"Il vaut mieux rêver sa vie que la vivre, encore que la vivre, ce soit encore la rêver."
Marcel Proust
Um belo dia, não sei exatamente quando, alguém me sugeriu a realização de um documentário sobre Mário Cláudio. Faria parte, tanto quanto me recordo, do conjunto de iniciativas pensado para as comemorações dos seus 50 anos de vida literária. Esse tipo de trabalho não me era estranho. Concedeu-me a sorte biografar para a televisão diversas figuras proeminentes da cultura portuguesa. Com todas elas, durante o processo de construção da narrativa, aconteceu, não diria algo de extraordinário, mas de relativa surpresa posto ter encontrado como denominador comum a ideia difusa, todavia inquestionável, de há muito as conhecer. Com Mário Cláudio não foi assim. Continuo sem saber bem porquê, sendo certo, no entanto, quando penso no assunto, entrever a silhueta furtiva do poeta Tiago Veiga.
Este texto reporta a essa experiência de quase quatro anos de duração, intermitente, devido a dificuldades relacionadas com a montagem do projeto, pese embora a história ter sido pensada inicialmente de modo a sugerir ocupar-se apenas de três dias consecutivos na vida do escritor. De tão dilatado período de execução resultou a necessidade, na parte final, de proceder a uma actualização em função de situações entretanto verificadas. Começarei aqui pela questão do nome do autor, depois falarei de duplos, mais ou menos oblíquos, somando referências literárias a procedimentos de índole cinematográfica. Quem souber da biografia de Tiago Veiga (2011) e tiver visto Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio poderá encontrar algum interesse no que se segue. Quem não souber e não tiver visto, também, se a interação de palavras, frases e parágrafos, associada a planos, cenas e sequências, puder de, algum modo, estimular a imaginação.
O documentário tem um início festivo, apesar de o ecrã surgir a negro. Em fade in, de pé e enquadrado de costas, ao centro, surge destacado o escritor. Percebe-se que escreve, saber-se-á, depois, num inseparável bloco de notas. A profundidade de campo permite identificar um coreto. Em cima do coreto uma banda. Um maestro. A música, primeiro em surdina, logo se torna exuberante. Corte para o maestro, grande plano. Corte para Mário Cláudio: grande plano.
nomes. Ao contrário de Miguel Torga e de Eugénio de Andrade, dois dos meus biografados, Mário Cláudio filho de uma família da burguesia do Porto, veio ao mundo em berço de ouro, como antigamente se dizia. Torga, o médico Adolfo Correia da Rocha, um transmontano de São Martinho de Anta, foi buscar o pseudónimo a uma pequena planta bravia, dir-se-ia invencível, dada a resiliência, abundante na sua terra natal. Tudo o que o rodeava, a começar pela confortável mas austera casa de Coimbra, era revelador de uma devoção sem limites ao propósito de escrever. Torga serve na perfeição ao escritor e ao homem que conheci. Quanto a Eugénio de Andrade chamava-se ele, na verdade, José Fontinhas e era funcionário da Segurança Social, nascido na Póvoa da Atalaia, pequena aldeia da Beira Baixa. Tinha parcos bens e habitava, na companhia de um gato, um pequeno apartamento despojado, para os lados de São Lázaro, no Porto. Ignoro a razão da escolha do pseudónimo literário que o projetou como um dos poetas mais amados, lidos e traduzidos de Portugal. A Mário Cláudio, foi dado o nome de Rui Manuel Pinto Barbot da Costa, mais tarde licenciado em Direito e com esse nome autor de um ensaio intitulado Para o Estudo do Analfabetismo e da Relutância à Leitura em Portugal (1979). Habita ele não uma, mas duas casas, uma no Porto, outra em Paredes de Coura, tão repletas de sinais reveladores de um certo estilo barroco quanto os primorosos textos saídos da sua mão. Tanto quanto julgo saber, a mudança de nome deve-se tão somente ao facto de ser outro aquele que escreve, segundo ele, mesmo quando escreve sobre si mesmo, diria eu. É aqui, não sendo pseudónimo nem heterónimo, que entra Tiago Veiga.
Tiago Veiga (2011) é uma obra com cerca de 800 páginas na qual nos é proposto conhecer, finalmente, um dos nossos poetas mais notáveis, todavia, pouco conhecido, em parte, suponho eu, por vontade própria, ou não tivesse ele vivido uma vida tão singularmente tecida de sobressaltos, enganos e labirintos. Já nos primeiros anos deste século, quem pela primeira vez me falou da personagem, aliás, pouco ou nada dela sabendo, foi Manuel António Pina, numa daquelas então já raras tertúlias do Café Piolho, no Porto, onde outrora meio mundo se juntava para dar à língua sobre os motivos mais diversos, fossem eles pertinentes ou extravagantes. Referiu Pina a originalidade de Os Sonetos Italianos (2003) de Veiga, resgatados por Mário Cláudio, acrescentando ser grande a sua expectativa de saber mais sobre alguém de estatura literária possivelmente comparável à de Pessoa. A conversa ficou por aí e não pensei mais no assunto. Porém, tempos volvidos, chegou às minhas mãos a monumental biografia do misterioso Tiago Veiga - “a vida de um poeta quase desconhecido escrita por um grande ficcionista” - da autoria da única pessoa que poderia ter levado a cabo tamanha empreitada, ou seja, Mário Cláudio.
De uma elegância e erudição invulgares, o livro recupera a memória histórico-cultural do século XX, com ênfase no mundo literário, levando o leitor ao encontro de muitas das suas figuras de maior relevância, justamente, pela mão de Tiago Veiga. Este, porém, sempre desconfiado de eventuais benesses que esses conhecimentos pudessem trazer-lhe, sobretudo nas Letras, mostraria desconforto no convívio com os pares, à excepção, porventura, de Teixeira Gomes, com quem privou em Londres, na juventude, embora num processo de gradual afastamento. Apesar da roda da fortuna lhe ter sido favorável nos momentos mais críticos, quando tudo parecia desmoronar-se à sua volta, o homem viveu sempre na esfera das reticências. Foi assim desde o dia em que veio ao mundo. À mãe, uma adolescente de nome Berta Maria, fizeram-na sair grávida, às escondidas, de Venade, Paredes de Coura, onde vivia, para ir parir nos confins de Castro Laboreiro, clandestina e horrendamente. Ao pai, um rapazola mal afamado, filho de Ana Plácido e de Camilo Castelo Branco, perdeu-se-lhe o rasto. E ao menino, nascido do pecado, foi dado o nome de Inácio, ao qual se acrescentaria Manuel dos Anjos, mas não o apelido paterno. Assim começou a saga de Tiago Veiga, o “infante algo bravio”, criado por duas tias na Casa dos Anjos, futuro poeta viajante de temperamento incerto, difícil para si próprio e para quem com ele haveria de lidar.
imagens, espelhos. Quando comecei o documentário sobre Mário Cláudio, logo me ocorreu ser ele renomado biógrafo, autor, por exemplo, da chamada Trilogia da Mão, na qual, em três livros, nos fala de Amadeo (1984), Guilhermina (1986) e Rosa (1988) - o pintor Amadeo de Souza-Cardoso, a violoncelista Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho, ceramista de Barcelos. Na introdução à sua biografia de Tiago Veiga, escreve: “Quem quer que se atreva à escrita da biografia de uma figura pouco favorecida pela notoriedade, e sobre a qual quase nada se sabe, sujeita-se a enfrentar um enredo de perplexidades.” Para o meu propósito de o biografar a ele, Mário Cláudio, a frase só serviria por metade. Primeiro, o favorecimento pela notoriedade nunca se colocou, visto tratar-se de um dos escritores portugueses mais prolíficos e que maior reconhecimento recolhe. Quanto ao enredo de perplexidades, aí, já a conversa é outra, ou a outra metade.
Bastaria entrar na sua casa do Porto para se ficar perplexo com a multiplicação de objetos meticulosamente organizados, nos corredores e nas várias divisões, tão diversos quanto: fotografias de antepassados entre as quais, há uma, desbotada pelo tempo, de Jacinta, a vidente de Fátima; brinquedos da infância como se essa fase da vida continuasse presente no dia a dia; retratos dele próprio, todos muito diferentes, segundo o olhar de artistas plásticos da sua amizade; uma infinidade de livros arrumados com critério, ocupando paredes inteiras de alto a baixo, sobressaindo, pareceu-me, À la Recherche du Temps Perdu de Marcel Proust; máscaras de Veneza alinhadas em prateleiras, eventualmente rostos dele próprio, certamente testemunhos da sua paixão por Itália; uma bela gravura de Gil Teixeira Lopes a fazer lembrar um crucifixo como se fosse uma imagem protetora colocada acima da cabeceira da cama onde dorme; uma profusão de óleos, desenhos, gravuras e serigrafias, de temática e estilo diversos, dando cor às paredes e sentido à sua volta; numerosas distinções literárias traduzidas em recortes, diplomas, estatuetas; os famosos leques com assinatura de notáveis da pintura; na sala de estar, um piano de cauda; na secretária de trabalho, imagens do amigo de sempre, Michael Lloyd, do pai e da mãe.
Para se conhecer a história destes últimos, pai e mãe, é preciso saber de António e Maria, personagens de Tocata Para Dois Clarins (2010), uma das minhas fontes primárias. Em 1936, em pleno Estado Novo, iniciaram eles o namoro que, quatro anos mais tarde, havia de os levar ao casamento, do qual nasceria o autor do livro. A viagem de núpcias teria Lisboa como destino. Aí se fazia a Exposição do Mundo Português, ideia megalómana de transplantar as partes do mundo colonial para Belém saída da chamada Política do Espírito do chefe da propaganda, o igualmente megalómano, todavia, genial, António Ferro, amigo de artistas futuristas, como Almada, apaixonado pelo Cinema, visita de Hollywood e autor dos maiores panegíricos sobre Mussolini alguma vez escritos na imprensa portuguesa. Dessa estadia na capital do império, da impressão nela causada, me deu conta a mãe de Mário Cláudio, uma admirável senhora, frágil, com mais de 90 anos, que encontrei ocupada à procura do lugar certo para as peças de um puzzle de grandes proporções, colocado sobre o tampo de uma mesa de estilo, onde se viam caravelas de quatrocentos em fundo azul chumbo a sulcar ondas alterosas, como se dessa busca dependesse um sentido para o mundo e não apenas o sentido de mares nunca dantes navegados. É uma das cenas do filme. Encaixaria, caso fosse possível, no puzzle que é o próprio Mário Cláudio.
Vive ele num edifício de três pisos entalado no gaveto de uma rua para os lados da estação do metropolitano da Senhora da Hora, lugar muito concorrido desde as primeiras horas da manhã, com composições lotadas vindas do Porto e de Matosinhos que se cruzam, anunciando, ainda envoltas nos últimos farrapos de neblina, o despertar da cidade. O escritor ocupa o último piso dessa construção de fachada pouco favorecida pelo traço, sendo visível, da rua, a janela do quarto onde dorme. Tem um novo romance na forja. Passou boa parte da noite a trabalhar nele sob o olhar atento de Eugénio de Andrade, presente em dois retratos na parede, o mesmo Eugénio de Andrade, de cujo helenismo, porventura excessivo, Tiago Veiga suspeitava, mas por quem o seu biógrafo nutria admiração e estima. O livro viria a ser Os naufrágios de Camões (2017): “Que te importa o donde vim, e o aonde vou, se te basta conheceres que escrevo o que ninguém escreve, que invento o que ninguém inventa, e que descubro a cidade que ninguém descobre.”
Uma nesga de luz insinua-se através da cortinas da janela do quarto. Toca o despertador. É o início de um dia que se prevê longo. Mais logo, ao fim da tarde, Mário Cláudio vai estar na Escola Superior de Belas Artes para o lançamento de Retrato de Rapaz (2014), o seu último livro, no qual ficciona a turbulenta relação do mestre do Renascimento Leonardo da Vinci com o discípulo, singularmente belo, embora sem grande engenho, Salai de seu nome. Caberá a Alexandre Quintanilha a apresentação. Ainda mal acordado, o escritor trata da higiene matinal, arranja-se com esmero, mas sem vestígio de ostentação. Joaquim, o afilhado dedicado que tantas vezes o acompanha, vai levar o fidelíssimo cão à rua. Dona Helena, que trata da lide da casa, afadiga-se já a preparar o almoço. A câmara de filmar acompanha a ação. Mário Cláudio sai de casa, no terceiro piso. Estamos a meio da manhã. Desce ele lentamente os degraus da escada em caracol, cujas paredes, tal como no interior da habitação, exibem pintura, havendo, ao longo delas, objetos sem função evidente, de qualquer modo, dando testemunho, uma vez mais, da vida vivida ou sonhada do biógrafo de Tiago Veiga, afinal, a condição do dia a dia dos seus dias. Detém-se diante da porta do apartamento por baixo do seu, habitado pela mãe, retira uma chave do bolso das calças que roda na fechadura, e entra. Encontra-a ocupada com o passatempo habitual, o puzzle. Troca com ela algumas palavras, inteira-se do progresso da construção, depois volta a sair. Maria da Conceição Barbot Costa contar-me-ia, então, a história da infância do seu menino, tendo os costumes do Estado Novo como pano de fundo, e, dir-me-ia, também, da educação dada ao petiz, bem como do tempo em que os namoros eram longos só se materializando em casamento depois de assegurado o indispensável e mútuo conhecimento dos namorados, sem precipitações, como acontece, diz ela, hoje em dia.
deriva. Da mãe voltaria a falar-se à noite, do seu estado de saúde, quando da visita de familiares, Luís Filipe Barbot Costa e a mulher, mas falar-se-ia, sobretudo, de Tiago Veiga, o livro. Aqui chegado, permito-me uma deriva, que é, também, uma explicação da razão pela qual não houve recurso a críticos literários ou a exegetas da obra de Mário Cláudio. Nada me move contra uns e outros. Eu próprio, em determinadas circunstâncias, fiz questão de utilizar o saber especializado, como sucedeu em Torga (1994), no qual encontrei em David Mourão Ferreira um narrador excepcional. De passagem, porque estamos numa deriva, dir-vos-ei ter sido David Mourão Ferreira umas das pessoas mais extraordinárias que conheci. Mas, com razão ou sem ela, tendo a considerar o recurso a especialistas, enquanto método, como um risco, posto poder condicionar, quando não impor, um ponto de vista com ênfase no juízo da obra em detrimento do conhecimento da pessoa. Razão pela qual, neste caso particular, me pareceu mais adequado conversar com os amigos mais próximos e leitores dedicados, aqueles que leem os livros repetidamente, que conhecem e amam a vastíssima obra de Mário Cláudio, e ficam a aguardar, ansiosamente, pelo livro seguinte. Assim são, quer Luís Filipe Barbot Costa, jurista e primo para quem o escritor é o irmão que escolheu, quer Michael Lloyd, professor de inglês, que ao longo da vida tanto o ajudou a entender quem era. Juntando o testemunho da mãe, é, portanto, evidente a opção pelos afetos, algo, diga-se a talhe de foice, que Tiago Veiga parece nunca ter levado muito a sério, fosse pelas circunstâncias da vida pessoal, fosse por estar embrenhado na turbulência de dar corpo a uma obra incomum, a qual, de resto, se manifestaria indissociável do percurso existencial. O percurso de Tiago Veiga, certamente não por coincidência, tem numerosos pontos de contacto com o percurso do seu biógrafo, embora refractado, digamos assim, em função da distinta cronologia inerente ao tempo histórico de cada, mas, também, por causa de uma espécie de jogo perigoso a fazer lembrar a sequência do labirinto dos espelhos em The Lady of Shanghai (1947) de Orson Welles. Quando o tiroteio se instala, talvez abusivamente - e não o diria não fosse esta parte uma deriva -, vem-me à cabeça a ideia de Veiga, de certo modo, ser reflexo de estilhaços de Cláudio.
fantasmas, sombras, júbilo. Em Astronomia (2015), livro autobiográfico dividido em três partes - Nebulosa, Galáxia, Cosmos - Mário Cláudio explora ficcionalmente a sua história de vida e fala, designadamente, da experiência da guerra colonial, nos anos 60, na Guiné, onde Veiga estivera muitos antes, integrado numa missão de saúde pública relacionada com a tripanossomíase, vulgarmente conhecida por doença do sono. O relato dessa experiência li-o como uma espécie de reverberação de fantasmas induzida, porventura, pela minha própria experiência em África, em circunstâncias semelhantes. Escreve ele reportando a si mesmo, na terceira pessoa: “Sentado à mesa metálica da sua burocrática função, analisa processos e processos que se ocupam de desastres em serviço, violações de nativas, furtos de viaturas, orgias homossexuais, e atos de insubordinação, e que propõem para as mais altas condecorações da Pátria heróis que esmagam a cabeça dos meninos no capot do Unimog, ou que espetam a faca de mato na barriga das grávidas.” Sabemos todos do que fala e de quem fala Mário Cláudio, nunca envolvido em ações militantes, todavia, atento ao mundo, exercendo o juízo crítico no plano da cidadania quando entende dever fazê-lo.
Está ele agora a ler, primeiro em plano geral, depois em plano próximo. A noite vai adiantada. Silêncio. A objetiva faz um travelling óptico até às cortinas entreabertas da grande janela envidraçada da sala de estar. Lá fora, o negrume. É dele que se levanta, em flashback, a ira, rara no escritor, face ao absurdo da guerra, um texto bruto, cru, associado a imagens difusas de um jovem oficial miliciano no teatro de operações que ora se dissolvem no negro ora emergem dele como se de uma fantasmagoria se tratasse.
Recordo que, dias antes da gravação desta cena, fora eu em visita de repérage até Paredes de Coura para para elaborar o plano de filmagens. Tal como sucedera a Mário Cláudio em Janeiro de 1962, também eu subi ao Monte da Senhora da Pena, ao volante, não de um Fiat 1100, mas de um todo o terreno coreano, para finalmente estacionar diante do portão da Casa dos Anjos, em Venade, onde Tiago Veiga habitara intermitentemente e passara os últimos anos de vida. É um casarão antigo com vislumbres de solar aristocrático, erodido pelo tempo, nele parecendo pairar a nebulosa de alguns dos mais próximos do poeta como Hellen Rasmussen, a segunda mulher, saída das brumas da Irlanda, de quem ele pouco terá cuidado. Nem dela, nem do filho de ambos. Deambulando pela casa veio-me à memória a impressão que Tiago Veiga, bem como a sua Casa dos Anjos, haviam causado a Mário Cláudio nesse dia longínquo de Janeiro de 1962 quando, pela primeira vez, se encontraram: “Fui descobrir o nosso homem naquilo que lhe servia de gabinete e biblioteca, uma ampla quadra onde se amontoavam livros e papéis, coexistindo com essa confusão de objectos heteróclitos que ajudam a detectar os picos mais notórios de toda uma história pessoal. Embrulhados em serapilheira, encostavam-se ao que sobrava de paredes rimas de quadriláteros, as quais viria eu a perceber serem os trabalhos de pintura da defunta Ellen Rasmunsen, e à toa pelas prateleiras disseminavam-se bibelots de distintas épocas, e de gosto misturado. (…) Abstendo-se de encetar o diálogo (…) Tiago concedeu-me o tempo necessário à análise discreta do seu habitat.” Foi o que eu próprio fiz quando entrei na Casa da Ramada de Mário Cláudio, a qual, conjuga a sobriedade rural, evidência das raízes do lugar, com uma dimensão mundana encenada com intrigante imaginação, fazendo lembrar, por contraste, mas também pelo peso de uma discreta genealogia comum inscrita na pedra, a Casa dos Anjos de Tiago Veiga, a quinhentos metros de distância.
É domingo. Trata-se de cumprir o último terço do filme. A meio da manhã, vai Mário Cláudio ao volante do automóvel na autoestrada que leva a Valença do Minho, lugar de passagem para Tuy, cujos restaurantes de aprimorada cozinha galega ele gosta de frequentar, não dispensando, igualmente, uma visita à Catedral de Santa Maria, com origem no românico do século XII, bem como ao Mosteiro de Santa Clara, conhecido por Convento das Clarissas ou das Monjas Encerradas para onde, após as aparições de Fátima, foi enviada a vidente Lúcia, de modo a ficar afastada do mundo. No automóvel, a seu lado, segue Michael Lloyd. A conversa recupera memórias de ambos ligadas à paixão comum pela Itália. Vai o dia enevoado, por vezes, cai uma chuva miúda. As escovas do limpa para-brisas como que pontuam o ritmo da viagem. Em frente, o asfalto molhado foge. Ao lado, são altas árvores de florestas antigas que ficam para trás. No tempo e no espaço do ecrã ouvem-se, num excerto de Astronomia, ecos de uma outra viagem: “E chega o momento do rapaz encontrar o rapaz, assim cumprindo um luminoso destino zodiacal. A efeméride desencadeia a rasura das hesitações, e o abraço da verdade, implicativo de árduas, e não raras vezes dolorosas, travessias do dia-a-dia. O outro vem dos nevoeiros nórdicos, terminado o seu percurso de aquisição das sabedorias adequadas ao futuro, realizado numa dessas medievais universidades, de muros de pedra a que as heras se agarram, de torres de relógios dourados que batem as horas certíssimas, e de borracheiras que desaguam no choro convulso, ou na fúria que se liberta pelo escaqueiramento da completa baixela.”
Degustados os diversos pratos do almoço opíparo numa casa de apetites em Tuy, faz-se o percurso da zona histórica numa caminhada durante a qual se fala da genealogia de Mário Cláudio, cuja antiga matriz aristocrática de proveniência diversa combina com a honrada ascendência do campo, bem como da sua obra e experiência de vida pela voz de Michael Lloyd que reitera ser o amigo um homem do Porto, crente na transcendência, em busca do sentido do mundo no absoluto do ato de escrever. O registo obedece agora a técnicas de reportagem, cruzando testemunhos, enquanto os dois homens atravessam ruas estreitas ladeadas de casas seculares até chegarem a uma porta lateral do Mosteiro das Encerradas onde Michael Lloyd vai comprar os famosos biscoitos conventuais em forma de peixe. A monja de clausura, uma das quatro ainda ali residentes, faz-se esperar. Quando chega, nunca sendo vista, entrega as guloseimas através de um pequena janela gradeada, enquanto Mário Cláudio, sentado no banco de pedra que acompanha a parede de fundo do átrio do mosteiro, toma notas, como que iluminando a penumbra. Ou produzindo sombras, não sei bem. Até porque também disso se fala em Tiago Veiga, ou fala Mário Cláudio enquanto Tiago Veiga, das zonas de maior incómodo de si mesmo, deixando antever um processo de auto análise, por vezes doloroso ao ponto de roçar a obscenidade, muitas vezes agreste por imperativo de nada ficar por dizer, assim revelando, na sua contingente humanidade, o ser complexo e vulnerável que é.
epílogo. Mário Cláudio escreve dedicatórias na página inicial de Retrato de Rapaz para envio do livro a amigos e oficiais do mesmo ofício. Segue-se uma entrevista de sete minutos, na qual aparece reclinado num canapé. A iluminação acentua discretamente um dos lados do rosto Fala, dos amigos, de ter sido amado, da mãe. A entrevista é como um apêndice criado para suprir falhas e complementar dados. A mãe de Mário Cláudio, Maria da Conceição, bem como a senhora D. Helena, que lhe tomava conta da casa do Porto, tinham, entretanto, falecido. Não chegaram, por isso, a ver o filme. Além do escritor e das senhoras mencionadas, participaram no filme Michael Lloyd, Luís Filipe Barbot Costa, Maria do Rosário Pedreira, Alexandre Quintanilha, Joaquim Luís Melo e eu próprio. Rui Spranger fez a leitura dos textos de Mário Cláudio, Dimitris Andrikopoulos compôs a partitura musical, Pedro Negrão esteve na direcção de fotografia, Alexandra Prezado e Duarte Ferreira no som e Daniela Santos no grafismo. José Alberto Pinheiro, homem dos sete ofícios, tocou vários instrumentos, fazendo, designadamente a produção e montagem. Como sempre, Mário Cláudio continua a escrever a velocidade estonteante, na linha de afinidades que junta Camilo, Aquilino e Agustina, salvaguardadas as distâncias temporais e de estilo, como faz questão de sublinhar.
P.S. Ao pedir-lhe uma biografia sobre a sua pessoa, ou melhor, ao exigi-la, propusera Tiago Veiga a Mário Cláudio “a realização de um reportagem da sua existência, e da sua atividade literária, tocada pela imaginação de quem assumisse a tarefa.” Acrescenta Mário Cláudio: “Isentava-se dessa maneira o poeta, contaminando-nos com tal virtude, da hipocrisia que consiste em fingir que narrativas de natureza biográfica podem aspirar ao rigor de análise, e à neutralidade da exposição, que as revele tão verificáveis como as leis de Mendel, ou a relação entre carga e descarga eléctrica.” O resultado a que se chegou em Tocata e Fuga: Os Dias de Mário Cláudio, a par de algumas falhas técnicas e de hiatos narrativos, fica-se mais pelo domínio da monografia do que pelo arrojo da imaginação. Ainda assim, permitam-me dizer-vos que, para além da pertinência enquanto documento, há coisas que particularmente me agradam neste filme como aquela cena na capela da Casa dos Anjos onde o escritor e eu, com manifesta curiosidade, olhamos em volta de cima de um púlpito de talha dourada em cujo frontispício há dois pequenos, sorridentes querubins.
Jorge Campos
Porto, Maio de 2023
P.S. Este texto, sem as fotos do filme, foi publicado no excelente livro A VERDADE É DE PAPEL - ENSAIOS PARA TIAGO VEIGA, organizado e coordenado por José Vieira.