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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR


Não sei bem o que possa ser o jornalismo cultural, agora. Em tempos, os principais jornais portugueses tiveram excelentes páginas culturais. No Porto, por exemplo, o Primeiro de Janeiro publicou o suplemento das Artes e das Letras e O Comércio do Porto o Cultura e Arte. São meros exemplos. Houve mais. De um modo geral, todos tiveram entre os seus colaboradores alguns dos mais destacados escritores de uma época durante a qual a Literatura foi hegemónica. Posteriormente, o foco diversificou-se. A atenção também passou a incidir sobre outras artes. Consequência da inexorabilidade do tempo, jornais foram morrendo, caso dos dois mencionados, mas outros foram aparecendo, observando, as mais da vezes, a tendência de aproximação ao cada vez mais apetecível mercado dos bens simbólicos. Notar: ainda há suplementos culturais com matérias relevantes, fazendo prova, embora cada vez mais raramente, da presença de profissionais especializados em áreas culturais. Assinala-se a resiliência de um sobrevivente de qualidade, o Jornal de Letras. Quanto à televisão, a pública faz o que pode, as outras, também, embora nunca de forma desinteressada. Com a rádio sucede o mesmo. 

 

Esta paisagem não se esgota, porém, na visão um tanto arcaica plasmada no parágrafo anterior. Pelo contrário, também nela é forçoso assinalar o grande tumulto resultante do mundo digital emergente com a sua miríade de plataformas, no qual coexistem, por um lado, o espetáculo grotesco do vale tudo, fake news e pós-verdade e, por outro, objectos culturais fascinantes, pensamento elaborado, propostas arrojadas e possibilidades de conhecimento praticamente ilimitadas. Na verdade, há de tudo. Mas, para já, o grotesco, de resto, igualmente presente nos media tradicionais, parece levar vantagem. Isto é parte do problema. Não se trata apenas de conteúdos, trata-se, igualmente, de consequências em profundidade, de ordem antropológica, que resultam da utilização generalizada dos meios digitais. Eles alteram o modo de pensar e de agir, condicionam a utilização do tempo, promovem alterações na linguagem e impõem linguagens novas. Disseminados em rede, tanto abrem janelas de liberdade quanto espaço a processos de vigilância que nem as distopias mais radicais conseguiram prever. McLuhan falava dos media enquanto extensão dos sentidos do homem. Assim parece ser. Acrescente-se: este mundo novo tem impacto brutal no jornalismo, especializado ou não, e já maioritariamente on line,

 

Dito isto, suponho ter resumido o que seria expectável ouvir num encontro deste género. Poderia, evidentemente, desenvolver de seguida cada um dos tópicos, mas não é esse o meu propósito. O jornalismo, seja qual for o designativo que se lhe queira associar, ou é jornalismo ou é outra coisa. E este parece ser mais o tempo da outra coisa. Esse é o meu ponto. Farei por isso uma digressão à volta de questões que suscitam perplexidade e interrogações. Antes, porém, de me aventurar no estado da arte, devo fazer uma declaração de interesse. 

 

Há mais de vinte anos comuniquei aos meus alunos a intenção de “mudar de ramo” - foi esta a expressão que utilizei - porque me sentia desconfortável não só com a ideia de continuar a lidar com algo cujo futuro me parecia comprometido, mas, também, e sobretudo, por não querer falhar, por falta de convicção, junto de quem bem merecia sonhar. O jornalismo parecia-me cada vez mais uma atividade metafórica. Decidira, por isso, fazer outras coisas. Não por não gostar da utopia do jornalismo, tão pouco por capitulação, posto que continuaria a intervir publicamente, mas por estar cansado, necessitado de novos desafios. O que se segue é uma espécie de regresso ao passado, back to the basics, onde retomo questões clássicas, as quais, a meu ver, continuam atuais. Os jovens futuros jornalistas precisam de saber que não há jornalismo sem memória, critérios e pensamento. Também não há jornalismo sem cultura. Por isso, ao invés de falar em jornalismo cultural, opto por dar prioridade ao jornalismo enquanto atividade cultural. E, por razões óbvias, tendo um quarto de século de experiência de televisão, falarei, sobretudo, dela.   

 


 A televisão moldou os hábitos das famílias a partir da segunda metade do século XX. Walter Cronkite, ícone da CBS Evening News, alertou: “The democratic system is challenged by the failure in television because our evening news programmes have gone for an attempt to entertain as much as to inform in the desperate fight for ratings.” Hoje, prevalece o mundo digital em rede. Foto: ABC

1. As notícias são como são: mosaico, dialéctica, constrangimentos 

 

Começo, então, por um quadro de referências em torno daquilo que é a matéria prima do jornalismo, a notícia. A fabricação das notícias obedece a constrangimentos tanto de ordem institucional quanto narrativa. No plano institucional há os dispositivos organizacionais, com as suas hierarquias, às quais compete zelar pela observância das normas destinadas a impor uma determinada ordem jornalística. No plano narrativo, trata-se de disponibilizar um conjunto de técnicas habitualmente associadas aos diferentes géneros jornalísticos, as quais permitem encarar a codificação numa perspectiva previsível, embora alguns géneros autorizem uma maior liberdade criativa do que outros. Em qualquer dos casos, estão presentes mecanismos de controle que não se exercem apenas através de processos de gatekeeping, antes correspondem a uma lógica determinista sem a qual se acredita que a própria produção de notícias seria inviabilizada. Esse é o campo do newsmaking. Por isso, as notícias são como são

 

Michael Schudson aponta três ordens de razão para que assim seja: a acção pessoal, a acção social e a acção cultural. No primeiro caso, as notícias são encaradas com um produto das pessoas e das suas intenções; no segundo, resultam das organizações e dos seus constrangimentos; no terceiro, são um produto dos contextos culturais e dos seus limites. Assim, as notícias resultam de um conjunto de interações: do repórter, director e editor; dos constrangimentos inerentes à organização das redações; da necessidade de manter os vínculos com as fontes; do interesse dos leitores e das audiências; das poderosas convenções culturais dentro das quais, frequentemente, os jornalistas operam sem delas terem consciência. Tendo noção dos conflitos existentes entre eles próprios e as chefias pelo controlo das peças, muitas vezes, não estariam inteiramente conscientes do controlo exercido quer no âmbito da organização social, quer do mosaico cultural. Para que tal se verificasse, seria necessário ir à origem dos constrangimentos, de todos eles. Isso permitiria criar um sobressalto cognitivo do lado dos profissionais, bem como um cepticismo saudável junto público no sentido de o levar a exigir maior variedade e qualidade no tratamento das notícias.

 

Apesar de um número crescente de episódios parecer desmenti-lo, é razoável supor que os departamentos de informação continuam a reger-se basicamente pelo chamado valor notícia, tal como foi elucidado por Galtung e Ruge, em 1965. Aludindo à significatividade, os autores argumentaram haver relação entre a cobertura noticiosa e a importância dos acontecimentos. Parece óbvio, embora a natureza dessa relação seja bem mais complexa. É igualmente necessário que os jornalistas disponham de ferramentas, técnicas e teóricas, bem como de um código ético, cujo domínio lhes permita lidar quotidianamente com as pressões e constrangimentos. Sendo certo que ninguém hoje reclama uma objectividade noticiosa absoluta, a verdade é que a confiança do público, apesar de abalada, continua a depender da observância de determinadas normas. Elas existem. Portanto, em princípio, é possível escrutinar os acontecimentos de modo a dar deles uma versão plural, credível, verosímil e, portanto, objectiva.

 


Michael Schudson Foto: Columbia University  

Michael Schudson: “Objectivity, (…), means that a person's statements about the world can be trusted if they are submitted to established rules deemed legitimate by a professional community. Facts here are not aspects of the world, but consensually validated statements about it.” - in Discovering The News: A Social History Of American Newspapers.

Do normativo constam, igualmente, procedimentos clássicos como verificar os factos, confirmar a idoneidade das fontes, distinguir informação de opinião e apresentar de forma equilibrada pontos de vista divergentes respeitantes a uma mesma matéria. Apesar desta ideologia da objectividade continuar bastante arreigada sendo, de algum modo, referência, a verdade é que os reguladores do fluxo noticioso evitam, cada vez mais, fazer-lhe menção explícita. Preferem falar, por exemplo, de imparcialidade e razoabilidade, certamente menos problemáticos e mais consensuais em termos do dia a dia condicionado quer por agendas interessadas, resvalando para a publicidade e propaganda, quer pela contaminação do entretenimento, uma tendência que, sendo transversal à generalidade dos meios tradicionais, salta à vista na televisão.

 

Neste último caso, multiplicaram-se os formatos patrocinados de índole informativa, bastante diversificados, alguns dos quais dispensam o protocolo da informação. Regra geral, obedecem à chamada ideologia da programação, na expressão de Dominique Mehl, a qual, atenta à pressão dos anunciantes, não só pensa os programas em função dos comportamentos e gostos do público, mas também exige, por vezes, a presença e a participação desse mesmo público num registo de convivialidade. Iminentemente sensorial, a televisão precisa dessa ilusão de partilha tanto mais presente quanto mais estiver respaldada no mito e nos estereótipos. A eficácia retórica, no mundo mediático, exige a presença do denominador comum da cultura em sentido lato e restrito. Em sentido lato, o uso de uma mesma língua será o caso mais óbvio. Em sentido restrito, por exemplo, a intersecção com diferentes vertentes culturais. A título de meramente ilustrativo, vejamos o cruzamento, por um lado, com a Antropologia, por outro, com a Análise Literária.

 

A Antropologia dispõe de um arsenal teórico cujas categorias cognitivas permitem perceber uma sociedade se relaciona com o mundo e, designadamente, com o mito acima mencionado, elemento fulcral da coesão comunitária. Regra geral, quem intervém na elaboração das narrativas jornalísticas não tem noção dessa presença, dissimulada atrás da máscara a que convencionou chamar-se senso comum. Há adquiridos, porventura, em função de uma ordem superior, que não se discutem. Mas basta analisar a forma como os jornalistas abordam as suas matérias ou colocam as suas perguntas para entender o seu quadro de referências, presente em latência.

 

Quanto à Análise Literária, na perspetiva de John G. Cawelti, toda a literatura se encontra entre dois pólos, o mimético, que nos confronta com o mundo tal como o conhecemos e o formalista, que corresponde à elaboração narrativa de um mundo sem a desordem, ambiguidade, incerteza e limitações do mundo da nossa experiência. O mundo assim construído, tanto é o espaço da ficção quanto da notícia. Por associação de ideias, Northrop Frye na sua teoria dos géneros literários, ao interrogar-se sobre se a notícia é romance, tragédia, comédia ou sátira, avança algumas hipóteses. Se os protagonistas se erguem do mundo frustrado da experiência para um ideal mais alto e um mundo desejável, esse será o domínio da comédia. Será do romance quando tudo se passa num mundo altamente desejável. Da tragédia quando a notícia resvala para o desapontamento e assume proporções dramáticas. E assim por diante.

 

Estas questões - poder-se-iam acrescentar tantas mais - permitem alargar o campo de interpelação dos procedimentos jornalísticos. São como peças de um puzzle que encaixam dialecticamente. O jornalismo não é uma ilha isolada. O puzzle, por certo consequente de convenções e constrangimentos, procede daquilo a que se chama a construção da realidade.

 

2. A construção da realidade: metamorfose, mentira e propaganda

 

Quer isto dizer que a realidade, em si mesma, não existe. Só existe enquanto construção. O real, sim, existe. Porém, é percepcionado diferentemente consoante a interpretação que dele se faz e como, a partir dela, é organizado. Nessa avaliação far-se-á sentir, certamente, o peso do senso comum. Seja como for, a interpretação e organização do real só são possíveis através do recurso à linguagem. É à linguagem que cabe operar a metamorfose do real em realidade. Assim sendo, os jornalistas, tendo embora o foco num ponto de partida comum, darão origem a narrativas distintas. A construção da realidade é plural. Tratando-se de jornalismo, porém, o processo de construção só fica completo se associado aos critérios jornalísticos. São eles que garantem fiabilidade e conferem credibilidade.   

 


 Northrop Frye: “There is only one way to degrade mankind permanently and that is to destroy language.” Foto: The Toronto School Initiative

 

Na imprensa, a notícia escrita nunca é mimesis posto que, a par dos procedimentos jornalísticos, está sempre sujeita a uma intervenção mais ou menos próxima quer das formas literárias quer, agora, dos conteúdos veiculados através das plataformas digitais, cuja inventariação, tamanha é a diversidade, é praticamente impossível. Poder-se-ia dizer o mesmo em relação aos programas informativos de rádio e televisão. Na gíria mediática, compete-lhes contar estórias. As estórias obedecem a determinadas convenções narrativas. Sendo o mundo da televisão particularmente poroso, no sentido em que absorve diversas estratégias discursivas, a busca de formatos de sucesso dá origem a inesperadas alterações, só estabilizadas a partir do momento em que é atingido um duplo objetivo. Por um lado, garantir audiências capazes de proporcionar receitas publicitárias. Por outro, assegurar a eficácia persuasiva no terreno da regulação e dominação simbólicas. São aspectos complementares. A ilusão de um universo desinteressado de notícias enquanto espelho do mundo acabou há muito.

 

A metamorfose da paleo-televisão, ainda analógica, com o seu contrato de comunicação plasmado na delimitação dos géneros e numa divisão específica dos públicos, em neo-televisão, já em plena migração para o digital, com a sua perspetiva participativa e de segmentação, teve, desde logo, reflexos no modo de encarar o jornalismo. Abriram-se as portas ao infotainment. Em nome do público, os produtores de informação das network americanas adoptaram procedimentos semelhantes aos dos produtores de Hollywood. As notícias, mesmo se procurando preservar critérios jornalísticos, passaram a ser vistas como News Show. Não por acaso, esta tendência impôs-se  com o neoliberalismo, em consonância com as políticas de privatização e desregulação das telecomunicações da era Reagan-Thatcher.

 

Desde então, a televisão comercial opera em função da seguinte equação: se, pela sua natureza, o medium apela mais à emoção e menos à razão, o enfoque editorial deve incidir mais na esfera privada do que na esfera pública; portanto, é necessária a fulanização das notícias em torno, por exemplo, de celebridades; logo, o habitat das notícias é mais no campo do espetacular e menos do esclarecimento. Os géneros jornalísticos refletem tais pressupostos. Vejamos. A reportagem televisiva, centrada no repórter, tornou-se essencialmente performativa. Ao repórter exige-se que seja um ator. Tendo notoriedade, a sua figura sobrepõe-se à matéria informativa, se a houver, porque, verdade se diga, muitas vezes, não tem nada para dizer. No quadro da atual guerra na Ucrânia, chega a ser confrangedor como na maioria dos casos o jornalista se limita a reproduzir versões oficiais. Vai aonde o levam, filma o que lhe mostram, utiliza os argumentos convenientes, divaga em torno do politicamente correcto. Não é nada de novo. Por altura da guerra do Golfo, Richard Hardwood, editor do Washington Post, suscitou a questão e fustigou algumas das vedetas destacadas para a cobertura, entre as quais Dan Rather, Tom Brokaw e Sam Donaldson. Os seus conhecimentos jornalísticos e académicos sobre o Médio Oriente, escreveu Hardwood, “são modestos ou nulos”. Contudo, acrescentou, é em torno deles que as networks montam as suas operações especiais uma vez que atraem  público numeroso e, por conseguinte, publicidade e receitas.

 

Outra consequência da adopção dos formatos do entretenimento é o risco das notícias resvalarem para o fait divers. As redes sociais vieram agravá-lo. Daí à produção de fake news é - foi - um pequeno passo. Veja-se, a propósito, o documentário Outfoxed: Rupert Murdoch’s War on Journalism, de 2004, no qual Robert Greenwald desmonta as múltiplas faces da americana Fox News, na qual, a mentira era recorrente. Hoje, é habitual. E deixou de ser um exclusivo da Fox. Fake news, aliás, não são uma invenção recente. A sua origem é longínqua. Reportando apenas a episódios mais recentes, vale a pena lembrar duas guerras cujo início esteve ligado à mentira.

 

A primeira, a guerra hispano-americana travada em Cuba no final do século XIX. William Randolph Hearst, proprietário do New York Journal e um dos criadores da chamada yellow press, fez deslocar a Havana dois dos seus empregados, o jornalista Richard Davis e o ilustrador Frederic Remington, este último famoso pelos seus quadros do oeste americano. Os dois homens levavam a incumbência de reportar a insurreição dos cubanos contra o domínio colonial espanhol. Pelo meio havia rumores sobre a presença de um navio americano pronto a intervir ao largo da capital cubana. Ao fim de uma semana, Remingtom sugeriu o regresso a Nova Iorque, posto que os rumores eram infundados, a ilha estava calma e não havia sinais de guerra iminente. Hearst respondeu através de um telegrama: “Please remain. You furnish the pictures and I’ll furnish the war.” Assim foi. Remington fez diversas ilustrações sensacionalistas, entre as quais do navio a arder. A partir daí, o falso criou as condições para a guerra.

 


William Randolph Hearst, a inspiração de Orson Welles para Citizen Kane (1941) e criador da yellow press : “Don't be afraid to make a mistake, your readers might like it.” Fonte: WOUB Public Media

Tal como aconteceu mais tarde, já no século XXI, com a guerra no Golfo, cujo pretexto foi a alegada existência de armas de destruição massiva no Iraque. Podemos imaginar Hearst, de novo, agora declinado pela Administração americana: “You furnish me the proof and I’ll furnish the war”. Como se sabe, nunca houve prova, ou melhor, houve uma prova forjada esgrimida nas Nações Unidas pelo ex-secretário de estado americano Colin Powell. As armas nunca existiram. Porém, a mentira, propalada não pelas redes sociais, mas pela generalidade dos media corporativos, justificaram mais uma guerra feita à revelia das convenções internacionais. No documentário do jornalista Danny Schechter, Weapons of Mass Deception, realizado em 2004, é abordado o processo mediático levado a cabo para condicionar a opinião pública. Uma das vertentes do filme diz respeito respeita à construção da realidade e envolve os procedimentos jornalísticos. A CNN, por causa da guerra no Iraque, passou a fazer emissões diferentes para os Estados Unidos e para o resto do mundo, ou seja, mais “patrióticas” para consumo interno, mais “objetivas” para consumo externo. Um dos seus responsáveis editoriais justificou a decisão falando de pequenas alterações levadas a cabo em nome do respeito pelo público. Churchill tinha razão: em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade.

 

3. Fábrica de consensos: as ilusões necessárias

 

A história do jornalismo esteve sempre ligada à equação da verdade e da mentira. Durante muito tempo, podendo embora assumir diferentes enfoques editoriais, o jornalismo teve a seu favor a ideia segundo a qual determinados requisitos, elementarmente descritos na primeira parte deste texto, eram cumpridos. Não o sendo, ou seria mau jornalismo ou não seria sequer jornalismo. É um excelente princípio. De tal modo que o modelo ocidental, baseado numa imprensa livre indissociável do funcionamento do mercado, apesar de questionado por diversas vezes, nunca foi verdadeiramente posto em causa. Contudo, as coisas carecem de revisão.

 

No plano teórico, a crítica radical de Noam Chomsky, designadamente em Manufacturing Consent; The Political Economy of the Mass Media (1988), abriu uma brecha no edifício do pensamento dominante. Através de múltiplos exemplos, designadamente o da cobertura feita pelo New York Times sobre a situação em Timor-Leste, demonstrou a relação estreita do jornal, por um lado, com os patrocinadores e, por outro, com os interesses defendidos pela Administração americana, da qual a Indonésia, ocupante da antiga colónia portuguesa, era um aliado. Juntamente com Edward S. Herman, co-autor do livro, Chomsky definiu o papel dos media no quadro daquilo a que chamou modelo de propaganda: “The mass media serve as a system for communicating messages to the general populace. It is their function to inculcate individuals with values, beliefs, and codes of behavior that will integrate them into the institutional structures of the larger society. In a world of concentrated wealth and major conflicts of class interest, to fulfill this role requires systematic propaganda.”

 

Posteriormente, em Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies (1989), Chomsky desenvolveu a reflexão sobre o efeito de agenda-setting. A agenda não se limita a determinar o que deve ser ou não notícia, selecionando ou excluindo acontecimentos. Ao fazê-lo identifica os tópicos que devem merecer atenção na esfera pública. Se o que não consta da agenda, simplesmente, não existe, o que consta, em função dos códigos utilizados, impõe uma maneira de interpretar. Ou seja, a agenda diz-nos tanto sobre o que devemos saber, quanto sobre o modo como devemos pensar. Como corolário, Chomsky acrescenta: “Within the reigning social order, the general public must remain an object of manipulation, not a participant in thought, debate, and decision.”

 


 Noam Chomsky Fonte: The Intercept


 

A asserção é contundente. Todavia, o percurso percorrido pelos media tradicionais parece corroborá-la. Com efeito, no chamado mundo livre a liberdade de imprensa confronta-se com mecanismos censórios, mais ou menos dissimulados, desde logo com raiz na questão essencial da propriedade: quem está no controle? Ninguém é proprietário de media para ler, ouvir e ler o que não quer. Controlar a comunicação social representa negócio e poder. Esse poder deve ser exercido de modo a não erodir as ilusões necessárias quanto à bondade do sistema. A conjuntura, porém, é desfavorável a esse desígnio. Razões de ordem geoestratégica como que obrigam a tomar partido, mas fazê-lo oblitera os critérios jornalísticos, levando as notícias para o domínio da propaganda. O trabalho dos jornalistas, e não apenas nos canais especializados de televisão, resume-se, muitas vezes, a ser o de go-between, enquanto aos comentadores é cometida a tarefa de fabricar os consensos necessários à formação da opinião pública que há-de respaldar as decisões políticas. No caso da guerra na Ucrânia, entra pelos olhos dentro. No Médio Oriente, também. Dito isto, o que só por si daria farta discussão, não quero deixar de anotar que noutros espaços que não o do chamado mundo ocidental, o condicionamento, com diferentes contornos e enquadramentos, é semelhante. Até por isso, quem se reclama do exclusivo da democracia em contraponto com a autocracia, não deveria proibir canais de televisão. Já nem falo do martírio imposto a Julian Assange.

 

Dito isto, prometo voltar, ainda que abreviadamente, ao tópico do jornalismo cultural, mas não sem antes abordar sumariamente a questão das redes sociais. Poucos como Manuel Castells terão saudado com maior ênfase a explosão da Internet. Disse ele, com razão, que a rede tomou conta da vida quotidiana obrigando a reexaminar todo o transitado da sociedade industrial. De rompante, a tecnologia digital impôs-se nas empresas, na política, no trabalho, na cultura, em suma em todas as áreas de atividade humana. Castells vê na educação o elemento decisivo para tirar partido desse mundo novo. Tem razão, ainda que, apesar de intocadas as possibilidades, o aparecimento dos novos media trouxesse inquietações até então desconhecidas.

 

A esse respeito, o documentário de Jeff Orlowski The Social Dilemma (2020)  é esclarecedor. Lidar com as redes sociais não é um problema menor. Nelas coexistem, de forma latente, utopia e distopia. A utopia do acesso à razão e ao conhecimento sem limites. A distopia da irracionalidade imposta por modelos de negócios cuja busca do lucro não enjeita, antes exige, a par da manipulação, a mentira e a disseminação da ignorância. São aterradores os testemunhos de executivos do Facebook, Instagram, Google e outras plataformas quanto ao mundo novo dos algoritmos. A produção deliberada de fake news é altamente lucrativa. Não falta quem daí tire vantagem seja qual for o domínio, designadamente no campo político. Mais, para funcionar o sistema tem de criar uma espécie de junkies, incapazes de viver sem estarem conectados à rede, uma vez que, só assim, dependentes e dormentes, podem ser vendidos como produto aos anunciantes.

 

4. Salvar o Jornalismo? Cultura.

 

Castells distingue três modalidades de comunicação. Interpessoal, de massas e aquilo a que ele chama auto-comunicação de massas, a qual é interactiva e possibilita a circulação de mensagens à escala planetária em tempo real. Esta última é uma consequência da Internet. No que nos ocupa, importa ter em conta o seguinte. As três modalidades não se excluem, pelo contrário coexistem. Sempre foi assim. A História da Comunicação é cumulativa e evolutiva, um novo medium não substitui os anteriores. Todavia, é elementar reconhecer que o impacto da Internet e das plataformas digitais no jornalismo é brutal. Desde logo, por razões óbvias, no plano tecnológico. Depois, na estrutura organizacional das empresas. Por último, na equação do contexto cultural, onde emergem novas relações de poder, seja de ordem política, seja em termos de mercado.

 

Uma primeira constatação remete, com efeito, para a acelerada perda de anunciantes dos meios tradicionais, da qual resultou uma verdadeira hecatombe no papel com extinção de numerosos títulos da imprensa. O fenómeno é global. As empresas que resistiram, tiveram de adaptar-se ao digital, levar a cabo despedimentos, renovar o pessoal e investir no jornalismo em linha. Algumas dessas experiências foram positivas. Também há notícia de novas publicações digitais, diversificadas, com excelentes resultados. Quem foi bem sucedido, porém, regra geral, não prescindiu de fazer a transição observando os princípios do jornalismo. De facto, só eles garantem a fiabilidade e a credibilidade, salvaguardando a leitura plural propícia ao debate das ideias. É preciso reconhecer, no entanto, que na paisagem mediática abundam armadilhas e tentações. Reside nela um paradoxo: com o espaço da comunicação saturado veio a rarefação do simbólico e uma crescente desrealização do real. Identifico, de passagem, duas ou três razões para isso.

 


Manuel Castells, parafraseando McLuhan, fala da Galáxia da Internet e diz que a rede é a mensagem, mas adverte: “Estamos num tempo sombrio da história, porque o nosso super-desenvolvimento tecnológico  está em contradição com o nosso subdesenvolvimento moral e político.” - in Jornal Opção de 2024/04/28 (entrevista a Euler de França Belém) Foto: Alchetron

A estonteante velocidade de circulação das informações, muitas vezes, impede os jornalistas, sobrecarregados de tarefas incompatíveis com a sua função mediadora, de assegurar o escrutínio que é a primeira condição da qualidade. Há, evidentemente, exceções. Por exemplo, quando os investimentos são avultados e a aposta é na excelência como garante da credibilidades. O bom jornalismo fica caro. Mas, não é essa a regra. Na maioria dos casos, prevalece a política dos multiskilled jobs que dispensam a especialização. No pressuposto de que os jornalistas têm de adaptar-se às novas maneiras de comunicar adquirindo novas competências, o que é verdade, abriu-se uma caixa de Pandora. Fala-se agora de jornalistas multimodais. Na prática, utilizando o jargão popular, vão a todas, competindo, inclusivamente, com as incontáveis plataformas que veiculam uma avalanche de conteúdos num ambiente de entropia sem precedentes. Na televisão, o infotainment assentou arraiais. Há até quem o considere uma nova categoria jornalística. Também se fala em jornalistas cidadãos, como se qualquer cidadão equipado com meios móveis estivesse habilitado a fazer jornalismo. Não tarda, haverá, quem sabe, jornalistas de realidades alternativas, porventura, especializados em pós-verdade. Se calhar, já há…

 

Constato, igualmente, o seguinte. Há hoje uma atrofia significativa quer no plano do uso da língua quer no da linguagem. A necessidade de dar resposta quase instantânea às questões da atualidade leva à redução significativa dos textos. São curtos, por vezes, telegráficos, de rápida apreensão. Aproximam-se da lógica da publicidade. Por vezes, recorrem, com prejuízo do estilo, a simplificações gramaticais e vocabulares idênticas às que encontramos nos usuários das redes socais. Escasseia o contexto o que é, também, sintoma de anemia da memória e, certamente, de uma relação frouxa com a Cultura. No âmbito da linguagem, o lastro benigno do cruzamento com outras disciplinas, por exemplo, a Literatura no caso da imprensa, e o Cinema no caso da televisão, parece ter-se esfumado. A reportagem televisiva, por exemplo, não articula as imagens sintacticamente como sucede no cinema. Ilustra os textos previamente gravados ou, como se diz na gíria, “pinta” os textos. Cola planos, enjeita a montagem. E a montagem, como se sabe, tem uma função semântica. Discursos e narrativas pobres, porque disruptivos no campo da significação, favorecem o reforço dos estereótipos. E se os estereótipos têm alguma utilidade em termos da economia do conhecimento, revelam-se contraproducentes quando se trata de exigir a racionalidade indispensável ao relacionamento com o mundo. Em suma, não creio exorbitar se disser que o panorama é preocupante. Em Portugal, por maioria de razão. Todos os números nos atiram para os últimos lugares dos países europeus em termos de literacia mediática e consumo da imprensa - os jornais em papel que subsistem, salvo um ou outro caso, têm tiragens ridículas.

 

Enfim, não gostaria de terminar sem uma palavra de apreço a quem se dedica ao jornalismo cultural, especializado. Enquanto ideia e prática, não é apenas uma trincheira de resistência. É, apesar de todos os constrangimentos e eventuais cedências, uma centelha que aponta caminhos no sentido de encarar o jornalismo  no seu conjunto como atividade cultural indispensável ao funcionamento da democracia. É esse o bom jornalismo. O jornalismo que requer a memória, respeita os critérios, estimula o pensamento, promove o debate e observa a ética e deontologia. O jornalismo que acolhe o novo e se adapta, respeitando-se e, portanto, fazendo-se respeitar. O jornalismo como Cultura. E a Cultura liberta, diz António Lobo Antunes, .

 

 António Lobo Antunes: “A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos." Foto: Paris Review  

Termino. O que aqui deixei foram breves reflexões do campo da crítica dos media. Para avançar é preciso olhar as coisas para além das máscaras. Pensar, expondo crenças e mitos. Agir dialecticamente. Se o fizermos - esta é a parte retórica na qual gostaria eu de acreditar - apesar dos constrangimentos, as notícias voltarão a ser mesmo notícias. Saberemos identificar o processo da sua construção através da linguagem que permite operar a metamorfose do real em realidade. Evitaremos o grotesco. Seremos capazes de distinguir o verdadeiro do falso, de fazer escolhas conscientes e informadas. Não confundiremos as notícias com a mentira e a propaganda. Teremos um magnífico mosaico de informação plural, com mais jornalistas especializados e menos comentadores, que nos permitirá exercitar o espírito crítico e fazer escolhas conscientes. E, acima de tudo, desvendaremos o segredo das fábricas de consensos que alimentam as ilusões necessárias.  

 

Jorge Campos

Porto, 16 de maio de 2024

 

Nota: Estes apontamentos serviram de base à minha intervenção no 2º Encontro de Jornalismo Cultural promovido pelo Centro de Formação de Jornalistas, na Fundação António José de Almeida, Porto, em 16 de maio de 2024.

 

 

 

 

 

 

 

 

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 2 de jul. de 2024
  • 15 min de leitura

Atualizado: 6 de ago. de 2024


O texto que se segue tem duas partes e termina com um alerta. A primeira, reporta à minha experiência na guerra colonial. A segunda, corresponde a um esforço de memória no sentido de recuperar a vivência desse dia claro e limpo, como lhe chamou Sofia. Obviamente, ambas as partes são complementares. O alerta é tão simples quanto isto: o fascismo está de volta. Com base neste tripé, construí uma crónica pessoal do meu 25 de Abril assente na convicção de que cada dia transporta consigo memórias e afectos de outros dias. Só esse quadro de referências, o qual confere espessura e dá sentido ao modo como um acontecimento é vivido, permite compreender a indescritível explosão de júbilo do povo em comunhão com os soldados dos cravos vermelhos no cano das espingardas.  

 

Do turbilhão das emoções desse dia inicial nunca poderia estar ausente a memória dos anos de chumbo, o peso da opressão, o labirinto das incógnitas, as feridas em aberto, os mortos, como se tudo isso fizesse parte de uma sequência cinematográfica, em flashback, necessária à montagem do filme redentor.

 

Só essa memória justifica tão desmedida alegria, logo feita utopia.


 

25 de Abril no Porto Foto: Ricardo Pereira, fotojornalista de O Comércio do Porto

Guerra, 1970-1973: calendário e melancolia 

 

Em Furancungo, uma pequena vila perdida no distrito de Tete, em Moçambique, há pouco mais de dúzia e meia de casas e um quartel onde estaciona um batalhão de Caçadores do Exército Português. A um quilómetro de distância fica a base da Força Aérea ocupada por reduzida guarnição, mas apta para o apoio a operações militares em larga escala. Uma vez por semana aterra na pista de terra batida do aeroporto o avião com mantimentos, material médico e o mais valioso de todos os bens, os aerogramas com notícias que todos aguardam com ansiedade. Volta e meia passam por ali helicópteros utilizados em combate, prenúncio ou consequência de dias mais agitados quando deles desembarcam militares das tropas especiais.

 

Sou alferes miliciano. Tenho um pequeno gabinete situado no extremo do enorme barracão onde se situa a área do Comando, no quartel. Partilho-o com dois subalternos, um furriel e um cabo, igualmente milicianos, de quem seria cúmplice nas ideias e de quem haveria de ficar amigo. Trato da papelada de assuntos correntes com o auxílio de ambos. Na parede, afixamos um calendário, no qual vamos descontando, dia a dia, o tempo em falta para regressar a casa, eles a Lisboa, eu a Lourenço Marques.

 

Não fosse a guerra, Furancungo seria um lugar aprazível. Fica num planalto a mil e duzentos metros de altitude e regista temperaturas amenas. Para os lados de Tete, os termómetros sobem facilmente acima dos quarenta graus. Na periferia do povoado amontoam-se as palhotas miseráveis do chamado aldeamento indígena onde vivem centenas de negros cuja relação com a tropa é distante, dir-se-ia de silenciosa suspeição ou de disfarçada hostilidade. A pequena casa colonial onde estou alojado, partilhada com mais alguns camaradas de armas, é modesta. Não tem mobília, à excepção das camas atribuídas a cada um, de uma pequena mesa de madeira de tampo quadrado e quatro cadeiras, mas tem uma bela varanda ao longo da qual, a curta distância, rua abaixo, há jacarandás lilases e buganvílias vermelhas, uma dádiva de cores, esplendorosa, a vibrar no ar dos dias. 

 

Passo longas tardes de fim-de-semana nessa varanda, sentado num banco corrido, as costas apoiadas na parede, a ler. Nos livros encontro o antídoto da circunstância, a vastidão do mundo que a imaginação permite. Furancungo é, na verdade, um lugar cercado. De quando em vez, ao longe, ouvem-se tiros. Explosões. Dou comigo a pensar. Não fosse a minha mãe ter adoecido gravemente, estaria agora, provavelmente, em Estocolmo, na companhia dos três camaradas que optaram por desertar, após a fase da recruta, em Boane. Boane, a curta distância de Lourenço Marques, foi um tempo e um lugar de muitos sinais. Alguns, premonitórios. Lá irei.

 

Todos os anos, os antigos combatentes que passaram por Furancungo como parte do Batalhão de Caçadores no qual fui integrado, reunem-se para um almoço. Não por menor apreço aos que comigo partilharam esse episódio da guerra colonial, fui apenas a três ou quatro. O último, o dos 50 anos, foi em Barcelos. Tive dificuldade em reconhecer a maioria dos presentes, sujeitos, como eu, à implacável erosão do tempo. Foi lida uma longa lista de companheiros já falecidos, muitos deles recordados na singela exposição fotográfica organizada para o efeito a partir do espólio pessoal de alguns sobreviventes. Nestas duas fotos, vê-se o morro do elefante e o quartel onde passei mais de dois anos da minha vida. Na periferia do quartel, o chamado aldeamento indígena.

Apesar do isolamento, Furancungo é bem melhor do que outros aquartelamentos na zona de Tete onde a Frelimo, de há três ou quatro anos a esta parte, intensificou as acções de guerrilha. Há dias bons e dias maus. O convívio com os oficiais do quadro, as mais das vezes, é uma rotina obrigatória que serve para iludir o tempo. Com os milicianos, pelo menos com alguns deles, é diferente. Há maior proximidade, por vezes, cumplicidade. Também acontece o inesperado. Um sargento da velha guarda, veterano de todas as frentes da guerra colonial, ébrio, sai da sua messe a disparar em todas as direcções. Estou na linha de tiro. Sem consequências. Os soldados têm as suas particularidades. Alguns, transitaram da inocência trazida de aldeias remotas de Portugal para a dureza implacável exigida no combate. É uma questão de sobrevivência. Outros, entram em depressão. Sofrem à distância com as más notícias que chegam de casa, sem poder acudir. Outros, ainda, organizam farras frequentes. Animados pela bebida e acompanhados do violão, soltam as estrofes de um cancioneiro cada vez mais anti-colonial. Há um denominador comum: todos, de uma maneira ou de outra, passam, aqui, por uma metamorfose.

 

Do quartel avisto o morro do elefante, uma saliência rochosa que se ergue da paisagem como se fosse um paquiderme. É o único elefante destas paragens, um enorme elefante de pedra. Abundam cobras sinuosas disfarçadas no interstício das pedras ou na folhagem das árvores. Felinos esfomeados espreitam à distância a possibilidade de uma presa. Hienas, há muitas. Invadem o povoado adormecido, à noite, com as suas gargalhadas sinistras, à procura de despojos no meio dos lixos. Procuram, também, animais mais pequenos como as galinhas, em tempos numerosas ao ponto de no aldeamento indígena haver um obelisco à sua memória, pasme-se, um monumento à galinha. Agora, até o frango, que há-de ser no churrasco, a única iguaria servida nas cantinas onde os soldados se encharcam em cerveja, chega congelado de avião da cidade de Tete.

 

Entretanto, recebo más notícias. Sentado no banco corrido da varanda onde habitualmente leio, as costas encostadas à parede, seguro nas mãos, não um livro, mas um aerograma recebido na véspera. Li-o vezes sem conta como se a repetição da leitura pudesse mudar o que lá está. Diz-me a minha mãe ter sido diagnosticada ao meu pai a mesma doença da qual ela mesma padece. Um pequeno nódulo no pulmão, em fase precoce, escreve, de prognóstico favorável. Em todo o caso, acrescenta, tendo ela de ir a Joanesburgo para exames de rotina, o pai, que é médico, decidiu ser também observado. A notícia atinge-me com a violência de um murro no coração. Ainda me faltam, pelo menos, doze meses para cumprir a missão em Furancungo e, além desses, outros seis para completar o tempo total de serviço militar. 

 

 Foto de cima, com o Carlos Amaral, de quem fiquei amigo. Em baixo, convívio da passagem do ano de 1972 para 1973 com oficiais milicianos, sargentos e praças. Estou ao centro, em pé. Acabava de fazer 24 anos.  

Em Boane, durante a recruta, recordo, tive um alferes instrutor peculiar. Com sentido de humor dizia o que tinha a dizer através de aforismos como se estivesse a sinalizar possibilidades de futuro. No meio do exercício extenuante de marchas prolongadas, em fila de combate, sob a canícula, tinha por hábito fazer pausas à sombra da copa das árvores, em lugares discretos, afastados do quartel, para conversar. A conversa ia sempre bater na política. E na guerra. A maioria dos futuros oficiais limitava-se a ouvir. Só em grupos mais restritos alguns expressavam opinião. Uns, sendo cautelosos, eram abertamente contra o regime. Outros, filhos de colonos há muito estabelecidos em Moçambique, defendiam a solução militar. Juntando fantasia à fantasia, acreditavam, por exemplo, no apoio incondicional do exército da África do Sul em caso de necessidade. Eu e mais três, sempre os mesmos, falávamos, embora com cautela retórica. Havia suspeitos entre nós. Um deles viria a ser destacado dirigente da Renamo.

 

Para mim, o quadro era claro. Vigorava um regime apodrecido, crente na mística de um passado mitológico, isolado no concerto das nações, inevitavelmente condenado a soçobrar. Por incapacidade de entender os sinais do tempo, perderia as colónias da pior maneira, porventura, de forma trágica para a maioria dos colonos brancos, em estado de negação, numa espécie de torpor alimentado pelo modo de vida e pelo protocolo do simbólico sujeito ao espartilho da censura, bem como à propagação da mentira. O que tinha sido a célebre operação Nó Górdio? Um sucesso, dizia a propaganda oficial. Falso, dizíamos nós. Iniciada a 1 de julho de 1970, sob o comando do general Kaúlza de Arriaga, mobilizara mais de oito mil homens do Exército, Marinha e Força Aérea. Mas, ao contrário do propalado por uma imprensa moçambicana habitualmente impedida de se referir à guerra, a Frelimo não fora erradicada das áreas por ela controladas. Pelo contrário, sob o comando de Samora Machel, parecia ter avançado para novas direcções. E, no crepúsculo do domínio colonial, seria ainda possível matar a ideia de independência? Assim íamos falando, falando, falando, em Boane. 

 

Nas cantinas de Furancungo, falam outros. De quando em vez, no meio da algazarra, circulam boatos, rumores, fragmentos de histórias do outro mundo. Por gabarolice, ou toldados pelo álcool, ou por ambas as razões, soldados de passagem fazem-se eco de massacres de negros no distrito de Tete. Uns mais recentes, outros mais antigos, mas todos com participação de torcionários da polícia política, por vezes, com o apoio de tropas da Rodésia do Sul de Ian Smith. No ar saturado do fumo dos cigarros, do cheiro a suor, do hálito a vinho, ficam a pairar nomes de lugares como Mucumbura, Marara e outros que a memória não reteve. Também o nome de um tal Chico, de apelido Kachavi, torturador negro da polícia política de Tete, circula com insistência. Chico é conhecido por “o matar todos”. Esses nomes, de lugares ou de pessoas, de algozes ou de vítimas, estão ligados a atrocidades inimagináveis tais como lançar fogo a palhotas com pessoas dentro, fuzilamento sumário de velhos, mulheres e crianças, mutilações, espancamentos, violações e, até, massacres por engano.

 

 Com razão ou sem ela, as visitas de Kaúlza de Arriaga aos aquartelamentos eram comentadas pelos soldados como sendo de mau agoiro. Seria isso uma consequência da notoriedade ganha pelo general na operação Nó Górdio, de má memória. Kaúlza passava o tempo entre Loureço Marques e Nampula. Na capital, vivia numa casa próxima da minha. Via-o de quando em vez, de passagem. Uma visita feita a tropas especiais estacionadas em Furancungo, estava eu de oficial de serviço, viria a ser comentada como fazendo prova da fama que o precedia.

Entretanto, novo aerograma dá conta da necessidade da mudança dos meus pais para Portugal. Vão ser observados num hospital em Londres. Não devem regressar a Moçambique. Consigo autorização para estar com eles uns dias antes da partida. Aproveito a boleia do bimotor que nos traz o correio para seguir para Tete onde irei aguardar o voo para Lourenço Marques do dia seguinte. Não há outra cidade como Tete. Chega-se e está-se no faroeste. O sol morde, os termómetros atingem temperaturas impensáveis. Sob uma poeirada espessa que mal deixa respirar circulam viaturas militares a alta velocidade quase atropelando soldados apressados, desleixados, vindos do mato, prontos a irromper pelas portas de batentes dos bares que ladeiam as ruas em busca de cerveja e putas, ou não fosse essa a razão de ser que ali os traz após meses de castidade forçada.

 

O jipe que me foi buscar ao aeroporto deixa-me no Hotel Zambeze, um luxo que me concedo a pensar em ar condicionado, num banho demorado e numa refeição com direito às opções da carta do publicitado melhor restaurante do lugar. Na recepção sou informado de que o ar condicionado não funciona, mas que o quarto é excelente. É decrépito. Do chuveiro saem apenas uns pingos de água castanha. No famoso restaurante panorâmico do último andar, sugerem-me uma lagosta acabada de chegar. A lagosta, seca como palha, é devolvida à procedência. Vem um bife. Duro como corno. Mas o vinho é bom. E o avião, boa notícia, parte manhã cedo. Em Lourenço Marques, um amigo faz a que será a última fotografia da minha família, todos juntos, pai, mãe, irmão, eu próprio. Parecemos bem-dispostos.

 

Feito num trapo, estou de novo em Furancungo. Ao cair da tarde de um dia como os outros, pouco antes de anoitecer, a guerrilha nacionalista desencadeia um ataque furioso. Dias antes, o general Kaúlza de Arriaga, numa demonstração arrogante de poder, tinha estado de visita a uma Companhia de Comandos envolvida em operações na zona. Lembro-me de ter comentado: “Veio provar que está a ganhar a guerra, quando for embora aparece a Frelimo a provar o contrário.” Assim foi. O ataque dura dez minutos, talvez um pouco mais. Parece-me uma eternidade. Sou o oficial de dia. O barulho das explosões é ensurdecedor. Sinto medo. Os soldados alinhados a meu lado na trincheira, alguns das tropas especiais, apesar da experiência, parece também não se sentirem à vontade. Alguém do nosso lado responde fazendo fogo de morteiro. Tal como começou, tudo acaba. Sem consequências de maior. De repente. Só o solitário morro do elefante foi atingido.

 

Se pouco me recordo dos detalhes desse dia de há mais de cinquenta anos, nem por isso a memória deixou de reter duas coisas. Uma, a melancolia que me invadiu ao pensar na família. Outra, a chamada, via rádio, no início do bombardeamento, já com a confusão instalada, de um oficial superior instalado na messe de oficiais, a 500 metros de distância, que perguntava: “Ó nosso alferes, o que é que está aí a acontecer?” Esplêndida metáfora.

 

O Hotel Zambeze, em Tete. Por aqui passavam oficiais e milicianos em trânsito. Era visto como o ex-libris da cidade, embora, na altura, estivesse bastante degradado.

Ao fim de dois anos de Furancungo, até do Hotel Zambeze sinto saudade. Sei que da próxima vez que por lá passar, não mais voltarei. Será a última. Entretanto, quase deixei de ler, já não reparo nas buganvílias e nos jacarandás, é como se as cores tivessem esmorecido, falo pouco, o morro do elefante não me interessa e o monumento à galinha ainda menos. As hienas continuam a aparecer à noite, soltando gargalhadas sinistras, e o tipo da polícia política anda de um lado para o outro dando ideia de não ter mãos a medir. Raramente vou às cantinas. Frequento a messe de oficiais à hora das refeições. De quando em vez jogo póquer. Sou péssimo jogador. Há um tenente-coronel por quem nutro estima. Anda muitas vezes com um livro debaixo do braço, é educado, de bom trato, extremamente discreto. Nunca lhe ouço um comentário sobre os rumores que circulam cada vez com maior insistência. Um dia, pergunta-me se conheço o Crime e Castigo de Dostoievsky. Digo-lhe que sim. Ele acha extraordinário, eu também: Raskolnikov e o sentido da punição. Não dizemos muito mais. Ficamos a olhar um para o outro.

 

Abril de 1974: júbilo e redenção

 

Sou jornalista de O Comércio do Porto desde o dia 10 de abril. Fundado em meados do século XIX, é dos mais prestigiados e o mais antigo dos grandes jornais portugueses. Nele colaboraram inúmeros grandes vultos das letras e das artes como Guerra Junqueiro, João de Deus, Bordalo Pinheiro, Malhoa, Roque Gameiro, Vianna da Motta, Camilo Castelo Branco e tantos mais. O jornal fica na Avenida dos Aliados, no centro da cidade, instalado num edifício de linhas clássicas da autoria do arquiteto Rogério de Azevedo. Tem uma redação experiente, porventura, condicionada por anos de observância de rotinas censórias. Mas também tem um grupo de jornalistas mais novos, certamente mais ousados. Uns e outros recebem-me bem, disponíveis para ajudar o estagiário acabado de chegar. Estou grato a quem me proporcionou a oportunidade de cumprir um sonho antigo. Assisto, sem surpresa, ao protocolo associado ao lápis azul. Sinais do tempo. Começo a frequentar tertúlias, na companhia de colegas do meu e de outros jornais, em bares abertos noite dentro que são espaços de liberdade e cumplicidades.



Há 50 anos, entrei, pela primeira vez, no edifício de O Comércio do Porto, um projeto do arquiteto Rogério de Azevedo em colaboração com o arquiteto Baltazar da Silva Carro. O edifício onde esteve instalado o mais antigo e um dos jornais portugueses mais prestigiados, com a sua Redação e parque de máquinas, ostenta agora na fachada o logotipo de uma multinacional de vestuário. O interior foi reconvertido em apartamentos de luxo. É um sinal dos tempos numa cidade que, a cada dia que passa, vai hipotecando história e identidade.

No dia 25, por volta das onze horas da manhã, acordo. Vou até à varanda do apartamento. Está um belo dia de Primavera. Sempre me intrigou a presença de um pastor que por ali anda com as suas ovelhas, num descampado, não muito longe da foz do Douro, onde vivo. Há uma explicação. Em tempos, esta foi uma zona periférica, predominantemente rural. Muitas casas têm ainda pequenas hortas. Um dia em que estivemos à conversa, disse-me: sou o último.


Vou arranjar-me para mais um dia de trabalho. O meu turno começa a meio da tarde. Lembro-me que ao início da madrugada, a caminho de casa, ao passar junto do quartel-general, na Praça da República, pareceu-me haver movimento fora do habitual. Não lhe atribuí importância de maior até porque o revés do levantamento das Caldas da Rainha de 16 de março esfriara a expectativa de um golpe militar contra o regime no curto prazo. Enquanto faço a barba, ouço rádio. Estranho. Está a emitir marchas militares. Presto atenção. São lidos comunicados das Forças Armadas pedindo às pessoas para ficarem em casa. Apresso-me. Temo o pior, um golpe da extrema-direita, eventualmente liderado pelo meu velho conhecido general Kaúlza de Arriaga. Enquanto me visto precipitadamente, pego no telefone. Começo a fazer contactos. Gostaria de ter visto a minha cara naquela ocasião. Custa-me a acreditar, está em marcha uma acção armada para derrubar o fascismo. Uma coluna militar vinda de Santarém ocupara o Terreiro do Paço, em Lisboa. Respiro fundo. Saio a correr como se estivesse dentro de um filme.



25 de Abril no Porto. Foto de Ricardo Pereira, tirada de uma das janelas de O Comércio do Porto sobre a Avenida dos Aliados.

Em alvoroço, procurando manter a calma, ao volante de um velho Citroen Ami 6, comprado em segunda mão, conduzo cautelosamente pelas ruas da cidade. Avanço rumo ao centro. Constato a presença de um número cada vez maior de pessoas, por vezes hesitantes, por vezes mais afoitas, que se juntam nos passeios. Pela cabeça passam-me imagens desordenadas da vertigem dos últimos tempos. São flashes. Fragmentos. Sem cronologia. Ocorrem-me frases curtas que de tanto ouvidas se atropelam não respeitando o tempo dos verbos nem os advérbios do lugar. É o sibilar de Salazar, Tomás e Caetano, são murmúrios de conversas em segredo nos cafés, palavras de ordem em manifestações, em plenários, cargas policiais em câmara livre, o eco do latejar em surdina de armas ao longe, muito ao longe. Puxo atrás a fita. Estou em Portugal há meia dúzia de meses. O meu pai faleceu estava eu ainda em Lourenço Marques a cumprir o tempo em falta do serviço militar. Já desmobilizado, no Porto, acompanhei as últimas semanas de vida da minha mãe. Eu e o meu irmão, rodeados de familiares e amigos, levamo-la para junto do nosso pai na Senhora da Aparecida, Lousada, num dia do inverno de 1973. Chovia copiosamente. Abalado, à deriva, sem meios, comecei a procurar trabalho. Voltei à universidade. Fiz novos amigos. Embrenhei-me na vida cultural. 

 

Olhando em volta, girando o volante de um lado para o outro como quem manivela uma moviola, ensaio os primeiros passos da montagem de um filme experimental. No monitor imaginado sucedem-se as imagens. Na película há pequenas luzes que acendem e apagam. Revertem em súbitos clarões. Vejo a guerra do Yom Kippur. Fez disparar os preços dos combustíveis. Há longas filas de automóveis junto das estações de serviço. O governo decretou o racionamento. Em Santiago do Chile, o presidente Salvador Allende cai de armas na mão no bombardeamento do Palácio de La Moneda. O golpe militar, apoiado pelos Estados Unidos, coloca no poder um déspota sanguinário, Pinochet. O Palácio de La Moneda está em chamas. Da já distante vigília da Capela do Rato não há imagens. Há palavras que passam de boca em boca. Convocada para meditar sobre a paz, o que vale por dizer, sobre a guerra colonial, a vigília faz deflagrar uma espiral da repressão. As cadeias enchem-se de presos políticos. Em Londres, é possível ver que o The Times faz notícia de primeira página com o massacre de Wiriyamu, em Moçambique, perpetrado por tropas portuguesas. Correm rumores da detenção na Machava, perto de Lourenço Marques, dos padres que o denunciaram. Nas matas de Madina do Boé, o PAIGC proclama a independência da Guiné-Bissau. Ouve-se na BBC, na Rádio Portugal Livre, em Argel. Fala-se do regime do apartheid da África do Sul. De Nelson Mandela. Do Vietname. Das greves. Da fraude que foram as eleições para a Assembleia Nacional no Outono de 1973. Das associações de estudantes, todas elas encerradas à excepção de duas, uma em Lisboa, outra no Porto. Revejo em câmara lenta imagens da polícia de choque a entrar à bastonada no Café Piolho, na Praça dos Leões. Eu estava lá. Revejo a polícia montada a invadir o átrio da Faculdade de Ciências fazendo empinar os cavalos. Eu estava lá.



25 de Abril no Porto. Foto de Ricardo Pereira, tirada de uma das janelas de O Comércio do Porto sobre a Avenida dos Aliados, numa altura em que, por vezes, a polícia ainda ameaçava quem saía à rua.

Deixo ficar o carro na famosa garagem de O Comércio do Porto, um projeto de arquitectura modernista. Tenho tempo. Vou a pé para a tasca onde habitualmente almoço numa viela apertada perpendicular à fachada do quartel da GNR, a cinquenta metros do Hospital de Santo António. Apesar dos apelos na rádio, a presença das pessoas nas ruas continua a crescer. Há como que o gradual nascimento de uma outra cidade, uma cidade na qual os papeis sociais estão a inverter-se. Não é a polícia a abordar as pessoas, são as pessoas a irem ter com os agentes que dão mostras de desorientação. Manifestamente, não cumprem ordens que terão recebido. Aparece uma ou outra viatura militar. São dos nossos, gritam uns festejando os soldados. Outros permanecem calados, olhando com desconfiança. Na tasca, frequentada por companheiros de todos os dias. reina a excitação. Ainda sem certezas trocam-se informações, rumores, o que se ouviu, o que se sabe de fonte segura. A coluna militar do Terreiro do Paço está agora a pôr cerco ao Quartel do Carmo onde se julga estar refugiado Marcelo Caetano. A RTP estará ocupada por um denominado Movimento das Forças Armadas. Juntando as peças, ligando antecedentes, tudo começa a fazer sentido.

 

Subo as escadas que conduzem à redacção. Ambiente, tenso. Hesitante. Alguém diz que é preciso ter calma, ainda não se sabe ao certo o que se passa. Uns parecem incomodados. Outros mantém uma atitude expectante. Outros, ainda, exibem largos sorrisos. Há quem se interrogue quanto a enviar ou não o material para a censura. No dia seguinte, dissipadas as dúvidas, o jornal faz uma segunda edição. Na primeira página, do lado direito, há a foto de um tanque do Regimento de Cavalaria sob aclamação dos populares, que tomara o quartel do Comando Distrital do Porto da Legião Portuguesa. Na legenda fala-se em missão cumprida. Abaixo, em grandes parangonas, lê-se, em maiúsculas, RESTAURADAS AS LIBERDADES FUNDAMENTAIS. Em 24 horas, multidões nunca vistas inundaram as ruas e uma explosão de cravos vermelhos cobriu a cidade das cores da Revolução.

 



O texto poderia ficar por aqui, mas tenho ainda duas ou três breves notas a fazer. A primeira é de mágoa. Lamento profundamente que os meus pais não tenham podido estar na festa. Como eles teriam gostado! A segunda nota prende-se com a vivência pessoal desse tempo tão extraordinário. Dois ou três dias após a madrugada redentora de Abril vou em serviço do jornal ao quartel-general do Porto. Encontro o tenente-coronel de Furancungo que gostava de Dostoievsky. Folgo em vê-lo, trocamos um aperto de mão, faço-lhe uma série de perguntas. Não sei responder-lhe, diz ele, discreto, educado como sempre, vai ter de falar com os oficiais que estão ali ao fundo da sala. À excepção de um major, eram todos jovens capitães e alferes. Não voltei a ver o tenente-coronel. Tenho pena. Duas ou três semanas mais tarde, não consigo precisar, de novo no quartel-general, na mesma sala, está um homem de meia-idade, estatura meã, que fala energicamente com um pequeno grupo de militares. Usa um boné à velha maneira bolchevique, tem pêra e bigode, faz lembrar Lenine. Aproximo-me do grupo. O homem do boné olha-me fixamente. Faz-se silêncio. Até que ele diz: tu és o Jorge. Ele é o irmão mais novo da minha mãe, o meu tio Carlos Costa, militante histórico do Partido Comunista Português, preso ou na clandestinidade desde o fim da adolescência até ao dia da Revolução. Vira-o pela última vez no forte de Peniche, antes da célebre fuga de 3 de Janeiro de 1960. A última nota, faço-a a contragosto. Dou um salto no tempo. Mudo de parágrafo.

 

25 de Abril no Porto. Foto: Ricardo Pereira, fotojornalista de O Comércio do Porto, no dia 26 de Abril, já o povo inundava as ruas.

Durante a campanha para as eleições legislativas de 2024 entrou-me pela casa dentro, através de uma reportagem televisiva, a porta-voz para a juventude do partido da extrema-direita. Trazia afivelada a máscara capaz de transformar um rosto agradável num pesadelo tumular, ou seja, a máscara do fanatismo, da crença absoluta em algo de transcendente gravado na pedra como se tudo o mais fosse simplesmente desprezível. Perante uma sala onde alguns faziam a saudação fascista, proclamou: “Nós sabemos que somos superiores, esteticamente, moralmente, politicamente, historicamente, nós sabemos que somos superiores.” Ela repetiu palavras de Javier Milei, presidente da Argentina. Talvez não soubesse que aquelas mesmas palavras eram, basicamente, as de Mussolini após a famigerada Marcha sobre Roma de 1922. Um século mais tarde, quando se comemoram os 50 anos da Revolução de Abril, os velhos manuais da peçonha, o fascismo, estão de volta. Em defesa da Liberdade, cada um fará o que lhe aprouver. De preferência, na rua. Sem tréguas.

 

1º de Maio de 1974, Porto. Jornalistas de Abril. Eu estou ao centro, o José Gomes Bandeira à minha esquerda e o Luís Humberto Marcos à minha direita, um pouco atrás. Jorge Ribeiro, do lado direito da foto, e o Jorge Cordeiro, do lado esquerdo. Seguram o estandarte do Sindicato dos Jornalistas, o Germano Silva, à esquerda, e o Fernando Semedo, à direita. Também estão identificados o Serafim Ferreira e o António Sousa. Infelizmente, alguns já não estão entre nós. Sinto a falta.

 

Jorge Campos

 

Porto, 7 de abril de 2024

 

 

P.S. Este texto foi originalmente publicado, numa versão mais reduzida, na revista Ecossocialismo de Abril de 2024. Resulta de um convite que me foi dirigido para fazer um relato pessoal do meu dia 25 de Abril de 1974.  

 

  

 

 

 

 

 

 

 

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 15 de fev. de 2024
  • 1 min de leitura


Há seis anos, fiz na Assembleia da República uma intervenção relacionada com a necessidade de agir de forma determinada face à agressão de jornalistas em recintos desportivos. Por extensão, pretendia-se acautelar a sua integridade física e garantir a sua liberdade de acção. Foi um intervenção pela liberdade de imprensa e pela liberdade de expressão.

 

Na altura, fiz críticas muito severas ao modo como se processavam determinados programas desportivos na televisão, na verdade, programas de futebol, visando os discursos incendiários, carregados de intolerância e irracionalidade.

 

Se houve por efeito um travão temporário a impor alguma contenção verbal e emocional, a verdade é que se tratou de sol de pouca dura. Pouco tempo passado - embora deva dizer-se, em abono da verdade, que sempre houve estações e estações - o estilo ordinário e arruaceiro voltou aos estúdios. Com uma agravante. Instalou-se no discurso político. O palavreado e os tiques fascistas do líder da extrema-direita, por exemplo, são uma extensão dos dichotes e maneirismos que ele próprio utilizava ao perorar sobre futebol. Foi, aliás, o futebol que o levou para a ribalta.

 

Hoje, infelizmente, a situação da comunicação social parece encaminhar-se para um beco sem saída. No plano editorial, o desequilíbrio é gritante, tamanha é a inclinação à direita. No plano laboral, a precariedade é a regra. No plano dos desempenhos, é o que se vê. A democracia é atingida num dos seus pilares fundamentais.

 

Dito isto, o caso da Global Média é paradigmático da actualidade. Se há seis anos a situação era má, agora é bem pior. Abaixo, são apontados alguns antecedentes. É ver. 

 



 

 

 

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Jorge Campos

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        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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Arquivo. Princípios, descrição, reflexões e balanço da Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura, da qual fui o principal responsável. O lema: Pontes para o Futuro.

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Notas, textos de opinião e de reflexão sobre os media, designadamente o serviço público de televisão, publicados ao longo dos anos. Textos  de crítica da atualidade.

Notas pessoais sobre acontecimentos históricos. Memória. Presente. Futuro.

Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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