Há uma fotografia, tirada ao ar livre sob a copa de uma grande árvore, na qual o meu avô materno ocupa o centro da imagem tendo ao lado a mulher, minha avó, e, à volta, os seis filhos, ainda crianças, entre os quais a minha mãe. Estão sentados ou reclinados no solo, sendo óbvio o cuidado do fotógrafo em replicar uma composição pictórica, seja respeitando as linhas de fuga do olhar, seja dispondo as figuras de modo a criar simetrias e equilíbrio de volumes. A fotografia deverá ser de 1930. O fotógrafo é desconhecido. O local, provavelmente, o quintal da ampla, embora modesta, casa de campo da família, em Fafe. A ocasião, talvez um dia de domingo, no Verão.
Veste o meu avó um fato escuro, está de gravata e tem o chapéu na cabeça. A minha avó usa um singelo vestido branco de manga curta, tal como a minha mãe. Os cinco rapazes, apesar da diferença de idades, estão de calções e camisas brancas, todos de igual. Por vício da leitura de imagens, intuitivamente, divido a fotografia em duas linhas paralelas horizontais, outras duas verticais. Da convergência dos traços, no espaço central, está o mais jovem elemento do grupo. Tem dois anos. Sentado ao colo do pai, é fácil perceber pela expressão travessa o quanto terá sido difícil mantê-lo quieto. É o meu tio Carlos Costa, futuro dirigente histórico do Partido Comunista Português.
Costuma dizer-se que o passado encerra sempre dois presentes, o que foi e o outro em relação ao qual é passado. Dito de outro modo, o actual presente condiciona a percepção do presente do passado. Portanto, se, por um lado, podemos sempre estabelecer uma cronologia e enumerar factos com segurança bastante, por outro, é-nos impossível evitar o peso da mitologia que o tempo foi sedimentando. Da sua biografia consta que, ainda adolescente, em Fafe, a sua terra natal, já o Carlos passava muito tempo entre os trabalhadores industriais da Rua da Fábrica. Cedo começou a envolver-se nas lutas operárias, bem como em acções de solidariedade para com os republicanos da Guerra Civil de Espanha. Aderiu ao Partido Comunista Português aos quinze anos. Em 1950, com mais cinquenta militantes e simpatizantes do PCP de Fafe, compareceu perante Tribunal Plenário do Porto acusado de subversão no quadro da actividade do Movimento de Unidade Democrática Juvenil, do qual foi um dos fundadores. A sentença foi extraordinária. Dava-o como inocente por falta de provas. Contudo, condenava-o a um ano de “medidas de segurança” para evitar “grave perigo de repetição de factos criminosos”, o que, na prática, permitia prorrogar a prisão por tempo indeterminado.
Do tempo desse processo há também uma fotografia. Na verdade, são três, tamanho passe, alinhadas numa tira umas a seguir às outras. Mostram um jovem bem parecido de olhar determinado. Do lado esquerdo, o jovem está de perfil. Ao centro, de frente para a câmara. Do lado direito, em enquadramento a três quartos. O fotógrafo fez o registo, a preto e branco como, certamente, o terá feito em inúmeras outras ocasiões. Em baixo, escrito à mão: Carlos Campos Rodrigues da Costa. Segue-se uma data: 30/11/48. É a primeira fotografia da PIDE de alguém que haveria de conhecer todas as cadeias do país. Ao longo dos anos, seguiram-se outras fotografias. Sempre a preto e branco. Sempre a mesma técnica, de perfil, em plano frontal e com enquadramento a três quartos. O jovem bem parecido da juventude foi dando lugar a um homem maduro em cujo rosto são visíveis traços do endurecimento que sempre acompanha a luta e as vicissitudes dela. Nunca desalento. Se foi perdendo cabelo e ganhando peso, o olhar revela a vontade férrea de quem escolheu viver no limite, ao serviço de uma utopia, porventura, para ele, redentora. Torturado vezes sem conta nos calabouços da polícia política, passou longos períodos no isolamento. Chegou a estar quatro anos detido preventivamente sem julgamento. Da boca do juiz do Tribunal Plenário Criminal de Lisboa, em 1957, ouviu uma condenação a dez anos de prisão maior, mais “medidas de segurança”. Após a leitura da sentença, levantou-se e exortou os outros réus a prestarem homenagem, ali mesmo, a dois camaradas assassinados. Gerou-se a confusão. Acabou por ser retirado à força da sala. Em 1960, participou na mais célebre fuga de presos políticos do Estado Novo, quando Álvaro Cunhal, na companhia de outros camaradas, se evadiu do Forte de Peniche.
A lista de episódios é demasiado longa para dela se dar conta por inteiro. Como a minha família vivia em Moçambique, pessoalmente, apenas o vi duas vezes, ambas na prisão, durante um período de férias. Era ainda miúdo. Voltei a encontrá-lo dias depois do 25 de Abril, por mero acaso, no quartel-general do Porto, antecipando um reencontro planeado. Nos últimos tempos da clandestinidade residiu, com Margarida Tengarrinha, sua companheira, num modesto apartamento em Matosinhos. Sob disfarce, dava explicações de matemática enquanto exercia funções partidárias ao mais alto nível. E assim continuou a ser durante anos a fio após a clara madrugada. Um dia, muito mais tarde, comecei a recolher material para fazer um filme. Recuperei novas fotografias. Ao cotejar as datas nelas inscritas com a historicidade, recuperando contextos, fui criando relações entre o que é denotação e o que dela pode ser inferido. Ou imaginado. O presente do passado, entrando em confronto com o passado do presente, sugerindo hipóteses, foi esbatendo o peso do mito, de certo modo, humanizando-o, revelando um tempo novo, em suspenso. Ao documentário que tenho entre mãos dei o nome de Comunista.
Não me foi fácil lidar com o filme. E não é. O meu tio passara a divergir gradualmente da orientação do PCP. Filmei-o, em Fafe, Peniche e Lisboa, com largos intervalos. Um dia encontrei-o muito agitado, a andar de um lado para o outro, à espera da chamada que não chegava de alguém do Partido. Lera no jornal sobre “o afastamento da linha estalinista” no Congresso que se avizinhava e pretendia saber se poderia usar da palavra. Fumava cigarro atrás de cigarro. Passava horas agarrado ao computador que, aliás, dominava mal. Estaria ligado a um blogue chamado Pelo Socialismo, bem como a uma pequena editora. Volta e meia oferecia-me um livro. O último foi Um outro olhar sobre Stáline de Ludo Martens. Não pude ir ao seu funeral. Pedi a uma das minhas primas que o filmasse com um telemóvel. O caixão ia coberto com uma bandeira vermelha com os símbolos do comunismo, mas sem referência ao PCP. Na ocasião, disse Margarida Tengarrinha:
«Toda a vida do Carlos foi movida pelo ideal revolucionário. Não uma revolução mansa travada entre gabinetes e parlamentos, mas uma revolução para derrubar a sociedade capitalista, pela emancipação dos explorados e oprimidos, pela conquista do poder pelo proletariado. A esse ideal deu toda a sua vida, desde os 15 anos até aos 93 anos - até à sua morte. E como todos os revolucionários sofreu corajosamente prisões, torturas, calúnias e até mesmo ataques nas suas próprias fileiras. Manteve sempre a força e a coerência - a luta era o seu elemento e lutou sempre com uma paixão, força e tenacidade coerentes com os ideais que ele considerou a sua missão na vida. Despedimo-nos do Carlos, um verdadeiro exemplo do que é ser comunista!”
Jorge Campos
Porto, 1 de Maio de 2024