“Não há filme político sem moralidade, não há filme político sem teologia, não há filme político sem misticismo.”
Jean-Marie Straub
Jean-Marie Straub tinha 81 anos quando fez Kommunisten (2014) em homenagem aos resistentes comunistas, bem como à sua mulher, Danièle Huillet, entretanto falecida. Com textos de autores como André Malraux, Elio Vittorini, Mahmoud Hussein, Franco Fortini e Friedrich Hölderlin, o filme evoca episódios de um longo período histórico no qual o cineasta foi observador e interveniente, não se eximindo de produzir, frequentemente, declarações incendiárias. No seu capítulo final, Kommunisten faz a encenação da utopia de um Mundo Novo (Neue Welt), livre da exploração, onde se dá o reencontro do homem com a natureza. Indissociável do materialismo histórico e da luta de classes, este comunismo ecológico resulta da praxis quotidiana assente na dialéctica, que é condição da liberdade. Nos últimos anos de vida, Straub costumava dizer ironicamente “sou um velho estalinista.” Não era. Não há lugar para o dogma na sua obra, que é, também, a obra de Huillet. Pelo contrário, os seus filmes convocam o pensamento, apelam à cultura e à memória, contrariam o caos simbólico: exigem perguntas. Kommunisten não foge à regra. Face à desrealização do real no mundo contemporâneo não é coisa pouca.
Em função da narrativa construída a partir de argumentos marxistas, poder-se-ia pensar ser um filme de mensagem retórica linear, porventura, a expressão nostálgica de uma outra ordem do passado, ou, então, um mero texto laudatório daqueles que foram presos, torturados e mortos em nome da grande utopia do século XX. É o contrário. Complexo, meticuloso e depurado, não autoriza o imediatismo dedutivo da relação causa-efeito. Tão pouco há resquício, na sua organização textual, das simplificações de que se fazem as vulgatas. Sendo um filme político é, também, um filme sobre o cinema. Procura fazer a síntese de um percurso, tarefa dir-se-ia impossível, dada a dimensão do acumulado ao longo do tempo.
Talvez por isso Jean-Marie Straub tenha dito que Kommunisten resultou de incontáveis noites de insónia. Feito de segmentos de outros filmes, interrompido e recomeçado por diversas vezes até as diferentes peças encaixarem de modo a formarem um mosaico coerente, adivinha-se nele o extenuante corpo a corpo com as imagens. Mas não só. Porque, carregado de memória e referências, procedente de autores cujos textos acompanharam a vida do casal, bem como da música erudita que sempre amaram, este cinema, dando ideia de nada acontecer, exige, na verdade, o tumulto. Declara guerra ao conformismo do espectador. Insurge-se contra a fragmentação narrativa, denuncia a imagem-mercadoria, expõe o vazio do consumismo inerente à produção simbólica industrial.
Em suma, nada em Kommunisten tem a chancela do conforto. Não obedece aos significantes convencionais nem às articulações previsíveis. O prazer do texto, se a ele se conseguir chegar, releva do incómodo de pensar, do trabalho da memória, da capacidade de imaginar. Hermético, radicalmente poético, Kommunisten é, na verdade, imensamente desafiador. Jean-Marie Straub disse um dia que ele e a mulher faziam filmes para que as pessoas tivessem a liberdade de poder sair da sala.
1. um certo olhar, uma maneira de ser. Faz algum tempo, assisti, durante semanas, sempre ao domingo, a uma retrospectiva integral de Straub-Huillet. Até então, eu teria visto pouco mais de meia dúzia de filmes, entre os quais, dois simplesmente deslumbrantes: Crónica de Anna Magdalena Bach (Chronik Der Anna Magdalena Bach) (1967) e Sicilia! (1998). Um amigo meu, crítico de cinema com muitos anos de experiência e créditos firmados, no final de uma das sessões - tanto quanto me lembro A Morte de Empédocles: Ou Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde (Der Tod des Empedokles oder: Wenn dan der Erde Grün von neuem Euch erglänzt)(1986) -, deixou escapar: ”Isto é como ir à missa.” Fiquei a pensar. Ir à missa, para um fiel, é motivo de júbilo. Mas, por obrigação, a missa é uma estopada. Olhando em volta, lembro-me de identificar à primeira vista quer o júbilo dos correligionários da chamada internacional straubeana, quer a perplexidade de outros cinéfilos em busca de uma explicação no quadro do adquirido.
Straub não acreditava na linguagem cinematográfica. Não se coibia de o afirmar. Todavia, era um conhecedor profundo do Cinema. Ainda adolescente, deixou a cidade de Metz, onde já dirigia o cine-clube local, para frequentar as universidades de Estrasburgo e Nancy. Conheceu então a futura mulher, Danièle Huillet. Com ela, em 1954, foi para Paris. François Truffaut levou-o para os Cahiers du Cinéma. Nem sempre a relação entre ambos terá sido pacífica, dada a recusa de publicação de alguns do seus textos. Mais amistosa foi a relação com Jean-Luc Godard de quem foi vizinho, na Suíça, nos últimos anos de vida. Assistente de realização em filmes de Jacques Rivette, Abel Gance, Jean Renoir, Robert Bresson e Alexandre Astruc, o nome de Jean-Marie Straub, ao contrário do que, por vezes, se pensa, não ficou associado à Nouvelle Vague através de obra própria. Mas guardou dela a atitude.
Perante a possibilidade de ser convocado pelo exército francês, temendo ser mobilizado para a Argélia, cuja luta pela independência apoiava, optou por viver na República Federal da Alemanha onde realizou os primeiros filmes. Ao lado de cineastas como Wim Wenders, Werner Herzog, Volker Schlöndorff, Hans-Jurgen Syberberg e Rainer Werner Fassbinder, fez caminho no movimento do Novo Cinema Alemão, todavia, tal como Syberberg, à margem do cânone dos seus pares. A partir de Chronik Der Anna Magdalena Bach, nomeado para o Urso de Ouro de Berlim, vencedor de um Bafta e de um prémio dos Cahiers du Cinéma, a singularidade do cinema dos Straub ganhou exuberante evidência.
Na fase italiana, em Roma, para onde o casal foi viver no início da década de 70, iriam desenvolver as suas ideias em contacto com obras de escritores como Franco Fortini, Cesare Pavese e Elio Vittorini. O trabalho a partir de textos literários, por vezes associados à música, teatro e até à pintura, seria, aliás, uma constante ao longo dos anos. Levaram para a tela Kafka, Hölderlin, Brecht, Dante, Corneille, Schönberg, Sófocles, Mallarmé, Montaigne, Cézanne e outros mais. Nunca fizeram, porém, adaptações cinematográficas no sentido convencional. Privilegiaram sempre os textos, na língua original, por vezes, nas versões arcaicas. Na maioria dos casos, chamaram actores não profissionais para os lerem ou declamarem diante da câmara. Escolheram cenários naturais. Som directo. Planos longos. A cor e a preto e branco.
Como se adivinha, ainda que premiado ou distinguido em algumas ocasiões, este cinema nunca teve relação fácil com os festivais, com a crítica e, menos ainda, com o público. Apelando à sensibilidade e inteligência, sem espaço para a evasão, não só pôs em xeque os critérios dos programadores, mas, também, baralhou a crítica e afastou o chamado grande público, apesar de deixar a porta aberta a quem estivesse disponível para o frequentar.
Como se observa, por exemplo, no meticuloso, quase invisível, trabalho de montagem, o cinema do casal remete para algo em suspenso entre a obsessão do rigor e o fascínio do mistério. Veja-se, a propósito, Où Gît Votre Sourire Enfoui? (2001) no qual Pedro Costa observa o trabalho dos cineastas no processo de edição de Sicilia! Face a essa suspensão, na recepção exigir-se-á, obviamente, ousadia equivalente à dos autores no sentido de interpelar as múltiplas faces do seu cinema-mundo, aliás, por eles defendido de forma intransigente. São numerosos os episódios que o atestam.
Um exemplo. Em fevereiro de 1997, durante um debate televisivo sobre o impacto da imagem virtual, no meio de acalorada discussão, Straub, em defesa do real, acusou o seu interlocutor, o engenheiro e filósofo Philipe Quéau, de defender ideias piores do que as de Goebbels. Quéau, por sinal, um seu admirador, ficou estarrecido. Essa ferocidade, longe de afastar a tribo cinéfila, contribuiu para o aparecimento de uma irmandade informal de seguidores tão intransigente na defesa da obra straubeana quanto os próprios cineastas.
Outro exemplo. Aquando da passagem no Festival de Veneza de Que Lori Inconti (2006), o último filme do casal antes da morte de Huillet, o Júri, presidido por Catherine Deneuve, atribuiu-lhes um Leão especial por terem inventado a sua própria linguagem cinematográfica. Os Straub não compareceram para receber o prémio e enviaram em seu lugar os actores de Que Lori Inconti que eram portadores de três curtas mensagens. Não lhes foi dada a palavra. O próprio director do Festival, Marco Muller, leu-as perante a imprensa. A primeira, jogando com Trop Tôt, Trop Tard (1981), dizia que a distinção vinha “demasiado cedo para a nossa morte - demasiado tarde para a vida”. A segunda listava presenças anteriores em Veneza sem qualquer distinção. A terceira deu um escândalo. Palavras de Jean-Marie Straub: “Eu não seria capaz de ser festivo num festival pejado de polícia, pública e privada, à procura de terroristas - Eu sou o terrorista, e deixem-me dizer-vos, parafraseando Franco Fortini: enquanto houver o capitalismo imperialista Americano, nunca seremos bastantes terroristas no mundo.” As severas medidas de segurança tinham sido justificadas com o 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque.
2. dialektiké; Mes dates clés. O método dos filmes straubeanos exige a dialéctica, palavra que vem do grego dialektiké, ou seja, a arte do diálogo. Para o marxismo, o diálogo com o mundo deve ser levado a cabo através do reconhecimento das contradições nele existentes. Só assim será viável a superação, tal como sugere o paradigma hegeliano - tese, antítese, síntese - actualizado por Marx e Engels ao introduzirem a luta de classes. Para entender a História, portanto, é necessário levar a cabo diversas operações, desde logo, analisar as condições de vida, as mentalidades e as representações em função do modo de produção que as determina.
No cinema, o materialismo conheceu várias declinações tendo, porventura, momentos determinantes na teoria da montagem dialéctica de Sergei Eisenstein e no Cine-Olho de Dziga Vertov. Eu acrescentaria o método de Straub-Huillet. Nos seus filmes, em linha com o marxismo, sente-se, é certo, a presença do bisturi analítico a dissecar a complexidade do real. Mas não o determinismo. O que pulsa é a respiração da utopia de um cinema puro, Indissociável da utopia do comunismo. São filmes inexplicáveis em sentido literal. Existem para dialogar com o que lá está, seja uma longa panorâmica sobre o dorso de uma montanha, o peculiar modo de ler ou declamar um texto, o próprio texto, a postura do corpo dos protagonistas, a intensidade do sopro do vento, a paisagem dos rostos, o zumbir de um insecto, a luz rarefeita no interior de uma prisão, a sombra na parede de um suspeito sob interrogatório da polícia política, a ruína de um monumento da antiguidade habitada por personagens em trajes de época com um automóvel ao longe ou um avião a riscar o céu. Tudo isto faz parte, também, da materialidade dos filmes dos Straub. No ecrã, paisagens, actores, peças musicais, textos literários, o que quer que seja, na tela valem por si mesmos. De novo: dialektiké.
Outro aspecto importante do diálogo é o conhecimento prévio da experiência de vida dos cineastas. Em abril de 2003, o jornal Libération publicou Mes dates clés (As Minhas Datas Chave), um texto de Jean-Marie Straub, então com 70 anos, no qual ele nomeia episódios determinantes do seu modo de ser, pensar e agir. Escreve, à laia de introdução, “Sou mais velho do que Baudelaire quando ele dizia ter mais de mil anos”, uma forma de evidenciar o peso da memória e a presença da História. Por ser extremamente revelador, recupero, por vezes de forma literal, parte desse texto. Eis algumas das datas:
1842 - A floresta alemã é interditada aos pobres ficando estes privados de bens essenciais para a sobrevivência como a madeira, os cogumelos e os castanheiros que passam para o domínio da indústria. O jovem Karl Marx insurge-se nas páginas da Gazeta renana. Em consequência, é despedido.
Inverno de 1942 - Straub tem apenas nove anos e está a patinar na placa gelada do rio Mosela. ESTALINEGRADO! (Sic). O pai diz-lhe ser o princípio do fim da guerra.
1945 - Pouco antes da guerra terminar, para pressionar Estaline, os B17 americanos bombardeiam duas vezes Dresden, uma das mais belas cidades alemãs. O número de vítimas civis é superior ao produzido pelas bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki “pour nous libérer du péril jaune”, diz Straub.
Até 1948 - A ESPERANÇA! (Sic). Straub é estudante liceal. Apesar de muito jovem segue apaixonadamente a vida política do pós-guerra. Congratula-se com as leis anti-trust, as nacionalizações e as expropriações da família Renault. Considera O Plano (económico) francês mais ousado do que o da República Democrática Alemã.
A partir de 1948 - McCarthy, a caça às bruxas, uma maré negra começa a invadir a Europa. Servidão face ao plano Marshall, criação da NATO. Na zona de ocupação inglesa, Churchill opta pela colaboração com nazis em detrimento dos sobreviventes dos campos de concentração. Está em marcha o capitalismo selvagem que traz consigo a barbárie, a máfia (juízo de Straub). Onde se fala de milagre económico, identifica empobrecimento e miséria. “Les débats à l'Assemblée nationale, où les insultes fusent, me réjouissent”, escreve.
1950-1953 - “Comédia sangrenta e grotesca em torno do paralelo 42. MacArthur sonha lançar bombas atómica sobre a Coreia? E porque não sobre a China?” (Tradução literal do original)
1953 - 1954 - FINALMENTE UM DIA DE GLÓRIA! (Sic). Um jovem de génio, Ho Chi Minh - diz Straub - impõe sucessivas derrotas ao exército colonial francês na Indochina e humilha os seus generais em Dien Bien Phu.
Novembro de 1954 (transcrição do texto original na legenda da foto seguinte, na qual estão Straub e Huillet) -
Em 1956 - O coronel Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito, nacionaliza o canal do Suez. HURRA! (Sic). Simbolicamente, é o fim dos impérios francês e britânico.
Em 1961 - Um parêntesis feliz: A BAÍA DOS PORCOS (Sic). Os contra-revolucionários US são derrotados pelos cubanos, escreve Straub.
Início de 1968 - Chronik existe finalmente! (Sic). Após a apresentação, em Munique, Straub dedica o filme aos camponeses da floresta bávara e ao Vietcong (os B52 americanos bombardeiam Hanói todos os dias). Um jovem estudante da escola de cinema de Berlim, de nome Holger Meins, vai ver o filme a Frankfurt e diz a Straub ser o melhor filme da História do Cinema.
1973 - “Une boucherie au Chili.” Alusão à carnificina no Chile após o golpe militar de Pinochet.
No início de 1975 - Em Roma, os Straub veem na primeira página do Paesa Sera a foto de um cadáver a ser retirado da prisão de alta segurança de Hamburgo. É Holger Meins, cineasta, membro de uma organização radical chamada Fracção do Exército Vermelho, o mesmo que dissera que Chronik era o melhor filme da História do Cinema. Meins morrera na sequência de uma greve da fome. Os Straub ficam consternados. Dedicam-lhe Moses und Aron (1975), então em montagem. São 24 fotogramas no genérico que desencadeiam uma guerra com a televisão alemã.
1986 - Em A Morte de Empédocles, um texto escrito por Holderlin em 1790, os Straub descobrem a utopia de um jovem que se insurge contra a ameaça da revolução industrial e o mito do progresso. O comunismo ecológico pode ainda ainda salvar o planeta.
1988 - A última data mencionada. Straub viaja ao longo do Tibre no banco de trás de um automóvel, na companhia de Alberto Moravia. Vão a caminho da Porta Portese, em Roma. Não se lembra de quem ia ao volante, mas recorda-se do que lhe disse o escritor: “A próxima guerra será no Golfo, uma guerra planeada, programada. Falei com cinco generais da NATO, americanos e alemães. Foram eles que mo disseram.”
Apesar do texto ser de 2003, a enumeração das datas cessa, como se pode constatar, em 1988. Straub não deixa de sugerir, porém, que a partir de então sobreveio a derrocada da esperança, o reino da arbitrariedade. Cita Brecht fazendo falar o seu Tirésias: “ O mais quer sempre mais para no fim se transformar em nada.” E acrescenta que a mentira se tornou oficial, o rolo compressor da propaganda.
Manifestamente, a listagem das datas identifica sem ambiguidade um “inimigo principal”, expressão da retórica marxista mais agressiva. Fará prova de uma opção ideológica clara, subjacente a toda a obra de Straub-Huillet. Todavia, nunca arrasta os cineastas para o filme panfletário. Também não há notícia de envolvimento orgânico de qualquer deles com organizações partidárias, à excepção, eventualmente, de Huillet que teve contactos com o Parido Comunista Italiano. Tão pouco se conhecem manifestações de simpatia para com os regimes do leste europeu, ainda que Kommunisten comece com o Hino da República Democrática Alemã, o qual tem música de Hanns Eisler e letra do poeta Johannes Becher, mais tarde Ministro da Cultura.
3. utopia, memória: Cinema. Ecrã a negro. A máxima opacidade no cinema, segundo Gilles Deleuze. Surge o título: Kommunisten. Eleva-se a música e coro de Reerguidos das Ruínas (Auferstanden aus Ruinen). Segue-se, austero e breve, o genérico. De novo o negro, a sala fica mergulhada na escuridão até ao fim do Hino Nacional da RDA.
Do negro irrompe em cut a imagem a cores, o Capítulo I do filme. É um plano fixo, filmado em diagonal, num espaço mal iluminado onde estão dois homens cujas sombras se projectam na parede. O espaço é uma sala de interrogatório. Os dois homens são presos políticos, suspeitos de pertencerem ao Partido Comunista.
Neste primeiro capítulo, o único inédito no conjunto do filme, Straub trabalha sobre excertos de Le Temps du Mépris de André Malraux, escrito em 1935. O livro resulta da experiência de Malraux na Indochina, entre 1924 e 1926, onde terá ganho consciência da violência da política colonial francesa, À época não foi tido em grande apreço, nem da parte da crítica nem do próprio escritor. No pós-guerra, porém, em parte devido à revelação das atrocidades nazis, em parte porque os comunistas estiveram na linha da frente da Resistência, o livro foi reavaliado, sendo-lhe, finalmente, reconhecido o mérito literário.
A personagem central é um escritor comunista alemão de nome Kassner, preso num campo de concentração. Viria a ser libertado graças ao gesto heróico de um outro prisioneiro com quem, entretanto, fizera amizade. Os alemães sabiam da existência de Kassner, um elemento preponderante do Partido, mas não sabiam reconhecê-lo. O amigo, fazendo-se passar por ele, permitiu-lhe recuperar a liberdade para prosseguir a luta contra o nazismo. Nas mãos de Straub, os excertos de Le Temps du Mépris perdem o carácter de enredo, dando origem a três momentos de cinema tão intensos quanto despojados: o interrogatório, a reflexão sobre a tortura e o regresso do prisioneiro a casa.
No primeiro momento, o enquadramento e a iluminação difusa, bem como as marcações do espaço cénico ocupado pelos dois homens, permitem estabelecer uma relação triangular, hierarquizada, entre quem está em campo e quem não está, ou seja, aquele que é o inquiridor de quem apenas se ouve a voz. A voz é a do próprio Straub no papel de verdugo, num registo declamado, com pausas prolongadas, que intimida não pelo excesso vocal mas pelo pendor oblíquo do discurso. Súbito, de novo o ecrã a negro, cerca de cinco minutos. A tortura não se mostra, mesmo se apenas sugerida no interrogatório. Sem imagem com a qual possa identificar a acção, o espectador fica prisioneiro na sala escura: efeito brechtiano. Cut. Imagem Estão duas figuras enquadradas de costas para a câmara, uma de pé, o prisioneiro libertado, outra sentada, a sua mulher. Ambos sofreram: “Foi terrível.” Contemplam através da ampla abertura de uma janela o mundo exterior.
É a passagem para o Capítulo II retirado de Operários, Camponeses (Operai, Contadini), (2001). Dois homens e uma mulher estão na floresta de Buti, na região da Toscânia. Filmados à luz do dia em plano de conjunto frontal, fitando o solo, com a câmara colocada um pouco acima da linha dos olhos como se tivessem de prestar contas uns aos outros ou de reflectir com a ajuda de terceiros, eventualmente, do público. Vão ler excertos de Le Donne di Messina de Elio Vittorini, livro publicado no final de 1946, posteriormente sujeito a diversas atualizações.
Primeiramente ligado ao Partido Nacional Fascista de Mussolini, do qual viria a ser expulso por tomar partido a favor dos republicanos na Guerra Civil de Espanha, Elio Vittorini juntar-se-ia depois ao Partido Comunista Italiano. Vice-director do jornal L’Unitá, em Milão, e destacado membro da resistência à ocupação nazi, foi preso pela primeira vez após a publicação, em 1941, de Conversazioni in Sicilla, um dos grandes romances do anti-fascismo italiano. Exerceu enorme influência no círculo dos escritores mais jovens, entre os quais se contava Italo Calvini. Vittorini é uma das principais referências de Straub e Huillet.
Os atores de Operai, Contadini são operários fabris ou trabalhadores do campo, amadores do teatro regional de Buti. No segmento de vinte minutos escolhido para Kommunisten, os protagonistas refletem sobre o pós-guerra, o que mudou nas suas vidas e aldeias. A coreografia, bem como a leitura dos textos, faz lembrar o teatro antigo, o coro grego incluído. Se o primeiro episódio do filme é sobre a Resistência, este é sobre a Mudança. Começa, aliás, com uma pergunta de um dos homens sobre si mesmo: mudado? A mudança, em função da circunstância histórica, sugere uma nova consciência. O outro homem, outrora fascista, deixou de o ser. E a mulher, lê um excerto do texto sobre a impossibilidade “de ser feliz de outro modo, de ser bom de outro modo, de ser livre de outro modo, de ser humano de outro modo.” Portanto, mudança. Duas notas: o olhar dos actores dirige-se de quando em quando para um ponto indeterminado, como se estivesse a dirigir-se à comunidade onde tudo teve lugar; há nos diversos planos múltiplas variações da luz solar, o que acentua o carácter documental da imagem. Jacques Rancière diz que o discurso dos Straub é comunista posto unir e opor, em simultâneo, dois registos poéticos: “o registo lírico, que é a expressão do comum enquanto tal, e o registo dramático ou dialético, que é a expressão do comum como estando dividido ou marcado pela divisão.”
O som de uma sirene. A negro. Passagem para o Capítulo III constituído por um único plano sequência de Trop Tôt, Trop Tard (1981) filmado à porta de uma fábrica no Cairo. O filme, um díptico de cunho documental, reflete sobre as condições para a Revolução, relevando o papel do campesinato. A primeira parte, rodada em França, em boa parte no campo, remete para uma carta de Friedrich Engels dirigida a Karl Kautsky. Tem narração de Danièle Huillet. A segunda parte apoia-se no texto de Lutas Sociais no Egito 1945-1970, livro assinado por Mahmoud Hussein, mas, na verdade, o pseudónimo de dois jornalistas que o escreveram em conjunto, mantendo o anonimato. Com imagens de arquivo, designadamente do presidente Nasser, o mesmo que decretara a nacionalização o canal do Suez tão apreciada por Jean-Marie Straub, o filme valoriza sobretudo as tomadas de vista exteriores nas quais a presença do vento tem forte dimensão metafórica. Serge Daney diz mesmo que nunca ninguém depois de Victor Sjostrom, em 1928, tinha filmado o vento assim. Neste caso, os ventos da História. A narração é de Bahgat el Nadi.
O segmento de Trop Tôt, Trop Tard escolhido para Kommunisten, não fosse a narração inicial, seria um documentário em estado puro com som diegético: câmara colocada diante do portão de uma fábrica, plano fixo aberto, trabalhadores que saem confundindo-se com o movimento das pessoas na rua. Duração, dez minutos. Momento Lumière: o real tal qual dentro do enquadramento, a afirmação do poder de interpelação do Cinema. A narração dura um minuto. Dos nove restantes, quem estiver na sala fará deles o que bem entender.
Eis o texto de Mahmoud Hussein sobre as imagens na voz de Bahgat el Nadi:
“Em 1919 dá-se a revolução contra o ocupante britânico. As massas rurais, desamparadas e pobres são a sua força principal, multiplicando as sabotagens às vias de comunicação e organizando inúmeros confrontos com o exército de ocupação. Os objetivos revolucionários democráticos estão ligados aos objetivos patrióticos. Formas embrionárias de poder popular vêem a luz. Eclodem revoltas armadas contra os grandes proprietários. Operários, desempregados, estudantes, lojistas, funcionários encontram-se lado a lado ao longo do ano nas ruas do Cairo e de outras grandes cidades em manifestações violentas de uma amplitude desconhecida até então. Os operários passarão a formas de luta específicas, à ocupação das fábricas e à autodefesa contra as forças de repressão.”
A agitação diante da fábrica egípcia dá lugar ao sossego majestoso dos Alpes Apuanos. É o início do Capítulo IV, um longo excerto de Fortini/Cães (Fortini/Cani) (1976). Baseado em Cani Del Sinai, um livro de Franco Fortini escrito em 1967, o filme é um ensaio em torno da memória e do esquecimento. Faz lembrar, ainda que num outro registo, Nuit et Brouillard (1956) de Alain Resnais. Mas também é um filme sobre a raiva de um homem que escreveu um panfleto no qual compara a perseguição dos judeus pelos nazis à perseguição movida aos povos árabes pelo estado de Israel. Fortini, ele próprio de ascendência judaica, poeta e escritor marxista, viu o pai entrar na clandestinidade. Tal como o amigo Elio Vittorini, juntar-se-ia à Resistência.
O filme dos Straub começa com a imagem da capa de Cani Del Sinai, uma primeira edição, amarelecida pelo tempo, que apareceu nas livrarias pouco depois da Guerra dos Seis Dias entre Israel e o Egito. Pudesse ser folheada e ler-se-ia na primeira página uma citação de Zelman Lewental, em Auschwitz, datada de agosto de 1944: “Se tu non vuoi più credere alla verità, nessuno vorrà più credere.” Nas imagens seguintes, de arquivo, a televisão pública italiana toma partido pelo estado judaico em nome do “jornalismo sério”. Depois, os Straub mostram pessoas, aparentemente de elevado estatuto social, que optam pelo silêncio ou por evasivas quando confrontadas com o assunto. A seguir, o contraste. Montagem dialéctica.
Corte para os Alpes Apuanos, na Toscânia, com os quais tem início o excerto de Fortini/Cani integrado em Kommunisten: a voz de Fortini, dez segundos, um primeiro contexto; longas panorâmicas descritivas das montanhas cobertas de florestas verdejantes, raras casas dispersas pela imensidão dos montes e vales. Nem uma palavra, apenas silêncio, o vento na copa das árvores, a dada altura o rumor do riso de crianças, porventura, no recreio de uma escola perdida algures na lonjura, uma aldeia onde não se vê ninguém, uma placa evocativa, estranho sinal, mais paisagens a perder de vista. Uma sequência de dezasseis minutos. Nada parece acontecer.
Todavia, deu-se ali um dos maiores massacres perpetrados pelos nazis, com a ajuda de fascistas italianos, durante a guerra. Na manhã do dia 12 de Agosto de 1944, já a Wermacht estava a ser escorraçada para o norte de Itália pelas forças aliadas, tropas da 16ª Divisão Panzergrenadier SS comandadas pelo oficial Max Simon, cercaram uma pequena aldeia da região de Sant’Anna di Stazzema. A aldeia, com pouco mais de 400 habitantes, acolhera um milhar de refugiados e desertores, e era suspeita de apoiar os partigianos. Com brutalidade inaudita os nazis mataram 560 pessoas, das quais 130 eram crianças. O terror.
A vastidão das montanhas dá lugar à presença de Fortini, filmado em close up de perfil, depois de frente. Lê o seu livro em voz alta. As mudanças de enquadramento fazem-se através de inserts de imagens de páginas impressas, um procedimento convencional que, neste caso, o não o é. O dispositivo, pelo modo da alternância do corte, revela o homem e a sua circunstância, alguém zangado que escreveu insurgindo-se contra o apagamento da memória: “Dentro de alguns anos ninguém compreenderá o que foram a guerra do Vietname e o conflito israelo-árabe.” Alguém que denuncia o manto de irrealidade das representações dominantes, as quais, anestesiando as consciências, geram uma multidão de indiferentes. Sobre estes: “Por fim, há apenas uma notícia chocante, feroz: não estais no lugar onde acontece o que decide o vosso destino. Não tendes destino. Não tendes e não sois. Em troca da realidade foi-vos dada uma aparência perfeita, uma vida bem imitada. Andais distraídos da vossa morte, para desfrutardes de uma espécie de imortalidade. A recitação da vida nunca terá fim. Abençoados.” Portanto, alienação, segundo os marxistas. Finalmente, Fortini, de novo filmado de perfil, agradece a quantos, anónimos, combateram o nazismo tendo em mente o sonho utópico de uma ideia maior. Corte.
Capítulo V. Há agora, tal como na imagem da fábrica no Cairo, um longo longo plano fixo, neste caso, de oito minutos. O cenário já não é o dos Alpes da Toscânia, é o sopé da encosta do Etna, na Sicília, onde, após ano e meio de ensaios, os Straub filmaram A Morte de Empédocles: Ou Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde para Ti (Der Tod des Empedokles oder: Wenn dan der Erde Grün von neuem Euch erglänzt) (1986) a partir da primeira das três versões do poema dramático de Friedrich Hölderlin. É o momento em que Kommunisten propõe a utopia do comunismo ecológico.
Hölderlin, figura cimeira do idealismo alemão, acolhe na sua poesia o espírito da Grécia antiga. Tradutor de autores clássicos como Sófocles, via o mundo como um palco no qual contínuos enfrentamentos de toda a ordem dão origem a sucessivas novas configurações. Em A Morte de Empédocles, dramatiza a recusa do filósofo de Agrigento em aceitar, por coerência, a expulsão da cidade, o que haveria de o conduzir ao suicídio pelo fogo por forma a que as suas cinzas pudessem alimentar o ciclo da vida. Segundo Empédocles, a natureza é constituída por quatro elementos primordiais: terra, ar, água e fogo.
No excerto do filme dos Straub a ressonância desta filosofia é evidente. Estão lá a luz, as montanhas intemporais, mais uma vez o vento, as árvores, as nuvens, os sons das pequenas criaturas que habitam o esplendor da terra e da luz que a ilumina. São oito minutos de contemplação. Oito minutos de respeito absoluto pelas ideias e pelo texto de Hölderlin, declamado por Andreas von Rauch, que faz a exaltação da natureza. Diz Straub: "Hölderlin é citado na métrica justa. No teatro não se respeita a métrica. Os atores ligam as palavras segundo o seu sentido, em função da sintaxe. No filme, respeitámos o ritmo, a musicalidade e a métrica de Hölderlin.”
E assim se chega ao Capítulo VI, um segmento de Schwarze Sünde (Negro Pecado) (1989), que resulta de uma outra versão de A Morte de Empédocles. Straub vai buscar um plano belíssimo de Danièle Huillet no monte Etna, sentada no chão, imóvel como uma estátua. O espaço confere à cena algo de sagrado. Subitamente, ela vira a cabeça e pergunta: Neue Welt?
Obs.: Este texto foi originalmente publicado no livro comemorativo do 20º aniversário do Ciclo Imagens do Real Imaginado (IRI) organizado pela Escola Superior de Media, Artes e Design.