Melo e eu próprio. Rui Spranger fez a leitura dos textos de Mário Cláudio, Dimitris Andrikopoulos compôs a partitura musical, Pedro Negrão esteve na direcção de fotografia, Alexandra Prezado e Duarte Ferreira no som e Daniela Santos no grafismo. José Alberto Pinheiro, homem dos sete ofícios, tocou vários instrumentos, fazendo, designadamente a produção e montagem. Como sempre, Mário Cláudio continua a escrever a velocidade estonteante, na linha de afinidades que junta Camilo, Aquilino e Agustina, salvaguardadas as distâncias temporais e de estilo, como faz questão de sublinhar.

 


Cartaz do filme de Daniela Santos
Cartaz do filme de Daniela Santos
Início da preparação do filme Tocata e fuga: Os dias de Mário Cláudio.
Início da preparação do filme Tocata e fuga: Os dias de Mário Cláudio.

P.S. Ao pedir-lhe uma biografia sobre a sua pessoa, ou melhor, ao exigi-la, propusera Tiago Veiga a Mário Cláudio “a realização de um reportagem da sua existência, e da sua atividade literária, tocada pela imaginação de quem assumisse a tarefa.” Acrescenta Mário Cláudio: “Isentava-se dessa maneira o poeta, contaminando-nos com tal virtude, da hipocrisia que consiste em fingir que narrativas de natureza biográfica podem aspirar ao rigor de análise, e à neutralidade da exposição, que as revele tão verificáveis como as leis de Mendel, ou a relação entre carga e descarga eléctrica.” O resultado a que se chegou em Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio, a par de algumas falhas técnicas e de hiatos narrativos, fica-se mais pelo domínio da monografia do que pelo arrojo da imaginação. Ainda assim, permitam-me dizer-vos que, para além da pertinência enquanto documento, há coisas que particularmente me agradam neste filme como aquela cena na capela da Casa dos Anjos onde o escritor e eu, com manifesta curiosidade, olhamos em volta de cima de um púlpito de talha dourada em cujo frontispício há dois pequenos, sorridentes querubins.    

 

Jorge Campos

 

Porto, Maio de 2023

 

P.S. Este texto, sem as fotos do filme, foi publicado no excelente livro A VERDADE É DE PAPEL - ENSAIOS PARA TIAGO VEIGA, organizado e coordenado por José Vieira.

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 


Adeus, até ao meu regresso (1974), um documentário sobre a vivência da guerra colonial contada por quem nela combateu ou o retrato de um País que o Estado Novo escondeu.

 

Adeus, até ao meu regresso (1974) não será dos filmes mais conhecidos de António Pedro Vasconcelos. No entanto, a meu ver, é dos mais interessantes. Exibido pela primeira vez no final de 1974, na RTP, no mesmo espaço onde durante anos passaram as chamadas mensagens de Natal dos soldados destacados nas colónias, foi o primeiro filme português a abordar a temática da guerra colonial. Se outro mérito não tivesse, esse, só por si, por razões históricas, seria bastante para o recomendar. Mas há mais. Nunca foi fácil ao cinema, em lado algum, acertar contas com o passado traumático. Há feridas que levam tempo a sarar. Lidar com elas exige criteriosa mediação institucional, absoluto respeito pelo outro. É preciso encontrar a forma certa de dizer o que deve ser dito, sem deixar espaço à ambiguidade. Também por isso, Adeus, até ao meu regresso merece ser revisitado. O cinquentenário da Revolução de Abril, ano da morte de António-Pedro Vasconcelos, é o momento adequado para o fazer.

 

Este texto obedece ao princípio da História Cultural do Cinema de tudo pôr em relação. Ha nele considerações tidas como pertinentes no sentido de urdir uma tela de fundo perante a qual os contornos do filme ganhem nova evidência, eventualmente, aclarando hipóteses e dúvidas em suspenso. Nesse sentido, o recurso à memória e ao pensamento sobre o documentário são insubstituíveis. Mas há uma outra dimensão, de carácter pessoal, igualmente pertinente, com a qual começo reportando à relação que tive ao longo dos anos com o

 

António-Pedro Vasconcelos, um cineasta com quem, dele discordando muitas vezes, tive o gosto de privar, mesmo se em contexto de turbulência. Não sei se o retrato a seguir esboçado é inteiramente justo. Corresponde, no entanto, ao intuito de lhe fazer justiça, sem iludir as questões mais sensíveis no quadro das circunstâncias partilhadas e da circunstância existencial de cada um de nós.

 

ACTO I

 

Toda a gente o conhecia por A-PV. Eu tratava-o por António-Pedro. Propenso à polémica, sempre metido na defesa de causas cidadãs, eventualmente iconoclasta, ostensivamente desafiador, contraditório, era capaz de gerar tanto ódios de estimação, por vezes ferozes, quanto amizades incondicionais. A dada altura comecei a olhá-lo como alguém que parecia viver e apreciar a sua própria personagem. Vejo-o de chapéu de aba larga, a fumar charutos cubanos, sorriso entre o amigável e o condescendente, olhando o mundo do alto do seu metro e noventa de altura como se tudo à volta fosse parte da cena de um filme realizado por ele próprio.

 

António-Pedro Vasconcelos, personagem com chapéu e charuto Fonte: Visão

Conheci-o no dia da ante-estreia de O Lugar do Morto (1984) numa das salas dos Cinemas Lumière, no Porto, à qual fui na companhia do Manuel António Pina, que fez as apresentações. Tendo Ana Zanatti e Pedro Oliveira nos principais papeis, o filme foi um sucesso quer junto do público quer da crítica, a qual, a partir de então, verdade se diga, frequentemente lhe voltaria as costas. Na altura gostei de O Lugar do Morto. Disse-lho. Agradeceu e começou uma digressão sobre o noir americano, aliás, logo interrompida, dado o número de pessoas que se foi juntando à sua volta para o felicitar. A partir daí, procurei ir vendo os seus filmes. Reconheço duas fases na sua obra cinematográfica.

 

 

Na primeira, influenciada pela estadia em Paris nos anos 60 do século passado, é evidente a presença da Nouvelle Vague. Cabem filmes como Perdido por Cem (1973), Adeus, até ao meu regresso (1974), Oxalá (1980) e o já mencionado O Lugar do Morto, dir-se-ia que uma obra de transição. Revemos aqui o bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian no curso de Filmografia da Sorbonne, o frequentador assíduo da Cinemateca Francesa e o leitor compulsivo dos Cahiers du Cinéma - ele próprio viria a ser um crítico acutilante em O Diário de Lisboa e na revista Cinéfilo dirigida por Fernando Lopes.

 

Na segunda, iniciada com Jaime (1999), vencedor da Concha de Prata do Festival de San Sebastian, aproxima-se da narrativa clássica procurando fazer filmes para o grande público. Opta pela estratégia do cinema de género. Entre outros, há títulos como Os Imortais (2003), Call Girl (2007), Os Gatos não têm Vertigens (2014) e Parque Mayer (2018). Tratam fundamentalmente da realidade portuguesa, mas não deixam de citar movimentos como o neo-realismo italiano, em Jaime, ou cineastas como Jean Renior em Parque Mayer. Nesta fase, fez alguns dos filmes mais vistos em sala em Portugal. O modo como os defendeu e se posicionou perante os seus pares, mais próximos da política dos autores, e perante a crítica, por vezes demolidora, deu origem a um afrontamento com impacto na definição dos caminhos e das políticas do Cinema e do Audiovisual. Dessa veemência e determinação, frequentemente revertidas em contundência e provocação, tenho

 

boas recordações. Estivemos do mesmo lado da barricada em múltiplas causas cívicas, por exemplo, aquando das tentativas de privatização do serviço público de televisão ou da entrega da TAP a interesses privados. Noutras ocasiões, batemos de frente. Foi o caso do Acordo Ortográfico, designadamente quando voltou a ser discutido na Assembleia da República. Sendo eu, na altura deputado, favorável, embora com reservas, passou ele muitas horas a tentar convencer-me a mudar de opinião. Facultei-lhe basta documentação, designadamente pareceres de linguistas, os quais para alguma coisa terão servido, posto que acabaria por me dizer que “às vezes, os linguistas são gente complicada”. De seguida, voltava com redobrada energia àquilo que dizia ser um dos combates da sua vida. Ficou desagradado com a minha intervenção no Plenário. Garantiu-me que haveria de vencer aquela batalha.

 


Com o Cinema passou-se algo de semelhante. Protagonista do Novo Cinema Português, apesar de apenas ter chegado à realização de uma longa-metragem, Perdido por Cem, em 1973, foi convidado regular dos cursos de Cinema por mim orientados ao longo dos anos, bem como dos ciclos de Programação a eles associados. O mesmo sucedeu na Odisseia nas Imagens do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, da minha responsabilidade, durante a qual algumas das suas participações, por razões diversas, ainda hoje são lembradas. Por exemplo, na retrospectiva integral dedicada a Luchino Visconti tratou de o demolir, não se coibindo de lhe chamar “um costureiro” devido, entre outras razões, à orquestração barroca dos filmes, designadamente em termos de adereços, música e guarda-roupa. Salvou, no entanto, a fase neo-realista do cineasta italiano.

 

Noutra ocasião, também em 2001, no ciclo Os Lugares da Imagem que teve participação, entre outros, de Margarida Ledon Andión, Juan Fontcuberta e Román Gubern, fez uma apresentação exaustiva sobre As Novas Tecnologia e o Futuro da Ficção. Segundo ele, podia ler-se a História do Ocidente “como uma ficção ininterrupta que nasce com a Bíblia, os poemas homéricos, a mitologia e a tragédia gregas, e se prolonga, a partir do Humanismo, até ao século XX.” Ao longo de duas horas dissertou sobre os altos e baixos desse percurso, sobre os episódios de esplendor e obscurantismo, o silêncio ou silenciamento dos artistas, os momentos de ruptura criativa, enfim, sobre a “História da ficção no Ocidente, que se transmite de século em século, de um centro civilizacional para outro: Florença, Roma, a Inglaterra de Isabel I, a corte de Luís XIV, a ópera italiana, finalmente Hollywood.” Afirmava, a concluir, que o século XXI, em função das tecnologias dominantes, nascia sob a ameaça de um corte radical com essa tradição de artistas e heróis enquanto seres fora do comum:

 

“A televisão, ao dispensar o autor-demiurgo e ao considerar que qualquer indivíduo é portador de uma ficção, ameaça pôr fim a essa cadeia de mais de 2.000 anos. Le cinéma c’est la mémoire, la télévision c’est l’oubli, disse um dia Godard. Estaremos perante uma revolução, que se poderia traduzir pelo fim do Humanismo, ou apenas perante uma crise transitória dos valores que fundaram, para além de todas as rupturas, a nossa civilização? Será que, como disse Valéry, les civilisations sont mortelles?”

 

Ao contrário do que poderia inferir-se à conta da citação de Godard, António-Pedro Vasconcelos nunca voltou as costas à televisão. Desde logo, o seu interesse pelo audiovisual ia além das questões relacionadas com o discurso e a narrativa. Preocupavam-no, igualmente, as políticas para o sector. A convite de Santana Lopes, então Secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, assumiu a presidência do Secretariado Nacional para o Audiovisual, criado em 1990. Segundo dizia, só aceitara o cargo após aprovação pelo titular do governo de um documento estratégico elaborado por ele próprio. Em 1993, bateu com a porta por discordar na nova Lei de Bases. Mais tarde, o comissário europeu João de Deus Pinheiro atribuiu-lhe a tarefa de presidir ao grupo de trabalho encarregado da elaboração do Livro Verde para a Política do Cinema e Audiovisual Europeu. Achava aliciante, por outro lado, a possibilidade de explorar a narrativa televisiva. Ouvi-o, a propósito, elogiar Rosselini. Não só apreciava nele a rugosidade, as pequenas imperfeições que tornavam os seus filmes poderosos, mas também as suas expectativas sobre a televisão, a qual, a partir de determinada altura, o cineasta italiano acreditou ser um veículo privilegiado para dar a conhecer a História da Humanidade.

 

A partir de 2015, pertencendo ele a uma Associação de Realizadores, tivemos longas conversas na Assembleia da República - e fora dela - sobre o financiamento do Cinema e do Audiovisual. Sendo um conhecedor profundo do cinema português, era capaz de ser extremamente contundente não se coibindo, estabelecendo comparações, de lançar ataques ferinos aos seus opositores mais próximos do cinema autoral. Frequentemente avançava argumentos respaldados no passado. Um dia - refiro-o porque o disse publicamente - acusou-os de terem mentalidade de Estado Novo visto só quererem financiar um determinado tipo de filmes. A réplica da outra parte não era mais simpática. Havia quem se lhe referisse como o António Lopes Ribeiro do regime. De passagem, ia-me dizendo incorrer eu no risco de também só querer fazer um tipo de filmes, mas nunca senti da sua parte qualquer acrimónia. De resto, dei sempre as nossas conversas como tempo produtivo. Ouvi-lo era como fazer o percurso dos últimos 50 anos do cinema em Portugal, tomar conhecimento de viva voz de um ponto de vista, o seu, sobre episódios que mapearam o passado dos caminhos do presente. Sempre gostei do modo como ia à luta, bem como das longas derivas durante as quais simplesmente falávamos de cinema. A propósito, ao contrário de Rosselini, um dos seus preferidos, não sei se por convicção ou provocação, dizia desde há alguns anos, cobras e lagartos de Godard. Nunca mais fez um filme de jeito a seguir aos primeiros tempos da Nouvelle Vague, dizia ele. Truffaut, pelo contrário, encontrara o caminho certo. O Godard está muito presente nos teus primeiros filmes, em Perdido por Cem, argumentava eu, em

 

Adeus, até ao meu Regresso… era um bom ponto de partida para puxar a fita atrás e fazer a demonstração, recuperando episódios e nomes de filmes, de que o cinema dele, António-Pedro, cumpria uma linha de coerência inatacável. Considerava-se um cineasta comprometido, todavia, mal-amado. Para ele, Call Girl (2007) era o mais político dos seus filmes, porém, incompreendido. Volta e meia, investia contra a crítica. Essa estupenda energia está plasmada de forma feliz no título do documentário de Leandro Ferreira e Pedro Clérigo sobre a sua vida e obra: Um índio em pé de guerra (2019).

 

O jovem António-Pedro Vasconcelos Fonte: Observador

 

Em 1974, logo após a Revolução, o índio, tal como tantos outros cineastas, participava no movimento de mobilização, sem paralelo, a favor de um cinema liberto das algemas do passado. Muitos eram da geração de 60 ligados ao Novo Cinema Português. Outros, como José Álvaro Morais, assistente de realização em Adeus até ao meu regresso, viriam a afirmar-se como referências da geração seguinte. Dessa mobilização transformadora assinala-se, como faz, entre outros, José Filipe Costa, um momento seminal, simbólico. É a manifestação do dia de 29 de Abril, em Lisboa, à qual se juntou gente do Teatro e das actividades culturais, que fez o percurso entre o jardim do Príncipe Real, onde ficava a sede do Sindicato dos Profissionais de Cinema, e o jardim de São Pedro de Alcântara, lugar do Instituto Português de Cinema. Nesse itinerário reconhecia-se, igualmente, a memória de episódios relevantes. João César Monteiro, por exemplo, filmara Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971), no Príncipe Real, e António Lopes Ribeiro A Revolução de Maio (1937), em São Pedro de Alcântara.

 

Com Fonseca e Costa, Seixas Santos, Fernando Lopes, Luís Galvão Telles e Lauro António à frente da manifestação, os cineastas exigiam a exibição de filmes portugueses e estrangeiros proibidos pela censura, não deixando de proclamar a motivação política que os animava. De cunho marcadamente ideológico, essa motivação levaria à formulação de um conjunto de requisitos considerados fundamentais para fazer do cinema uma alavanca revolucionária. Entre as várias medidas que então se perfilaram, destacavam-se a criação de Cooperativas de Produção subordinadas ao Instituto Português de Cinema, assim como o incentivo à produção de documentários por se entender ser esse o modo de melhor servir o propósito de reflectir sobre os problemas e contribuir para a sua resolução. Ambas as medidas viriam a revelar-se importantes. Contudo, mesmo tendo em conta a circunstância portuguesa, nenhuma delas era original. Ambas incorporavam, como, de resto se impunha, a 

 

memória documentário de outras experiências. Em tempo de crise, fosse em países europeus fosse fora da Europa, o cinema documental foi recorrentemente encarado no plano cultural tanto como ferramenta de informação e esclarecimento, quanto de propaganda e condicionamento. A outro nível, no plano estético houve sempre um movimento pendular, dialéctico, em torno do essencial, ou seja, entre o que seria a pulsão jornalística ditada pela urgência de responder à emergência do momento, por um lado, e o trabalho de criação, a poética, sem o qual pouco ou nada sobra do Cinema, por outro. O primeiro exemplo desta clivagem encontra-se de forma exuberante no movimento documentarista britânico criado pelo escocês John Grierson no final dos anos 20 do século passado.

 

Foi Grierson, por razões ligadas à propaganda do Império, quem propôs fazer do filme documentário um elo entre a metrópole e as colónias, foi ele quem alertou para a necessidade do chamado “tratamento criativo da actualidade”, portanto da aproximação ao real através da arte, mas também foi ele quem, após o advento do cinema sonoro e a expansão das actualidades cinematográfica, relegou o belo para segundo plano considerando o documentário anti-estético por natureza. Durante a II Guerra Mundial, inclusivamente, foi o responsável de newsreels do National Film Board do Canadá, aliás, igualmente, fundado por ele próprio. Com diferentes matizes, este tipo de contradições foi recorrente ao longo do século XX. Meros exemplos, na América rooseveltiana com os chamados filmes de mérito de Pare Lorentz, mais tarde, sob a batuta do lendário Edward. R. Murrow, da CBS, quando o documentário jornalístico se impôs na televisão e, reportando ao que nos ocupa, fazendo-se sentir, inevitavelmente, diria eu, em boa parte da impetuosa produção que se seguiu ao 25 de Abril. 


António-Pedro Vasconcelos, em rodagem

Cineastas do Novo Cinema Português foram bolseiros, nos anos 60, em França e em Inglaterra, tendo, por via dessa experiência, noção dos contornos do debate em torno do cinema do real. Nos últimos anos do Estado Novo, quando começaram a formar-se as cooperativas de autores em torno do Centro Português do Cinema, a maioria assumiu explicitamente o compromisso de defender o cinema como arte. Uma das primeiras cooperativas a manifestar-se nesse sentido foi justamente a integrada por António-Pedro Vasconcelos bem como, entre outros, por António Macedo, Seixas Santos, Paulo Rocha; Henrique Espírito Santo, Fernando Lopes e Fonseca e Costa. Mas uma coisa é estar ciente das armadilhas do documentário. Outra é conseguir evitá-las. E o que aconteceu nos dias seguintes ao colapso do fascismo foi algo de imprevisível a todos os níveis e, também, no plano da linguagem.

 

ACTO II

 

Nos grandes centros urbanos, como Lisboa e Porto, gerou-se uma dinâmica social incontrolável. Um caudaloso rio de povo desaguou na rua. O mesmo aconteceu com os profissionais do cinema e do audiovisual. Começaram a filmar furiosamente, a registar tudo, fazendo do povo protagonista e do documentário a ferramenta para interpelar o presente e iluminar o futuro. As Armas e o Povo (1975), assinado pelo Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, talvez seja o filme que melhor ilustra esse tempo. Rodado entre o dia 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974 com a colaboração de vários realizadores e técnicos portugueses, teve Glauber Rocha, figura cimeira do Cinema Novo Brasileiro, no papel de entrevistador. Dando asas à improvisação, batendo de frente com o real, As Armas e o Povo é um documento de valor histórico incomparável. Está lá o espírito do 25 de Abril. Nesse filme, como em grande parte da produção subsequente, a urgência de mostrar e reportar ou excedeu a preocupação estética ou cruzou-se com ela. A experiência do lugar, a participação militante, haveriam de marcar profundamente os caminhos do documentário português. Adiante surgiriam filmes que me atrevo a qualificar de património comum. Entre eles, Bom Povo Português (1981) de Rui Simões, um cineasta conhecedor da melhor tradição do documentário.


As Armas e o Povo (1975) do Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica do qual António-Pedro Vasconcelos fez parte ao lado de cineastas como Fernando Lopes, António da Cunha Telles, José Fonseca e Costa, Alberto Seixas Santos e outros mais.  

A imagem da Revolução que correu mundo foi a de um soldado com uma criança e

 

um cravo vermelho no cano da espingarda. Obra de militares, os mesmos que após treze anos de uma guerra colonial cruenta puseram termo a um regime cegamente fechado ao mundo, a Revolução revelou-se exultante, colorida e, dados os antecedentes, singularmente pacífica. Tornou-se evidente o anacronismo de quem fazia a hagiografia da guerra. Alargou-se o fosso existente entre a proclamação oficial da bondade da missão justificada pelo passado mítico, abençoada pela Igreja, e a percepção da vivência dos soldados no dia a dia da frente de combate, sem noção, muitas vezes, do que andavam a fazer. As guerras têm destas coisas. Há quem as mande fazer em nome de uma qualquer transcendência e há quem as faça, no concreto, matando e morrendo. Entre os que as fazem, todos mudam. O combatente passa por uma metamorfose. Pode até vir a ser um assassino por gosto. Ou mergulhar sem regresso na loucura. Mas, aqueles cujos familiares são enviados para a guerra também mudam. Assistem à desagregação do tecido social onde, mesmo em circunstâncias adversas de pobreza, se tinham habituado a labutar e viver em comunidade. Sofrem um abalo emocional como, de forma contida, mostra António-Pedro Vasconcelos em Adeus, até ao meu regresso.

 

Dos anos 60 até o fim do regime, a RTP emitiu as chamadas mensagens de Natal dirigidas às famílias, na metrópole, como então se dizia, dos combatentes na Guiné, Angola e Moçambique. Alinhados em longas filas, os soldados avançavam para a câmara de filmar e, diante dela, em poucos segundos, identificavam-se, garantiam estar de boa saúde, despedindo-se, de seguida, com um até breve. Tudo a despachar, som síncrono, sem outra edição que não fosse a determinada pela duração das bobines utilizadas pelas máquinas de 16mm. Por vezes, soldados que apareciam nas mensagens de Natal ou já tinham falecido ou encontravam-se feridos ou estropiados.


Manuel Gomes Ferreira em Adeus, até ao meu regresso (1974) entre a mensagem de Natal do arquivo da RTP e a memória insustentável da guerra colonial.

 

Nem o Governo, nem as Forças Armadas e, muito menos, a RTP e quem nela mandava, pareciam dar-se conta do efeito contraditório dos programas. Se tinham um conteúdo manifesto, como é óbvio, tinham, também, como deveria ser igualmente óbvio, um conteúdo latente. Numa sociedade asfixiada por práticas censórias, na qual pouco se falava da guerra ou, se falava, era para veicular um ponto de vista estritamente oficial, as mensagens de Natal poderiam trazer algum conforto às famílias dos soldados, mas não deixavam de suscitar legítimas interrogações como se o dado a ver fosse a ponta de um inquietante icebergue de proporções desconhecidas. Com efeito, a cada um daqueles homens que falavam para os seus, mas eram vistos e ouvidos por todos, correspondia o afecto de dezenas, porventura, centenas de pessoas, numa rede de relações espalhada por um território no qual cabiam centenas, porventura, milhares de lugares e aldeias onde silenciosamente pesavam a incerteza, a ausência e o luto.

 

António-Pedro Vasconcelos foi ao encontro desse país ignorado. Localizou ex-combatentes protagonistas das mensagens de Natal, encontrou-os absorvidos nas actividades do dia a dia procurando readaptar-se à vida civil, falou com eles, certificou-se do quanto a guerra colonial os tinha marcado, a eles e aos seus, e descobriu histórias cujo potencial dramático permitiam trazer à superfície quer a complexidade do presente de então, em 1974, quer da guerra que ceifara a vida de tantos. Escolheu, um pouco ao acaso, segundo diria, aqueles cujas experiências melhor se coadunavam com o seu documentário. Rodado em 16mm, a preto e banco, com uma equipa reduzida, como era e continua a ser habitual, Adeus, até ao meu regresso mostra a guerra colonial praticamente sem iconografia correspondente. Salvo em curtos excertos recuperados dos arquivos, nos quais os soldados, ao dirigirem-se às famílias, aparecem em uniforme de combate, tudo o mais tem de ser imaginado em função dos testemunhos, do modo como a câmara de filmar prescruta a paisagem dos rostos e capta o essencial da atmosfera onde 

 

as personagens do filme se movem. Alberto da Costa Maia, o primeiro interveniente, foi para a Guiné em 1969. Terminada a missão regressou a Portugal. Enquanto esteve em África teve um pequeno problema, palavras suas. O seu pelotão foi alvo de ataque da guerrilha e ele, tomado de pânico, desatou a fugir mato fora. Perdeu-se. Só foi recuperado pelos companheiros de armas no dia seguinte. Tem agora emprego numa unidade de abastecimento da Força Aérea. Não sabe se há-de lamentar ou não a perda das “províncias ultramarinas”, mas diz-se contente pelo fim do sofrimento dos pais que viam os seus filhos partir. Ele não tem pai nem mãe, gostaria de os ter. Espera que o futuro seja melhor para todos.

 

Alberto da Costa Maia, o jovem que gagueja, na fulgurante introdução de Adeus, até ao meu regresso (1974), poderosa metáfora sobre as hipóteses da Revolução.

É esta a introdução, um plano sequência de dez minutos suturado com a exposição rápida dos cartões de uma breve ficha técnica. Alberto é ainda muito jovem, não terá mais de vinte e poucos anos. Parece um adolescente. É dele o close-up inicial feito pelo operador Michel Ognier que há-de manter a câmara ligada para a imagem abrir permitindo o enquadramento do local, a base onde chegam os aviões que vão buscar os soldados às colónias, deslocando-se, depois, em lenta panorâmica em direção ao céu aonde se vislumbra, ao longe, a presença de mais um avião, e voltar a Alberto em grande plano e depois em zoom out a plano médio de modo a que o avião que vai aterrar fique enquadrado. Alberto revela enorme candura. Tem uma gaguez acentuada que o obriga a longas pausas antes de reiniciar a fala intermitente em busca da melhor forma de se exprimir. As pausas são integralmente respeitadas, sem cortes. Hesitante, Alberto dá a sensação de ficar à deriva. Acentua-se a presença do som do avião a fazer-se à pista captado por Jorge Loureiro. O avião aterra. Ouve-se, então, a voz de António-Pedro Vasconcelos a dizer mais ou menos isto. É o dia 14 de Outubro de 1974, uma tarde de domingo, são 16h00, acaba de aterrar o avião que traz de volta os últimos soldados portugueses que combateram na Guiné. Prossegue esclarecendo o seu propósito de fazer, não um ensaio sociológico, mas, tão somente, um retrato “à la minute” sobre quem viveu a guerra e sofreu os seus efeitos dela.

 

O texto escrito, bem como a leitura, são Nouvelle Vague, anos 60, Paris. O mesmo sucede com a câmara de filmar ao promover o realismo das cenas. E, ainda, na liberdade para improvisar quando falam os protagonistas, dando-lhe tempo e espaço. Como em Perdido por Cem (1973), o texto é lido de forma rápida, à semelhança do que faz Jean-Luc Godard em alguns dos seus filmes. Sendo curto e de mera contextualização, evita, a armadilha do jornalismo televisivo. Há dois elementos cuja importância para a significação são determinantes: o que é dito e a voz que o diz. A voz, ao dizer, pode introduzir uma ordem discursiva extra diegética caso se sobreponha à imagem por alegada necessidade de informação. Ora, quando a semântica do texto escrito prevalece sobre a lógica das imagens, passa a ser ele, texto, a determinar a organização de sentido. Verifica-se, então, um fenómeno de inversão da prioridade dos significantes, de resto, tão presente em documentários clássicos posteriores ao advento do filme sonoro. Essa voice of God tomaria conta do jornalismo de televisão. Em Adeus, até ao meu regresso, nada disso acontece. Voz e texto são coerentes com o estilo do filme. O dispositivo do plano sequência inicial é, aliás, recorrente, reforçando a coerência da narrativa. Imagens de arquivo dão passagem para

 

António Baptista, o dado como morto em combate de Adeus, até ao meu regresso (1974), a mãe e a noiva que deixara de o ser para voltar a sê-lo ou o absurdo de um episódio trágico com final feliz, todavia ainda incerto pelo que se lê na paisagem dos rostos.  

    

O Morto Vivo, a primeira das duas partes do documentário. António José Silva Baptista, o morto vivo, aparece nas mensagens de Natal. A sua história é como segue. Em serviço na Guiné, sai manhã cedo para uma operação militar. A 12km do quartel um ataque dos guerrilheiros faz vários mortos. Alguns corpos ficam carbonizados. António escapa com vida, mas é feito prisioneiro pelo PAIGC. Levado para Conacri perde contacto com os seus. Ao identificarem as vítimas, algumas irreconhecíveis, os camaradas de armas dão António como morto. A família recebe um corpo e faz o seu funeral. A noiva, uma operária fabril, procura começar nova vida. Quando António regressa, após a Revolução, a vida recomeça. Mas já não é a mesma vida, é outra. Tudo mudou. Novas mensagens de Natal introduzem

 

Adeus, até ao meu regresso (1974), testemunho de pais que perderam o filho na guerra, tristeza e luto em cenário revelador da origem social de uma família de gente trabalhadora.

 

Os Mortos e Os Vivos, a segunda parte. Os vivos regressados procuram os familiares dos mortos de quem foram amigos. Alguns sofrem de distúrbios mentais causados por sentimentos de culpa. Um escapou a uma missão e o amigo que o substituiu morreu numa emboscada. Os familiares dos mortos nunca superaram as perdas. Entre os vivos, alguns já reintegrados, há opiniões ambivalentes em relação às colónias. Estão satisfeitos com o fim da guerra. Mas, perguntam-se sobre o que por lá andaram a fazer. Uns lamentam o rumo da descolonização posto entenderem que os sacrifícios feitos não foram tidos em conta. É o caso de Fernando Silva, enquadrado em plano médio no local de trabalho, uma pequena fábrica de estofos. Fernando não queria ter perdido as colónias, pelo menos, não daquela maneira. Corte. Grande plano de Marcelo Caetano, material de arquivo. Marcelo fala do sangue derramado, a semente do futuro, da honra dos caídos que não pode ser traída, da integridade do Portugal continental e ultramarino.  Corte.  Marcelo deposita uma coroa de flores na campa de um soldado. Corte. A réplica vem de outros combatentes como o Chinês, também estofador de móveis, e Fernando Oliveira Amoroso, operário nos estaleiros da Lisnave, palco de algumas das lutas sindicais mais virulentas pós-25 de Abril. A guerra abriu-lhes os olhos, fê-los ganhar consciência política encaminhando-os para a luta de classes anti-capitalista e anti-imperialista. A imagem final, na Lisnave, mostra dois dos antigos combatentes filmados de costas, afastando-se da câmara, porventura, rumo a um futuro tornado intemporal pelo congelamento do plano. Voltarei ao assunto, para terminar, mas não antes de introduzir algumas considerações e uma

 

deriva sobre cinema e guerra. Respeita esta última à dificuldade, tantas vezes sentida pelo cinema, em encarar questões traumáticas em consequência de constrangimentos de vária ordem. Recupero, a título de exemplo, o que ficou conhecido como a guerra tabu dos italianos. As considerações serão do âmbito da singularidade da Revolução portuguesa, a qual permitiu ultrapassar problemas de representação agudamente sentidos noutros tempos e lugares.  

 

Um dos acontecimentos históricos menos tratados na literatura e no cinema da Itália foi a I Guerra Mundial. Com um saldo trágico de 600 mil mortos, uma legião de estropiados e outra, ainda maior, de soldados desmobilizados sem saber o que fazer da vida, gerou-se um sentimento de humilhação nacional. Para mais, tendo estado do lado dos vencedores, o país não obteve as compensações julgadas devidas, designadamente a anexação dos territórios limítrofes do Império Austro-Húngaro. Mussolini soube explorar o descontentamento, terreno fértil para a ascensão do fascismo. Também ele estivera nas trincheiras onde ganhara, ou forjara, a aura do combatente inspirador, modelo de masculinidade que os jovens da nação deviam seguir. Ferido em combate, foi condecorado pelo rei com pompa e circunstância. Desmobilizado, voltou ao jornalismo e tratou de fomentar o caos. Fez dos Fasci Italiani di Combattimento, criado, em Mião, a 23 de Março de 1919, o seu braço armado. Dois anos mais tarde fundou o Partido Nacional Fascista.

 

O Duce prestou especial atenção ao cinema. Percebendo a sua importância ao serviço da propaganda, criou, com a colaboração do filho, Vittorio Mussolini, um cinéfilo, a Cinecittá e o Festival de Veneza. Investiu fortemente em jornais de actualidades cinematográficas o que, aliás, seria copiado no Portugal de Salazar. Segundo a investigadora Carlota Ruiz, a guerra, tal como é tratada em diversos filmes italianos então produzidos, nunca existiu.  Passava-se em contextos totalmente deslocados da realidade. Surgia como uma atividade sagrada, intemporal, e os soldados eram retratados como mártires a viver a espiritualidade de uma causa patriótica. Heróis, diga-se, criados pelo próprio cinema, subliminar ou explicitamente associados a Mussolini. Exemplo desse imaginário é Maciste, criado para um peplum de Giovanni Pastrone com argumento do excêntrico poeta Gabriele D’Annunzio. Entre 1915 e 1927, foram feitos 26 filmes de Maciste, todos interpretados por Bartolomeo Pagane. Posteriormente, o herói continuou a ser declinado em múltiplos desdobramentos surgindo, até, em tempos históricos espaçados de séculos.

 

Como se sabe, uma das funções do mito é a ocultação. Na Itália, serviu para esconder o trauma coletivo dos italianos em relação à I Guerra Mundial, considerada um suicídio de massas. Centenas de milhares de pessoas, mal armadas e mal preparadas, tinham sido enviadas para um massacre. Regra geral, eram pobres. E para quê? Os diversos poderes subsequentes nunca quiseram acertar contas com esse passado, prevalecendo um insanável sentimento de culpa transversal a toda a sociedade. Imobilizando-a. A situação não deixa de ser peculiar, tanto mais que os efeitos da II Guerra Mundial foram escalpelizados sem condescendência pela literatura e pelo cinema do neo-realismo italiano. Terá a diferença de tratamento resultado de a Itália ter sido uma vencedora humilhada na primeira guerra e uma derrotada sem glória na segunda? Talvez. A verdade é que foi preciso esperar 30 anos por um filme que metesse mãos à obra. A história não acaba aqui.

 

Mal houve conhecimento da intenção de realizar esse filme sempre adiado, gerou-se amplo movimento de protesto. Procurou alterar-se o argumento. Falharam financiamentos. Obstaculizou-se a rodagem. Por fim, contra ventos e marés, surgiu A Grande Guerra (1959) uma comédia amarga de Mario Monicelli, com dois dos mais populares actores italianos da altura, Alberto Sordi e Vittorio Gassman. Elogiado por uns, trucidado por outros, em partes iguais, o filme acabaria por receber o Leão de Ouro, em Veneza, ex-aequo com General Della Rovere (1959) de Roberto Rosselini.


Marcelo Caetano ou o sangue derramado, imagem de arquivo em Adeus, até ao meu regresso (1974).

 

ACTO III

 

O exemplo da guerra tabu dos italianos contrasta de forma absoluta com o facto de, apenas meia dúzia de meses após o dia inicial de Abril, ser exibido um documentário sobre

 

a guerra colonial portuguesa, também ela profundamente traumática. Milhões de pessoas assistiram pela televisão a algo de impensável, nos antípodas das mensagens do Natal dos anos anteriores. Certamente, o caudal vertiginoso da produção cinematográfica da época terá contribuído para Tal. Só a cooperativa Cinequanon fez mais de 50 filmes. Todavia, não pode ignorar-se que os militares da Revolução foram os mesmos que durante 13 anos combateram na guerra colonial. Fizeram a Revolução para acabar com ela sabendo não haver outra solução que não fosse uma solução política. Foi uma luta titânica. A guerra era um epifenónemo. Em torno dela, o Estado Novo criara uma retórica intransigente. Considerando-se legitimado para levar a cabo uma ação civilizadora em África, exibia a sua galeria de heróis míticos, ostensivamente. Na zona mais importante de Lourenço Marques, por exemplo, erguia-se uma monumental estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque, um militar tido como pacificador de Moçambique e glorificado no cinema por Jorge Brum do Canto em Chaimite (1953). Parafraseando António Lopes Ribeiro havia um feitiço do Império. De uma maneira ou de outra, dificilmente se lhe escapava, justamente, por causa do lastro cultural.



Extraordinário foi esse peso histórico, bem como a dolorosa experiência dos combatentes, não ter impedido que se falasse da guerra abertamente, ou quase. Porquê? Por uma razão simples. À época, a relação de forças era francamente favorável aos sectores progressistas dentro das Forças Armadas. E as Forças Armadas tinham uma aliança com o povo que nelas maioritariamente confiava. Há uma outra razão não negligenciável. As tecnologias do cinema, bem como da comunicação, de um modo geral, já permitiam uma mobilidade, flexibilidade e velocidade de circulação incomparavelmente superiores às existentes na primeira metade do século passado, por exemplo, no tempo da guerra tabu italiana.  Acrescentaria, ainda, sob reserva, a necessidade de exorcizar fantasmas, de justificar a razão pela qual os militares tinham escolhido o caminho da paz. Também por essa razão, em Adeus, até ao meu regresso, de certa maneira, fica

 

Em Adeus, até ao meu regresso (1974) Fernando Amoroso, entre dois camaradas dos estaleiros da Lisnave, não entende como ex-combatentes possam ser desfavoráveis à independência das colónias, algo que já defendia durante a guerra, na Guiné, em aerogramas para a mulher.  

 

o mundo virado do avesso ou, se quisermos, o ocaso de uma determinada ordem dá lugar à madrugada de uma ordem nova. Um filme pode ser lido de muitas maneiras. Ao longo dos anos, nós mudamos e os filmes mudam connosco. Mencionado nos Cahiers de Cinéma como sendo de referência no âmbito do documentarismo português, vejo assim, hoje, o filme de António-Pedro Vasconcelos. O plano-sequência inicial é fulgurante. Transita da denotação para a conotação. Alberto da Costa Maia, o gago, com o seu esforço para falar, sugere a Revolução a dar os primeiros passos, tacteando, à procura do melhor caminho. Está num lugar de partidas e chegadas, o céu como limite. Há nele, no entanto, as mesmas dúvidas e incógnitas das demais personagens que viram o seu mundo dar uma volta por causa da guerra colonial. Esse mundo, escondido pelo véu de enganos do Estado Novo, é revelado. Há vivos e mortos. Memórias inquietas, histórias implausíveis, momentos de superação e catarse. Para as contar, o cineasta organizou a narrativa em três actos ou não tivesse sido ele a proclamar a ficção como sua principal preocupação. Apresentadas as personagens, deixa-as ganhar densidade dramática. Encena situações. As imagens de arquivo das mensagens de Natal são pontos de viragem. No excerto do discurso de Marcelo Caetano condensa a evidência da necessidade de derrubar o regime. No final, a solução encontrada prende-se com a consciência de classe. Nada a opor. Mas talvez seja essa a maior debilidade de Adeus, até ao meu regresso porque aí resvala para uma retórica ideológica previsível, um tanto ao arrepio do tanto dado para surpreender. Tem uma atenuante. Nesse tempo, o que é que não era ideológico? Um ponto mais. Apesar de feito para a televisão, evita as suas habituais armadilhas. 

 

Adeus, até ao meu regresso (1974), o final? Que futuro?

 

Ainda na primeira fase do seu percurso, António-Pedro Vasconcelos fez um último documentário intitulado Emigrantes… E depois (1976). Voltaria a esse registo com A Conspiração (2023), um seriado documental para televisão sobre as engrenagens do movimento dos Capitães de Abril que seria concluído por colaboradores após o seu falecimento. Por sinal, é um excelente seriado.

 

Porto, 25 de Julho de 2024

 


P.S. Este texto foi originalmente publicado na revista online Cinema(s) da Associação Ao Norte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

102894510_3442382629123473_1706644122050382510_n.jpg
Jorge Campos

arquivo

        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

120048145_341823260208071_74511127798334

Receba a Newsletter de NDR diretamente na sua caixa de email

Ouvir

Ver, Ouvir & Ler

Ler

C A T E G O R I A S

Ensaios, conferências, comunicações académicas, notas e artigos de opinião sobre Cultura. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes  quando se justificar.

Iluminação Camera

 

Ensaios, conferências, comunicações académicas, textos de opinião. notas e folhas de sala publicados ao longo de anos. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes quando se justificar.

Estático

Arquivo. Princípios, descrição, reflexões e balanço da Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura, da qual fui o principal responsável. O lema: Pontes para o Futuro.

televisão sillouhette

Atualidade, política, artigos de opinião, textos satíricos.

Notas, textos de opinião e de reflexão sobre os media, designadamente o serviço público de televisão, publicados ao longo dos anos. Textos  de crítica da atualidade.

Notas pessoais sobre acontecimentos históricos. Memória. Presente. Futuro.

Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

Todo o conteúdo © Jorge Campos

excepto o devidamente especificado.

     Criado por Isabel Campos 

bottom of page