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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 11 de dez. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 20 de out. de 2023


Porto da Minha Infância (2001) de Manoel de Oliveira, uma encomenda de Odisseia nas Imagens - Porto 2001

Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, pareceu-me oportuno suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Para os interessados, fica, então, este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Assinalo, desde já, que entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Este primeiro texto, sendo de enquadramento geral, é indispensável para se compreender a estratégia global.


ODISSEIA NAS IMAGENS


Uma das debilidades reconhecidas da cidade do Porto e da sua área metropolitana reside na sua relação com os universos do cinema, do audiovisual e do multimédia, áreas da visibilidade simbólica por excelência. Essa debilidade, cujas raízes tanto se encontram na excessiva centralização do estado com reflexo nas políticas culturais, quanto na incapacidade dos agentes culturais, ligados ou não ao poder autárquico, para darem corpo às suas aspirações e reivindicações, acaba por afectar o desenvolvimento da região no seu conjunto. Contudo, durante um determinado período do governo do Partido Socialista de António Guterres e da gestão municipal do também socialista Fernando Gomes houve vontade e abertura para contrariar esta situação. Foi neste contexto, que o Porto foi Capital Europeia da Cultura.


O evento Odisseia nas Imagens a ele associado surgiu, assim, como uma possibilidade de propor medidas e tomar iniciativas em si mesmas portadoras de um projecto de futuro suficientemente flexível para que a partir dele os eventuais tomadores pudessem prosseguir políticas próprias no âmbito do cinema, audiovisual e multimédia – e do ensino associado a estas áreas – em condições mais favoráveis. Pela primeira vez, tendo em conta a capacidade de produção instalada e os saberes existentes foram avançadas hipóteses de políticas descentralizadas com reflexos a vários níveis, nomeadamente no serviço público de televisão, na criação de áreas de produção de excelência, entre as quais se apontavam o cinema de animação, as curtas metragens e o documentário, bem como no ensino superior.


Concomitantemente, foi pensada uma programação multifacetada que permitisse dar consistência no plano conceptual aos objectivos definidos. É disso que aqui se fala. Disso e da viagem pelo(s) documentário(s) que a Odisseia nas Imagens também foi. Toma-se como ponto de partida a matriz do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura para, num momento posterior, relatar e fazer a avaliação dessa experiência, fundamentalmente naquilo que ao(s) documentário(s) diz respeito. Em todo o caso, uma vez que por razões de coerência a Programação foi pensada de modo integrado, far-se-á referência ao conjunto dos seus articulados, pois só assim se compreenderá o seu alcance geral e a proposta de acção dela decorrente.



Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura: candidatura e enquadramento


A actriz Melina Mercuri, na altura ministra da Cultura da Grécia, fez em 1985 uma proposta de nomeação anual de uma Capital Europeia com o intuito de dar a conhecer as realizações da cidade nomeada abrindo espaço, dessa maneira, à divulgação do imenso mosaico, construído ao longo de séculos, que constitui o património cultural europeu comum. A proposta assentava no consenso alcançado em torno de um conjunto de argumentos a seguir resumidos.


Uma Europa sólida, capaz de enfrentar os desafios do futuro, requer o conhecimento recíproco da diversidade cultural dos povos e países que a integram. Esse conhecimento investe na aceitação da diferença obstando, desse modo, a que essa mesma diferença venha a revelar-se elemento de desagregação. Como tal, a uma cidade Capital da Cultura cabe, entre outros desígnios, expressar a sua identidade, mas fazê-lo de modo a cruzar os particularismos locais com as tendências e abordagens mais cosmopolitas e universais.


À data da apresentação da sua candidatura a Capital Europeia da Cultura o Porto reunia condições excepcionais para responder a esse desafio. Com uma população de 300 mil habitantes e pouco mais de 44 km2 construiu a sua identidade, à semelhança de outras cidades da Europa de dimensão média, ao longo de uma História recheada de episódios que amiúde lhe conferiram um estatuto de privilégio.


Contudo, esse percurso nem sempre foi linear. Pelo contrário, segundo se afirma no texto da candidatura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, “após quase dois séculos de protagonismo e modernidade, o século XX foi para o Porto, sobretudo com o centralismo despótico do regime de Salazar, uma travessia do deserto [1]”. E acrescenta-se: “Só após a revolução de 25 de Abril de 1974, que restabeleceu o regime democrático e reanimou o poder local, foi possível ao Porto sair do marasmo de quase 100 anos e preparar-se para enfrentar o século XXI [2]”.


Diversos factores, com relevância para o trabalho desenvolvido pelo poder local na última década do século passado, contribuíram para que isso viesse a acontecer. No âmbito das realizações do poder local, eventualmente associado ao governo central, contam-se a reabilitação urbana e a dinamização cultural.


Em Dezembro de 1996 a Assembleia Geral da Unesco atribuiu ao Centro Histórico do Porto – uma área de 1,3 km2 correspondente na sua quase totalidade à cidade medieval entre muralhas – a classificação de Património Cultural da Humanidade:


“Aí encontram-se vestígios dos romanos e dos povos do norte; salienta-se o barroco introduzido pelo italiano Nasoni, a expansão urbana iluminista, o neoclássico de influência inglesa, o engenho e a arte de Eiffel, o urbanismo de Barry Parker, a que se seguiram intervenções da Architecture des Beuax-Arts, alguma Art Deco e os primeiros edifícios modernistas [3]”.


Com isto, os portuenses fizeram uma cidade única, “que só podia ser construída naquele lugar exacto, com aquela topografia e aquele rio, com o granito e o ferro, com a arte minuciosa dos seus artesãos, como uma forma própria de viver e conviver [4]”. Neste contexto, a candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura valorizou os aspectos patrimoniais sublinhando o esforço de reabilitação urbana articulado com investimentos avultados na recuperação e construção de equipamentos culturais, designadamente, museus, salas de espectáculos, arquivos e bibliotecas.


Ponte da Arrábida em construção. Fonte: www.portodosmuseus.pt

Essa estratégia, ao desencadear novas dinâmicas em termos de um apoio crescente à criação artística e às indústrias culturais com impacto na criação de novos públicos, muitos dos quais provenientes de uma população de 60 mil estudantes do ensino superior, tornara possível estabelecer um calendário anual de acontecimentos relevantes e participados [5].


A candidatura apresentava, ainda, como razão de merecimento de descriminação positiva, a situação duplamente periférica da cidade, no plano nacional e no contexto internacional, bem como a notoriedade e importância de um conjunto significativo de criadores e de agentes culturais [6]. Identificava, seguidamente, os seus princípios orientadores, basicamente subordinados a dois eixos: cruzar localismo e internacionalização e capitalizar o evento a favor da cidade e da sua população [7].


Estabelecida uma proposta de modelo organizativo para a Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura e após considerações sobre a previsão orçamental, o documento de candidatura entrava na matéria específica da programação cultural, a qual, em função das características e desígnios da cidade, haveria de articular-se em torno de um conceito cuja ressonância metafórica suscitasse uma identificação imediata no âmbito da tradição, conferindo-lhe, no entanto, um sentido prospectivo. Daí o tema das pontes e a consigna Pontes para o Futuro.


Com efeito, o Porto é a cidade das pontes sobre o rio Douro. Todas elas correspondem a momentos determinantes da sua história. A ponte de Gustave Eiffel (1887) é um dos raros exemplares da arquitectura do ferro associado à revolução industrial tardia que o Porto conheceu e marca tanto o imaginário da cidade quanto a sua representação simbólica. O mesmo sucede com a ponte Luís I (1886), inseparável da memória de uma época de prosperidade mercantil. A ponte da Arrábida (1963) coincide com outro momento de expansão da área metropolitana e com a afirmação vencedora da lógica do automóvel. Da autoria de Edgar Cardoso, o seu arco de betão armado foi, à época, o maior do mundo. Trinta anos mais tarde, o mesmo Edgar Cardoso construiu uma nova ponte, desta vez ajustada às necessidades dos comboios de alta velocidade.


Em suma, “a metáfora das pontes, e dos rios que sob eles correm, possui uma coerência e uma riqueza que a criatividade cultural pode explorar, quase explorar infinitamente [8]”. As pontes do Porto, portanto, “são expressão da particularidade do sítio e das vicissitudes históricas da cidade que aqui se instalou e, ao mesmo tempo, impregnam uma mensagem universalista e inovadora que lhes conferem as suas características e os seus criadores; um, Gustave Eiffel, europeu e universal; outro, Edgar Cardoso, portuense e, porque não arriscar, também europeu e também universal [9]”.


A prazo, as Pontes para o Futuro, entendidas como eixos de intervenção estratégicos, criariam condições para projectar o Porto como cidade europeia periférica de dimensão média capaz de dinamizar uma área metropolitana de 1.200.000 habitantes em função da sua competência criativa, científica e tecnológica. Neste contexto, inscreviam-se, naturalmente, propósitos de qualificação do desenvolvimento sócio-económico, de relançamento de negócios e do turismo cultural e da criação ou reforço de áreas de emprego qualificado ligadas às indústrias da cultura e do lazer.


Esperava-se, em suma, reforçar a visibilidade da cidade do Porto no espaço europeu e, como tal, contribuir para a construção da Europa Social e Cultural.



Notas remissivas

[1] . Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, sem páginas numeradas. [2] . ibid. [3] . ibid. [4] . ibid. [5] . Desse calendário constavam, nomeadamente, o Festival de Cinema do Porto (Fantasporto), o Festival de Música Celta, o Festival de Teatro para a Infância e Juventude, o Festival Internacional de Marionetas do Porto, o Festival de Teatro de Expressão Ibérica, o Festival Ritmos/ Festa do Mundo, o Concurso Internacional de Música (piano), o Festival de Jazz do Porto, o Portugal Fashion, o Salão Internacional de Banda Desenhada e as Jornadas de Arte Contemporânea. - Nota do Autor. [6] . Entre outros eram citados os nomes de Agustina Bessa Luís, Manoel de Oliveira, Siza Vieira, Eugénio de Andrade, Sofia de Mello Breyner, Abi Feijó, Fernando Lanhas, Júlio Resende, Ângelo de Sousa, Pedro Burmester, Álvaro Salazar e António Pinho Vargas. - Nota do Autor. [7] . Transcreve-se a seguir a parte do texto de candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura onde esta matéria é abordada.

A - Cruzar localismo e internacionalização organizando um leque coerente de manifestações culturais que dêem prioridade às áreas de produção e apetência de maior enraizamento na cidade;

apresentem produções nacionais e internacionais inéditas; actualizem a memória patrimonial e histórica do Porto, procurando contacto com a realidade contemporânea e as indústrias culturais emergentes; fomentem o partenariado com instituições locais – já inseridas no processo – e o envolvimento da população da cidade; utilizem, além dos equipamentos funcionalmente vocacionados, espaços não codificados ou cuja função original se perdeu; assumam a dimensão festiva da efeméride, diluindo as fronteiras entre ‘actor’ e ‘espectador’; evitem a tentação do espectacular demasiado efémero, sem descurar a repercussão que algumas deverão nitidamente assumir, quer pelo impacto mediático, quer pelo alargamento de horizontes que proporcionam; harmonizem actividades  capazes de atrair o grande público e experiências de pesquisa, vanguarda e inovação; impliquem o público escolar, através de iniciativas que lhe sejam especialmente dirigidas; assumam a vocação do Porto como centro de uma metrópole regional, estendendo actividades às cidades vizinhas e recebendo as suas contribuições; concretizem o tradicional espírito de ligações internacionais do Porto, convidando para programas específicos a desenvolver em 2001 as quatro cidades geminadas com o Porto: Vigo, Bristol, Bordéus e Jena, e as cidades geminadas do nordeste brasileiro e da África lusófona; B - Capitalizar o evento a favor da cidade, da sua população e da sua cultura”. - in Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas. [8] . Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, sem páginas numeradas. [9] . ibid.


(Continua)









Atualizado: 20 de out. de 2023


Cinema de Fernando Lopes

Quando se fala do filme documentário e se procura no Porto algum tipo de equivalente ocorre imediatamente Douro, Faina Fluvial de Manoel de Oliveira. Obra singular no panorama do cinema português, realizado com meios precários no período de transição para o cinema sonoro, o filme de Oliveira pode ser citado sem receio de perder na comparação com outras sinfonias associadas às vanguardas artísticas como Berlim de Waltter Ruttman ou O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov. O cinema documental na cidade conheceu, no entanto, outros episódios, o mais ambicioso dos quais foi a programação da Odisseia nas Imagens no âmbito do Porto - Capital Europeia da Cultura de 2001. Por um período de dois anos, o documentário esteve no centro de um debate cujos efeitos, mais ou menos explícitos ou difusos, se fizeram sentir em diversos domínios. Mas não só isso. O plano apresentado foi multidisciplinar com forte envolvimento educativo. O que se segue são algumas notas soltas, publicadas em 2007, destinadas a enquadrar o que foi a Odisseia nas Imagens, bem como a fazer um balanço sumário. Recupero-as agora dos arquivos numa altura em que passam 20 anos sobre a Capital Europeia da Cultura. Noutra altura, darei opinião detalhada sobre um trabalho cujo principal objetivo foi contribuir para fazer do Porto uma cidade mais ousada e cosmopolita.


A Ribeira do Porto de Nadir Afonso, Pontes para o Futuro

1.0 Ponto de partida: construir Pontes para o Futuro; elaborar um projeto em função do qual a cidade pudesse transformar-se num grande centro de Cinema, Audiovisual e Multimédia com utilização adequada da capacidade instalada no Centro de Produção do Porto da RTP, criação de um Media Park e envolvimento de festivais e escolas do ensino superior; recuperar a memória da cidade de imagens que o Porto sempre foi, de modo a reconhecer-lhe uma identidade a partir da qual fosse possível legitimar um projeto de futuro; recolocar uma questão fundamental do novo milénio: a centralidade da imagem nas suas múltiplas expressões, lançando o desafio da aventura do olhar, ou seja: respirar Cinema, ver uma imagem e tentar compreendê-la enquanto fenómeno perceptivo, procurar entender quais os dispositivos reguladores da sua relação com o espectador, debater os seus mecanismos de significação explorando, transversal e criativamente, as tecnologias a ela associadas na esfera social da arte do século XXI.


2.0 Zona nuclear da aventura do olhar: o(s) documentário(s): um jogo narrativo de permanente afirmação e negação, ocultação e descoberta, cuja matriz dominante reside no Cinema, mas que interage com outros media, como a televisão – e, também, com a fotografia, a rádio e até com a literatura e o teatro; e, cada vez mais, com a parafernália multiméida.


2.1 Programar as narrativas documentais: alguns pressupostos: ficção e não-ficção: a tentativa de distinguir ficção e documentário corresponde a marcar encontro com um conjunto reiterado de evidências, ou seja, quanto mais se avança na reflexão sobre o modo como se constroem os documentários, tanto mais é forçoso reconhecer a presença de técnicas e artifícios comuns à produção ficcionada; contudo, tratando-se de um argumento sobre o mundo histórico, o documentário, ao promover a representação do real, fá-lo na base de um contrato estabelecido com o destinatário: esse contrato prescreve uma norma e contém uma cláusula de negação - a norma: a presença do olhar documentário combina a apresentação da matéria prima do mundo sócio-histórico com a imaginação criadora; a cláusula de negação: o que é dado a ver não é entendido pelo público como ficção; William Guynn: “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário”; Jack Ellis: o documentário distingue-se de outro tipo de filmes em função dos assuntos de que trata, do modo como articula objectivos/ ponto de vista/ abordagem, da sua forma, das suas técnicas e métodos de produção, da sua relação com o público; encarar o percurso das imagens num contexto lúdico de modos de revelação e, enquanto tal, indutor do saber e do saber fazer; assegurar combinações criativas do documentário com as demais modalidades cinematográficas, nomeadamente o grande cinema de autor, bem como com áreas de produção simbólica exteriores ao cinema, numa perspetiva de transversalidade; contrariar a crítica hiperbólica e tentativas dogmáticas de tutela do gosto.


3.0 Zona de intervenção formal: criação de uma rede de parcerias protocoladas capaz de garantir a sustentabilidade do projeto e de fazer reverter o declínio da produção de cinema e audiovisual do Porto; considerar parceiros estratégicos: as universidades e outros estabelecimentos de ensino superior do Porto, a Cinemateca Portuguesa, o serviço público de televisão, os festivais de cinema da área metropolitana, produtores independentes e outros agentes culturais; promover a internacionalização através de contactos com criadores e especialistas contemporâneos, bem como com instituições como a Universidade de Santiago de Compostela, os principais festivais de cinema documental europeus; convocar sinergias no sentido de dar coesão e coerência a estruturas e iniciativas já existentes ou, entretanto, criadas, em função, por um lado, da identificação de tendências e oportunidades na paisagem audiovisual europeia e, por outro, do reconhecimento da importância do investimento na excelência do discurso como condição de futuro; criação de condições para o fomento, a médio prazo, da visibilidade local e regional com base numa produção audiovisual regular dirigida a nichos de mercado privilegiando produções de referência com destaque para o documentário.


4.0 Esboço de uma base de dados de filmes documentais feitos no Porto para efeito de conferir à memória um sentido prospectivo


Alfredo Nunes de Matos, Invicta Film

Contemporâneo de Louis e Auguste Lumière, Paz dos Reis mostrou a Saída do Pessoal Operário da Camisaria Confiança a 12 de Dezembro de 1896 numa sessão no Palácio do Príncipe Real, no Porto, da qual constavam igualmente outros filmes da sua autoria. O Jornal de Notícias desse dia anunciava a exibição de “12 perfeitíssimos quadros, sete nacionais e cinco estrangeiros”. Exibidos durante o intervalo de uma zarzuela, muito do agrado do público da época, os quadros tiveram maior êxito do que o até então obtido pelas vistas estrangeiras.


Este tipo de reportagem ou filme documental seria a imagem quase exclusiva do cinema português do final do século XIX e do início do século XX. Paz dos Reis foi, portanto, não só o nosso primeiro cineasta, mas também o nosso primeiro repórter de imagens em movimento. A maioria dos operadores de imagem da época permaneceu no anonimato. Poucos alcançaram a notoriedade. Entre estes, Manuel Maria da Costa Veiga e João Freire Correia, um antigo colaborador de Paz dos Reis, mas ambos desenvolveram a maior parte do seu trabalho em Lisboa.


A experiência da Invicta Film, com sede no Porto, corresponde ao primeiro grande ciclo do cinema português e está associada à primeira tentativa de levar a cabo uma produção nacional à escala europeia. Entre 1910 e 1925 produziu mais de uma centena de películas documentais.


Alfredo Nunes de Matos foi a figura central deste ciclo do Porto. Em 1910, ano da implantação da República, produziu numerosas reportagens cinematográficas, sobretudo no Norte, fazendo simultaneamente pequenos filmes publicitários de encomenda. Contratou talentosos operadores como Manuel Cardoso e Thomas Mary Rosell, cujos princípios de rodagem observavam a fidelidade à temática portuguesa. Nunes de Matos conseguiu inclusivamente interessar os jornais de actualidades da Pathé e da Gaumont, em França, dos quais passou a ser correspondente.


Durante a I Guerra Mundial a Invicta Film produziu, entre outros, O Embarque das Tropas Expedicionárias para Angola e Moçambique, Exercícios de Artilharia e Grandes Manobras de Tancos, todos eles sobre a preparação de Portugal para entrar no conflito. Produziu igualmente vistas panorâmicas sobre temas de agrado do público como operações de bombeiros, treinos de aviadores, festas e romarias. Em suma, um retrato do País.


A partir de 1918, o prestígio da Invicta ficou a dever-se aos filmes de enredo. Construiu estúdios modernos, criando condições para que o Porto fosse durante alguns anos a capital do cinema português. Apesar das críticas por ter procurado agradar a um público muito vasto, a Invicta Film percebeu a importância do ser genuinamente português para ser mais europeu, formando muita gente do cinema e conseguindo exportar um ou outro filme. Nesse esforço foi acompanhada pela Caldevilla Film, fundada em 1920, e pela Fortuna Filme, criada em 1922. Em conjunto, as três empresas, entre 1818 e 1925, fizeram 25 longas metragens de ficção. Todos os géneros de que o cinema português viria a ocupar-se mais tarde, à excepção da comédia popular, já se encontram no Ciclo do Porto.


A partir de 1922, a Invicta Film começou a sentir dificuldades financeiras para as quais não encontrou solução. O último filme, de 1924, foi um documentário intitulado III Exposição Internacional de Automóveis, Aviação e Sport. Os estúdios reabriram, ainda, uma ou outra vez, a título de aluguer, como aconteceu com as fitas de Reinaldo Ferreira, um jornalista famoso com o pseudónimo de Repórter X. Em Junho de 1931 fechou as portas definitivamente. Nesse ano, morreu Aurélio da Paz dos Reis e Manoel de Oliveira realizou Douro, Faina Fluvial.


Também as revistas especializadas tiveram importância. O Porto Cinematográfico, fundado em 1919 por Alberto Armando, só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936 e desempenhou um papel pioneiro na defesa do cinema sonoro. A partir desta última revista foi criada, em 1924, a Associação dos Amigos do Cinema, pioneira do futuro movimento cine-clubista.


O movimento teve o seu momento alto nos anos 60. Desde o final da Invicta Film até essa altura a produção deixara praticamente de existir, salvo algumas raras excepções. As mais notáveis são dois filmes de Oliveira Aniki-Bóbó (1941) e O Pintor e a Cidade (1956), uma curta metragem de cunho documental com ponto de partida nas aguarelas do pintor António Cruz. Ambas são hoje parte do imaginário do Porto.


O Pintor e a Cidade de Manoel de Oliveira

Através da Secção de Cinema Experimental, por onde passou António Reis, o Cineclube, na tentativa de reanimar a produção da cidade, levou Lopes Fernandes a filmar o Auto de Floripes (1960), um ritual popular da aldeia das Neves, em Viana do Castelo. Manoel de Oliveira fez, por sua vez, três curtas-metragens que são outras tantas obras-primas do cinema português: O Acto da Primavera (1962), eventualmente inspirado no filme de Lopes Fernandes, seu assistente neste filme, A Caça (1963) e As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965).


Em 1967, liderado por Henrique Alves Costa, o Cine-Clube do Porto organizou a Semana do Novo Cinema Português, na qual contou com a presença da maioria dos cineastas mais jovens. As conclusões viriam a ter uma importância determinante para o futuro. Com o passar dos anos, após a Revolução de Abril de 1974, a actividade do Cine-Clube do Porto foi esmorecendo. A produção de documentários, porém, conheceu uma renovação a partir de meados dos anos 90, fosse através de trabalhos para a televisão, fosse pela mão de cineastas independentes como Saguinail e Regina Guimarães. Por outro lado, Manoel de Oliveira, setenta anos após Douro, Faina Fluvial reincidiu com O Porto da Minha Infância (2001), uma encomenda da Odisseia nas Imagens.


5.0 Apontamentos sobre o documentário e a Odisseia nas Imagens


Organizada em módulos, os quais por sua vez se desdobraram em ciclos e iniciativas complementares, a Odisseia nas Imagens foi construída numa perspectiva de work in progress. Os primeiros passos foram dados ainda durante o ano de 2000. A par da recepção e apreciação de cerca de uma centena de projectos externos e de contactos com festivais internacionais cujas experiências pudessem ser adaptadas, foram estabelecidas diversas parcerias de carácter institucional, quer com protagonistas do Porto e da sua área metropolitana, quer com outros agentes no âmbito de uma estratégia de internacionalização conducente à afirmação global da realidade local.


O grau de exigência da Odisseia nas Imagens permitiu mostrar muito do melhor Cinema – e, sobretudo, do filme documentário – alguma vez feito, como facilmente se constata através da programação do ciclo O Olhar de Ulisses. A diversidade dos quatro episódios da Odisseia nas ImagensO Homem e a Câmara, O Som e a Fúria, Apocalípticos e Integrados e Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens – bem como a multiplicidade das suas iniciativas torna difícil fazer um balanço dos resultados alcançados. No entanto, os dados já apurados quanto ao cinema e ao documentário permitem uma estimativa que deverá estar bastante próxima de um retrato final, pelo menos em termos quantitativos.


William Klein, um dos participantes em Como Salvar o Capitalismo. Fonte: Cinémathèque Francaise

No conjunto foram exibidos 791 filmes, não se incluindo, por se tratar de programação autónoma embora integrada na Programação Oficial da Odisseia nas Imagens, os filmes do Fantasporto, do Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde e do Cinanima. Tão pouco, se incluem quer os vídeos passados em diversos eventos como o Media Lounge, quer as dezenas de produções escolares exibidas na secção competitiva do Festival Internacional do Documentário e Novos Média.


Esses 791 filmes, na sua maioria da esfera do documentário ou obedecendo a olhares cruzados sobre o real, foram exibidos em 324 sessões em contextos muito diversificados: em O Olhar de Ulisses, cuja programação foi destacada no site dos Cahiers du Cinéma, numa perspectiva cinéfila, com a participação de numerosos realizadores e especialistas; numa perspectiva de interpelação cidadã, combinando a lógica dos estudos fílmicos e dos estudos culturais, em Como Salvar o Capitalismo ou no ciclo O Choque das Imagens; num sentido de exploração da transversalidade de linguagens em iniciativas como a retrospectiva integral de Errol Morris, os filmes concerto e alguns dos eventos centrados no Media Lounge; no âmbito do trabalho teórico sobre o real, convergindo no documentário, em masterclasses como Os Lugares da Imagem; ou simplesmente debatendo as questões do documentário contemporâneo nas materclasses do ciclo Como Salvar o Capitalismo, cuja tónica se centrou na relação do documentário com a televisão.


Em complemento das principais iniciativas foi publicado um conjunto de catálogos convocando especialistas nacionais e estrangeiros, no qual são recorrentes as matérias respeitantes à História e Teoria do Documentário – O Homem e a Câmara; O Som e a Fúria; Utopia do Real; Resistência; Mr. Death, A América de Errol Morris; Digital Cinema; Visconti, Violência e Paixão; Odisseia nas Imagens.


No seu conjunto a Odisseia nas Imagens teve cerca de 64.500 espectadores de cinema. Este número, porém, não entra em linha de conta com os festivais da área metropolitana do Porto, com os eventos de entrada livre em espaços públicos onde não foi feito controle de presenças, como sucedeu, por exemplo, com as masterclasses, conferências e painéis de debate – na sua maioria esgotaram a lotação das salas – e com as exposições e instalações associadas ao cinema, audiovisual e multimédia. Os 64.500 espectadores respeitam, portanto, apenas aos eventos em relação aos quais foi feito controle de bilheteira, o que não quer dizer que todos os ingressos tenham sido pagos, visto uma parte da lotação das salas estar destinada aos estudantes e professores das universidades e estabelecimentos do ensino superior protocolarmente envolvidas na produção escolar patrocinada pela Sociedade Porto 2001.


Quanto ao índice de ocupação dos espaços utilizados regularmente foi possível identificar uma linha evolutiva de crescimento. A título de exemplo, a principal iniciativa da programação no Pequeno Auditório do Rivoli -Teatro Municipal, O Olhar De Ulisses, registou nos seus quatro módulos as seguintes taxas de ocupação: 41%, 62%, 90%, 61%. Esta quebra final parece ser uma consequência do número invulgar de iniciativas a decorrer em simultâneo não apenas na Odisseia nas Imagens, mas também no conjunto da Programação da Capital Europeia da Cultura. De qualquer modo, em números absolutos, o último episódio da Odisseia nas Imagens foi o que teve maior número de espectadores, cerca de 24 mil.


Para efeito da concretização da Programação global foram estabelecidas 113 parcerias institucionais, sendo que um mesmo parceiro pode ter sido contabilizado por mais de uma vez em função do número de iniciativas em que participou. Critério idêntico é aplicável às 637 participações individuais.


Cruzando dados algumas conclusões poderão ser avançadas.


Em primeiro lugar, não parece excessivo ver nesta evolução do índice de participação um ponto a favor da bondade da estratégia de criação de novos públicos, aliás, de algum modo confirmada pelo estudo efectuado pelo Observatório das Actividades Culturais quando releva a presença de jovens universitários entre os principais frequentadores da Odisseia nas Imagens. Na verdade, todos os indicadores sugerem que a maioria dos novos públicos foi conquistada entre os jovens e, para tanto, certamente terá contribuído quer o envolvimento proporcionado ao nível de acções de formação, quer as parcerias estabelecidas com os estabelecimentos de ensino superior, designadamente em termos de produções escolares.


Estas atingiram os objetivos tendo, inclusivamente, ultrapassado o número de filmes inicialmente acordado, embora, como sublinhou o júri de pré-selecção da Competição de Escolas, a qualidade fosse muito desigual. O júri seleccionou 34 filmes (nove eram documentários), os quais, independentemente da sua valia, se constituíram como um dos legados da Odisseia nas Imagens e ponto de partida para uma atenção renovada à produção escolar de um modo geral e ao documentário em particular. A tal não terá sido alheio o facto de uma parte significativa da Programação ter integrado, numa primeira fase, os planos curriculares de diversos cursos, evoluindo, numa fase posterior, para a realização de seminários, para a introdução de unidades curriculares relacionadas com o documentário e para criação de novos cursos de pós-graduação, dos quais o primeiro, com coordenação da minha responsabilidade, foi O Documentário: O Desafio do Real promovido pela Faculdade de Jornalismo e Ciências da Comunicação da Universidade do Porto.


A avaliar pelo panorama atual (nota: em 2007), não será arriscado afirmar que a experiência antecipou procedimentos contemplados na Declaração de Bolonha, designadamente quanto à aproximação do meio universitário ao mundo do trabalho. Logo no ano lectivo de 2002/2003 o recém constituído curso de Jornalismo da Universidade do Porto ofereceu um mestrado em Cultura e Comunicação, sendo uma das especializações, justamente, O Documentário. De um modo geral, os cursos superiores apostaram mais decididamente na produção escolar, a qual tem evoluído tanto no plano quantitativo, quanto qualitativo. Essa dinâmica permitiu que surgissem vários pequenos festivais de enfoque audiovisual como Black & White da Universidade Católica e ciclos de fotografia e cinema documental como sucede com as Imagens do Real Imaginado do Curso de Tecnologia da Comunicação Audiovisual do Instituto Politécnico do Porto, o qual, aliás, se prepara para oferecer o primeiro mestrado profissionalizante em Portugal em Fotografia e Cinema Documental (Nota: o mestrado continua pujante em 2020).


The Misfits - Exposição da Magnum na Odisseia das Imagens. Foto de Elliott Erwin

Para além do sumariamente elencado, caso venha a fazer-se um estudo mais exaustivo da Odisseia nas Imagens, verificar-se-á a existência de um outro legado não negligenciável. Abreviadamente, ficaram os filmes feitos por encomenda sobre o Porto, as edições em DVD de clássicos do cinema documental, a Casa da Animação, o Museu da Pessoa, associações como Os Filhos de Lumière, o reconhecimento unânime – ou quase – da excelência da Programação, contribuições teóricas para efeito de concretização de políticas descentralizadas para o audiovisual, modelos para a concretização de parcerias, etc., etc... O projecto era para continuar e aprofundar e até tinha algumas garantias. Não foi possível. Paciência. Melhores dias virão. (Nota: a presidência da Câmara Municipal do Porto pelo PSD de Rui Rio não ajudou nada, mesmo nada, muito pelo contrário).


Jorge Campos

Porto, 25 de Setembro de 2007


Publicado em O Cinema no Porto – O Estado da Arte / Revista da Escola Superior Artística do Porto nº.3, 2007. Revisto em 2020.




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Jorge Campos

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        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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Ensaios, conferências, comunicações académicas, notas e artigos de opinião sobre Cultura. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes  quando se justificar.

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Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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