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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 19 de dez. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 20 de out. de 2023

Neste texto, prossegue a elucidação quanto ao ponto de partida da Odisseia nas Imagens. Depois de abordar o legado do cinema do Porto como elemento fundador da programação, seguem-se considerações em torno do papel dos festivais de cinema, das escolas de Ensino Superior ligadas ao ensino da Imagem e do Audiovisual e do Centro de Produção da RTP no Monte da Virgem, então desafiado a participar na aventura da Capital Europeia da Cultura, designadamente, através da possibilidade de criação de um media park. A reflexão em torno destes enunciados constituiu a base da proposta apresentada à Sociedade Porto 2001 para efeito da concretização da programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia, posteriormente designada por Odisseia nas Imagens.


(continuação Porto 2001 - Odisseia nas Imagens III)


Abi Feijó, proponente da Casa da Animação em parceria com Regina Pessoa. Fonte: À Pala de Walsh

Odisseia nas Imagens: Os Festivais de Cinema enquanto elementos de regulação


A Revolução de Abril tinha aberto as portas a outras iniciativas, entre as quais há a destacar o aparecimento dos festivais de cinema, os quais, sobretudo no caso do cinema de animação, viriam a ter impacto numa produção local cujo desenvolvimento foi acompanhado da obtenção dezenas de prémios conquistados nos principais festivais de todo o mundo.


Em Espinho, situado na área metropolitana do Porto, reside um dos melhores festivais europeus de cinema de animação, o Cinanima o qual não só permite uma informação actualizada de tudo quanto de melhor se faz, mas também serve de âncora e estímulo à produção nacional:


“... quando há vinte e cinco anos se lançou o Festival, muito mais do que o exercício lúdico que também foi essa iniciativa havia nos promotores uma enraizada ideia de contemporaneidade atenta a formas de dizer até então se não proscritas pelo menos silenciadas ou limitadas a uma circulação restrita e marginal. A Banda Desenhada ou o Cinema de Animação, por exemplo, ocupavam um território relativamente desqualificado ou, na melhor das hipóteses, confinado a um público infanto-juvenil considerado o destinatário natural de bens simbólicos supostamente mais acessíveis do ponto de vista da significação e elaboração artísticas. Mesmo à esquerda, entendida enquanto espaço de progresso e liberdade por oposição ao conservadorismo da direita, durante muito tempo prevaleceram concepções autorais radicadas em modelos do século XIX, cujas consequências resultaram em conclusões apressadas e, como tal, inadequadas ao ritmo e à compreensão das dinâmicas criativas emergentes. Basta recordar a frequência com que a BD ou a Animação foram sumariamente remetidas para a chamada cultura de massas e, por essa via, imediatamente desqualificadas [1]“.


Foi, portanto, necessário o sobressalto democrático de Abril, que foi também um agitador no plano da criação artística, para que a situação evoluísse numa outra direcção. Pioneiros como Vasco Granja e António Gaio, entre outros, entregaram-se à tarefa de fazer crescer uma arte que há muito os seduzia e que, nessa altura, muito por mérito deles próprios, se encontrava numa fase explosiva de divulgação, afirmação e legitimação. Desse impulso resultaram os primeiros workshops de cinema de animação, nos quais participaram os maiores especialistas do mundo e os quais contribuíram para formar a primeira geração de animadores cujo reconhecimento internacional não tardaria, casos de Abi Feijó, Pedro Serrazina e Jorge Neves e, um pouco mais tarde, Regina Pessoa. O Cinanima foi, portanto, o grande responsável pelo salto em frente dado pelo cinema português de animação, atestado, como se disse, pela atribuição de numerosas distinções um pouco por todo o mundo.


Regina Pessoa, autora, em colaboração com Abi Feijó, da animação de abertura de todas as sessões da Odisseia nas Imagens.. Foto: JM Madeira

As curtas metragens de ficção, por seu turno, constituindo uma parte significativa dos conteúdos simbólicos produzidos pelo audiovisual europeu, têm no jovem cinema português um número significativo de representantes. Atraindo um número sempre crescente de cineastas e desenvolvendo um discurso próprio dão a conhecer os novos criadores que, em Portugal, têm no Festival Internacional de Vila do Conde [2] um fórum especializado. À semelhança do Cinanima também neste caso o festival desempenhava um papel de regulação quer no plano simbólico quer no impulso à produção, na medida em que através da sua Agência da Curta Metragem lhe cabia a responsabilidade da distribuição da produção portuguesa no estrangeiro.


O Fantasporto – Festival de Cinema do Porto – provavelmente o mais popular do País, sendo embora de certo modo atípico na medida em que não tem impacto estruturante comparável ao dos outros festivais mencionados, tem prestígio internacional e é uma bandeira da cidade. Na ressaca da Revolução de Abril, o público começou a deixar as salas, as actividades cineclubistas entraram em declínio e a televisão introduziu uma mudança de hábitos disponibilizando conteúdos de massas até então inéditos, como as telenovelas brasileiras. O Fantasporto contribuiu, de algum modo, para contrariar essa tendência. Logo na sua primeira edição, em 1981 [3], apresentou uma notável retrospectiva de clássicos aparentados com o que então timidamente se designava por cinema fantástico [4].


“Apesar do fantástico aparecer claramente associado à imaginação e ao maravilhoso, numa linha que remonta a Méliès, e num contexto que nenhum cinéfilo desprezaria, a verdade é que o Fantasporto logo apareceu associado nas páginas dos jornais à ideia de sangue, vampirismo, terror e outras enormidades. Na verdade, o que havia era uma programação a pensar na captação de públicos, ora articulando a exibição de filmes recentes aguardados com expectativa com obras de referência da História do Cinema, ora dando a conhecer cinematografias menos conhecidas ou propondo uma releitura de filmes relativamente marginais, sem deixar de convocar os cineastas portugueses [5]”.


Portanto, numa altura em que se acentuavam sinais de depressão, o Fantasporto veio marcar nova viragem na História do Cinema do Porto e da sua área metropolitana ao ousar novos caminhos que permitiram a captação de muitos jovens, cúmplices da aventura empreendida. O Fantasporto juntava-se, assim, ao percurso iniciado alguns anos antes pelo Cinanima – a partir do qual, como se disse, viriam a lançar-se as bases da mais importante produção cinematográfica do norte do País, o cinema de animação, em torno de produtoras como a Filmógrafo e a Alfândega Filmes – e, posteriormente, prosseguido pelo Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde.


Tarde Demais (2000) de José Nascimento, Prémio Porto 2001 no Fantasporto. Fonte: José Nascimento

A partir das considerações em torno da presença do Porto na História do Cinema Porttuguês, da sua memória e do seu presente, surgiu uma primeira sistematização de questões a ter em conta para efeito da definição das linhas gerais da Programação. Essas questões foram as seguintes:


- Qual o grau de identificação da realidade existente com a memória e tradição da cidade em matéria de produção cinematográfica?

- Qual o papel dos cineclubes e o seu grau de adequação às exigências da modernidade no cinema e ao fomento da produção nacional?

- Qual a importância relativa dos festivais existentes na área metropolitana do Porto no quadro das tendências, consensos e políticas europeias para o cinema e audiovisual que apontam para o incremento de uma produção diferenciada e competitiva em relação à grande produção americana?


(Continuar a ler após estas notas remissivas)


Notas remissivas


[1] . Anexo I, p. 180.

[2] . Ver Anexo I – 2.0, 30.0.

[3] . Anexo I – pp. 40-44.

[4] .“Alguns títulos: “O Vento”, de Sjostrom; “O Testamento de Orfeu” e “A Bela e o Monstro”, de Cocteau; “A Atlãntida”, de Jacques Feyder; “O Gabinete do dr. Caligari”, de Robert Wiene; “Metropolis”, “A Mulher na Lua” e “Dr. Mabuse”de Fritz Lang; “Nosferatu”, de Murnau; “O Feiticeiro de Oz”, de Victor Flemming. Da selecção faziam ainda parte cineastas como Hitchcock, Vadim, Malle, Fellini, Tarkovsky, Bergman e Polanski, aos quais se juntavam Werner Herzog, De Palma, Peter Weir, Kaufman e Nicholas Roeg. bem como alguns dos filmes de culto da Hammer Films, entre os quais “Dracula”. – Nota do Autor.

[5] . Anexo I – p. 42.



Odisseia nas Imagens: O Audiovisual e o Ensino Superior


A par dos festivais de cinema, cuja consolidação era um dado adquirido, outros factores contribuíam para introduzir alterações na paisagem audiovisual da cidade, entre os quais as universidades e o ensino superior politécnico com os seus cursos de Imagem e Som, Cinema e Vídeo e, também, de Jornalismo e Comunicação Social. A partir de meados da década de 80, mas, sobretudo nos anos 90, o meio universitário foi sensível ao mundo das Ciências da Informação e da Comunicação, tendo igualmente manifestado um interesse renovado pelas áreas criativas. Surgiram cursos de Jornalismo na Escola Superior de Jornalismo do Porto e na Universidade Fernando Pessoa, cursos de Cinema e Vídeo na Escola Superior Artística do Porto e um curso de Imagem e Som na Universidade Católica Portuguesa. Na Universidade do Minho, com sede em Braga, havia também uma especialização em Jornalismo no âmbito de um curso de Ciências da Informação e Comunicação. E no Instituto Politécnico do Porto surgira o Curso de Tecnologia da Comunicação Audiovisual do qual saía um número apreciável de técnicos para o sector audiovisual.


Por outro lado, uma nova geração de protagonistas formados nestas escolas foi ocupando lugares nos departamentos de Informação e de Programação dos operadores televisivos, ao mesmo tempo que outros iam dando corpo a uma indústria embrionária de conteúdos, nalguns casos com elevado potencial de internacionalização como o cinema de animação produzido pela Filmógrafo ou os seriados televisivos de animação em 3D da autoria da Miragem, cujo Major Alvega viria a revelar-se um êxito de vendas no exterior, pelo menos tendo em conta a habitual omissão de Portugal nos mercados mais representativos.


Em torno destas matérias e da sua articulação com os pontos anteriores, surgiu um segundo conjunto de questões:


- Onde e como se criam e desenvolvem os saberes?

- Qual a relevância da produção escolar?

- Que se produz no Porto em matéria de cinema, audiovisual e multimédia, quem produz, como se produz e em função de que capacidades instaladas e saberes existentes?

- Que potencial de internacionalização tem essa produção?

- Em função das capacidades instaladas e dos saberes existentes o que valeria a pena produzir para o mercado global e com que protagonistas?

- Faria sentido a aposta em nichos de mercado?


Sandro Aguilar, autor de Corpo e Meio (2001) realizado para a série de curtas produzidas pela Odisseia nas Imagens, no âmbito da colaboração com Roterdão 2001.

Odisseia nas Imagens: O Serviço Público de Televisão numa perspectiva descentralizada


Entendeu-se que a resposta às questões enunciadas deveria ser equacionada em função da possibilidade de uma proposta de redefinição estratégica do papel do serviço público de televisão, cuja componente regional denotava a par de uma evidente capacidade de produção instalada um manifesto sub-aproveitamento dessa mesma capacidade. No texto de base [1] elaborado para servir de ponto de partida à proposta de integração da RTP/Porto nos projectos do Porto 2001, numa altura em que estava ainda no poder o governo do Partido Socialista que sucedera aos governos de centro-direita de Cavaco Silva, podia ler-se:


“Qualquer avaliação do Centro de Produção do Porto da RTP é indissociável das medidas levadas a cabo nos últimos anos do cavaquismo. Dir-se-á que foram medidas avulsas, implementadas conjunturalmente, sem uma estratégia previamente definida, enfim, sem uma ideia relativa aos objectivos a atingir, embora orientadas por um princípio geral de contornos indeterminados ao qual poder-se-ia chamar crescimento. A situação actual parece ser a de uma gestão precária da herança recebida [2]”.


Acrescentava-se de seguida:


“Aparentemente, as decisões tomadas ao longo dos tempos foram resultantes de actos voluntaristas, num quadro reivindicativo bipolar, ou seja, às tendências tradicionalmente centralizadoras de Lisboa foi respondendo o Porto, e mais por intervenção da classe política, com desígnios de uma autonomia crescente do seu Centro de Produção. Ninguém terá procurado responder com rigor a uma pergunta tão simples quanto esta: autonomia para fazer o quê [3]”?


Nunca tendo sido dada resposta adequada a esta pergunta, o crescimento do Centro de Produção do Porto da RTP teve um efeito paradoxal: “uma notável capacidade instalada de produzir televisão ora sub-aproveitada ora simplesmente desactivada [4]”. Face a este diagnóstico, e tendo em conta a introdução das tecnologias do cabo e do digital, bem como a abertura da televisão aos operadores privados, resultava evidente a caducidade de modelos e processos longamente interiorizados pela RTP. Assumia-se que por razões políticas e de cidadania a questão do serviço público adquiria novos contornos e maior relevância, nomeadamente em termos do reconhecimento de uma identidade a preservar e de uma cultura a defender “na base de uma diversidade que valoriza o regional, exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização [5]”.


Como corolário do exposto, afirmava-se no documento:


“É neste quadro que deve encontrar-se uma solução para o Centro de Produção do Porto, de tal modo que o seu estatuto de dependência crónica seja revisto e transformado num estatuto de parceria e complementaridade no âmbito da RTP. Essa revisão não deve, no entanto, ser feita a partir de um registo de cedências ou reivindicações, antes deve ser encarado como uma necessidade do serviço público no seu conjunto, por forma a exponenciar as mais-valias da sua componente regional [6]”.


Centro de Produção da RTP Porto.

Resultava daqui um terceiro conjunto de questões:


- Qual o papel a desempenhar pelo Centro de Produção do Porto da RTP?

- Qual a capacidade e vontade de intervenção do Centro de Produção do Porto enquanto elemento regulador de uma produção audiovisual de âmbito local e regional?

- Quais as possibilidades de internacionalização do Centro de Produção do Porto da RTP, nomeadamente em termos de co-produções, num quadro de televisão segmentada e de conquista de nichos no mercado global?

- Qual a abertura da RTP para aceitar debater políticas de intervenção descentralizadas?


Naturalmente, a abordagem destas matérias revestia-se de aspectos delicados. Sendo certo que o documento contemplava questões cuja relevância era indiscutível para alguns sectores da RTP, sobretudo aqueles mais ligados à sua componente regional, nem por isso deixava de se correr o risco de outros verem nas considerações avançadas uma tentativa de intromissão na vida interna da empresa. Para mais, constando da proposta a criação de um media park no qual a RTP Porto poderia assumir um papel central. Fortemente centralizada e quase sempre encarada numa perspectiva instrumental pelo poder político, a RTP tinha uma longa tradição de resistência a reflectir sobre si própria. De qualquer modo, apesar do risco de eventuais más interpretações, lançar Pontes para o Futuro no domínio do Cinema, Audiovisual e Multimédia não poderia deixar de interpelar o serviço público de televisão [7].


Imagem do Guião do genérico animado apresentado por Regina Pessoa e Abi Feijó para a Odisseia nas Imagens.

(Continua)


Notas remissivas


[1] . Anexo III – pp. 25-31.

[2] . Anexo III – p. 27.

[3] . ibid.

[4] . ibid.

[5] . ibid.

[6] . ibid.

[7] . Ver Anexo III – p. 33.







  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 16 de dez. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 20 de out. de 2023


Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental, é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, tratando-se, que eu saiba, da única tese de doutoramento que envolve o Porto 2001- Capital Europeia da Cultura, pareceu-me oportuno dar a conhecer os seus traços fundamentais e, desse modo, suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Por isso, à medida em que for recolhendo os elementos essenciais, irei acrescentando textos a este texto. É com gratidão que verifico que, ao fim e ao cabo, aqui e ali, sobretudo na área do ensino superior, há marcas da Odisseia na Imagens, mesmo que nenhuma referência lhe seja feita. Para os interessados, fica então este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Nota final: entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Neste texto, começa a falar-se do ponto de partida da Odisseia nas Imagens. Esse ponto de partida teve em linha de conta o legado do cinema feito no Porto, o papel estruturante dos festivais de cinema e da RTP, bem como a articulação com as escolas de Ensino Superior por forma a promover os cursos de Imagem e Som. Por agora, um curto resumo da História do Cinema Português no Porto.


(Continuação da Odisseia nas Imagens II)


Manoel de Oliveira, uma presença recorrente na Odisseia nas Imagens. Fonte: RTP-Arquivos

Ponto de partida da Odisseia nas Imagens


Na declaração de abertura contida no Relatório de Avaliação Final elaborado pelo responsável da Odisseia nas Imagens, afirma-se:


“O ponto de partida para a Programação de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 foi, no âmbito do quadro conceptual definido para o evento Capital Europeia da Cultura, a prestação de um serviço público a partir do qual pudesse equacionar-se a projecção da visibilidade da cidade e da região em função de uma área estratégica, ou negligenciada pelos vários poderes ou encarada numa perspectiva meramente instrumental e à margem do que são hoje os requisitos a partir dos quais se pensam as políticas do audiovisual. Pretendeu-se, pois, lançar as bases de um debate no sentido de indagar qual o papel do Porto no panorama do audiovisual português promovendo, simultaneamente, as bases de uma política descentralizada nesse domínio, bem como as possibilidades de integração de uma produção local na esfera do mercado global. Nessa medida, toda a Programação foi construída em torno de um evento de grande potencial de inovação, pluridisciplinar, de carácter estruturante e de longa duração denominado Odisseia nas Imagens [1]”. 


Porém, até chegar ao conceito da Odisseia nas Imagens foi necessário percorrer um longo caminho de identificação prévia do sector e dos seus protagonistas, em particular da RTP, bem como recuperar a tradição do Porto na História do Cinema Português, aliás, nascido na cidade pela mão de Aurélio da Paz dos Reis. Importava, por isso, reconhecer um conjunto de episódios suficientemente relevantes para serem invocados como factores de legitimação das propostas que viessem a ser apresentadas [2]. Nesse sentido, deviam ser tidos em conta o passado remoto e recente, o presente, os principais criadores, as universidades, os festivais de cinema da área metropolitana do Porto e o serviço público de televisão, neste caso por forma a escrutinar e desafiar o seu papel regulador no quadro de uma paisagem audiovisual prospectivamente descentralizada. 


Porto, cidade de imagens. Foto da inauguração da Livraria Lello, em 3 de janeiro de 1906, da autoria de Paz dos Reis. Fonte: Observador

O Porto na História do Cinema Português


A História do Cinema Português passa pelo Porto, mas, salvo um ou outro episódio, a cidade foi sempre periférica em relação à produção global do País. A par do pioneirismo de Paz dos Reis e das experiências da Invicta Film e da Caldevilla Film, já destacados em capítulos anteriores, cumpre chamar a atenção para o papel desempenhado por algumas revistas que surgiram no período áureo correspondente ao ciclo do Porto, para a tradição cineclubista que ganhou peso a partir do final dos anos 50 e que viria a estar ligada à luta política de resistência à ditadura e para algumas figuras cujo expoente é Manoel de Oliveira. Numa fase posterior à Revolução de Abril vieram os festivais de cinema.


Durante algum tempo as revistas especializadas tiveram expressão relevante. O Porto Cinematográfico, fundado em 1919 por Alberto Armando só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta Cine envolveu-se na polémica que envolveu o advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi devido ao entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [3]”. Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente limitada na acção que desenvolveu, propunha-se “defender o cinema nacional, moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse [4]”.


O movimento cineclubista teve o seu momento mais alto nos anos 60. Desde o final da Invicta Film até essa altura a produção deixara praticamente de existir, salvo algumas raras excepções. As mais notáveis são dois filmes de Oliveira Aniki-Bóbó (1941) – uma obra forte a ponto de ainda hoje ser parte do imaginário do Porto – e O Pintor e a Cidade (1956), uma curta-metragem de cunho documental que tem como ponto de partida as aguarelas de um artista muito conhecido, António Cruz, porventura o maior aguarelista português. Em qualquer dos filmes, muito diferentes entre si, o Porto tem uma presença filtrada através do olhar do cineasta que descobre nele características peculiares como, aliás, acontecera já com Douro, Faina Fluvial. Episodicamente, um ou outro realizador rodou cenas de filmes no Porto, mas sem que isso correspondesse a algum interesse particular de descoberta. Manuel Guimarães, porém, com a Costureirinha da Sé (1958), inteiramente rodado na cidade, embora seguindo a fórmula então em voga das operetas que serviam para fazer aparecer na tela os cançonetistas mais populares, conseguiu fazer passar um retrato sociológico da população da sua zona histórica. Já O Passarinho da Ribeira (1959) de Augusto Fraga nada trouxe de relevante.


Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira

Nos anos 60 o Cineclube do Porto, através da sua Secção de Cinema Experimental, começou também a produzir alguns filmes. Lopes Fernandes filmou o Auto de Floripes (1960), um ritual popular da aldeia das Neves, em Viana do Castelo, mas, de um modo geral, essa produção não deu lugar a outras obras relevantes embora se discuta o seu valor enquanto documento. Em contrapartida, Manoel de Oliveira fez a partir do Porto mais três curtas-metragens que são outras tantas obras-primas do cinema português: O Acto da Primavera (1962), eventualmente inspirado no filme de Lopes Fernandes, que foi seu assistente neste filme, A Caça (1963) e as As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965). Nesta altura, o Cineclube do Porto era já o mais importante do País, sendo Henrique Alves Costa a sua figura mais destacada. Foi ele o artífice, em 1967, da Semana do Novo Cinema Português, evento que contou com a presença da maioria dos jovens realizadores e cujas conclusões viriam a ter uma importância determinante no futuro da cinematografia nacional.


Com o passar dos anos, após a Revolução de Abril de 1974, a actividade do Cineclube do Porto, minada por disputas partidárias e incapaz de se adaptar a um cinema que ia colocando novos desafios, foi esmorecendo. Houve ainda uma cisão que deu origem ao Cineclube do Norte, mas ao tempo da Capital Europeia da Cultura, ambas as instituições tinham uma presença meramente residual no contexto da vida cultural portuense.   


Se durante o período do cinema mudo a produção fora relevante a verdade é que “em 70 anos de cinema sonoro, apenas 14 longas-metragens (o que dá um filme por cada 5 anos!) escolheram a cidade como tema e cenário da intriga. Dessas, três são da autoria de Saguenail, um realizador de origem francesa que vive e fez a sua obra no Porto, e que é, por sinal, um dos mais interessantes, originais e desconhecidos autores que alimentaram o imaginário cinematográfico português [5]”.


Feitas as contas, pensando em filmes indissociáveis do imaginário da cidade, sobram meia dúzia de títulos e de entre todos destacam-se três filmes de Oliveira Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Qualquer deles faz parte do património monumental do Porto, mas o primeiro é algo de inseparável da sua memória e do seu imaginário [6]. Depois da pateada na estreia em 1931, apesar dos elogios da crítica estrangeira e de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, como José Régio [7] e Adolfo Casais Monteiro, Douro, Faina Fluvial só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então, espontânea e prolongadamente aplaudido.  


Mais tarde, Oliveira esteve de passagem pelo Porto, nomeadamente em Inquietude (1988), Paulo Rocha filmou O Rio do Ouro (1998) e António Pedro Vasconcelos em Jaime (1999) voltou a colocar a cidade no centro das atenções. Um ou outro cineasta estrangeiro também passou pelo Porto, mas nenhum deles realmente interessado na sua identidade. John Malkovitch, por exemplo, encontrou nele ambientes urbanos semelhantes aos da América do Sul e em The Dancer Upstairs (2000) algumas ruas da cidade passaram a fazer parte do Peru e do Equador.  


A Revolução de Abril tinha, entretanto, aberto as portas a outras iniciativas, entre as quais há a destacar o aparecimento dos festivais de cinema, os quais, sobretudo no caso do cinema de animação, viriam a ter impacto numa produção local cujo desenvolvimento foi acompanhado da obtenção dezenas de prémios conquistados nos principais festivais de todo o mundo.



(Continua)

Notas remissivas

[1] . Relatório de Avaliação Final do Departamento de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas. [2] . A este propósito ver o Capítulo II – pp.117-125. - Nota do Autor [3] . Costa, Alves – Breve história do cinema português – 1896-1962, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação Científica, Lisboa, 1978. [4] . ibid. [5] . Vasconcelos, António Pedro in Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/Porto 2001, 2002, p. 7. [6] .  Vale a pena retomar em pormenor o que foi a estreia do filme no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica: “Esta ante-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público (em grande parte selecto e burro). A projecção foi sublinhada com constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos (!?) portugueses ferviam de indignação: ‘um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé desclaço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo’ (Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no velho, degradado e populoso bairro do Barrêdo...)” - in Costa, Alves, op. citada, p. [7] . De Douro, Faina Fluvial disse Régio: “A moderna poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza. Precioso como documentário o ‘Douro’ excede assim, e em muito o valor dum mero documentário”. – Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/ Porto 2001, 2002, p. 46.




  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 12 de dez. de 2020
  • 8 min de leitura

Paulo Rocha, cineasta de Sereias (2001), uma encomenda da Porto 2001

Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, pareceu-me oportuno suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Para os interessados, fica, então, este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Assinalo, desde já, que entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Neste texto trata-se da consigna Pontes para o Futuro da Capital Europeia da Cultura.


(Continuação da Odisseia nas Imagens I)


Aguarela de António Cruz, criador de imagens do Porto e protagonista de O Pintor e a Cidade (1956) de Manoel de Oliveira

Pontes para o Futuro


O desafio era difícil, entre outros motivos, porque havia pouco tempo para pôr a Capital da Cultura no terreno sendo certo, igualmente, que o lado mais conservador da cidade, ligado a fortes tradições que tinham de ser respeitadas e até valorizadas, podia vir a constituir-se como reserva de incompreensão face a uma programação cultural mais ousada e inovadora. Mas era, igualmente, aliciante porque se tratava de reforçar e introduzir práticas culturais cujas consequências se pretendia fossem para além de 2001, renovando o imaginário e contribuindo para a capacidade de afirmação da cidade junto de outras cidades europeias [1].


Acresce que o evento era encarado como uma ocasião única para levar a cabo um ambicioso projecto de reabilitação urbana. No relatório da Comissão Instaladora respeitante ao ano de 1998, afirmava-se:


“A vida e o consumo culturais, como factores efectivos de desenvolvimento não devem confundir-se com o uso pretextual das actividades genéricas de cultura para a legitimação póstuma do esvaziamento vivencial dentro da cidade. Em oposição à cidade marcada pelas grandes superfícies, caberá ao Porto 2001 propôr uma acção cultural que magnifique as vantagens de um conceito de cidade herdada e aprofunde o sentido de identidade sem historicismo nem contemplação. A consciência urbana passa, tanto pela genericamente chamada animação cultural, como pelo estímulo à criação em residência e em diálogo com os lugares da cidade. Daí a necessidade de um esforço comum entre a intervenção urbana que a capital estimulará e a Acção Artística [2]”.


Mais:


“2001 não deverá ser a activação de festividades que alimentem no Porto a ilusão de ser uma Capital Europeia de primeira linha, mas uma escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas, proporcionando-nos a sua fruição e a confrontação com eles próprios [3]”.


E ainda:


“2001 deverá activar o cruzamento de equipas e experiências internacionais em projectos que só no Porto possam acontecer. Substituir-se-á, assim, à inscrição conjuntural da cidade no obsessivo mercado internacional, a ideia de um lugar de projectos, de encontros e desencontros que ajudem a firmar os nossos valores como referência e desafio aos criadores, produtores e programadores estrangeiros, cuja rota passará a cruzar-se obrigatória e estruturalmente com a nossa [4]”.



Nesta perspectiva, entendia-se que o Porto 2001 deveria privilegiar a construção de uma rede de relações inovadora tomando como ponto de partida os binómios cidadão/espectador, cidade/palco e criador/obra de arte, a qual permitiria reformular métodos de produção, realização e comunicação ligados à criação artística. Esta teria, portanto, a cidade como pano de fundo, no sentido em que a revitalização urbana de áreas estrategicamente identificadas era encarada como um modo de combater a exclusão de sectores da população tradicionalmente marginalizados no circuito da produção, realização e dos consumos culturais.


Da análise do conjunto de recomendações da Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001 visando conferir coerência metodológica à Programação ressalta o intuito reiterado de consolidar eventos já existentes, por um lado, e, por outro, a preocupação de criar novas iniciativas numa perspectiva de continuidade para além do horizonte temporal da Capital Europeia da Cultura [5].  


A construção dessas Pontes para o Futuro pressupunha, assim, a disponibilidade de uma cidade em movimento, sendo que a programação cultural teria necessariamente de integrar um conjunto complementar e diversificado de acções de formação a partir do qual pudessem surgir profissionais qualificados nas áreas da gestão cultural, da produção, da utilização de meios técnicos e da mediação especializada em comunicação, marketing e animação cultural. A necessidade deste tipo de formação impunha-se como uma evidência. Da iniciativa conjugada da autarquia e do governo central tinha anteriormente resultado um número apreciável de grandes e pequenos espaços culturais, todavia sem a necessária dotação de pessoal especializado, o que conduzira, pontualmente, não só a um sub-aproveitamento desses mesmos espaços, mas também a uma falta de profissionalismo comprometedora da boa execução dos projectos. A formação permitiria superar as deficiências abrindo perspectivas de trabalho qualificado a estudantes das escolas profissionais já existentes.  Admitia-se mesmo que “a criação de uma ‘bolsa’ de profissionais nas áreas atrás definidas pode vir a projectar-se para lá do objectivo inicial, gerando projectos privados nas áreas de carácter empresarial ligadas à cultura e ao lazer [6]”.


No seu Relatório a Comissão Instaladora abordava ainda aspectos respeitantes ao Envolvimento da População, à Comunicação e Marketing, a estudos sobre os públicos potenciais e a métodos de avaliação de resultados.


Em relação ao Envolvimento da População tratava-se basicamente de conceber um modo de atrair à programação as pessoas habitualmente arredadas dos espectáculos, exposições e outras actividades culturais, se necessário indo ao seu encontro na rua ou nos bairros. Para tanto, propunham-se essencialmente dois tipos de accções: “as que valorizem a participação das populações dos bairros na melhoria e animação dos seus espaços comuns, recriando tradições significativas da cultura popular com meios técnicos e financeiros acrescidos; as que, pela informação e sedução/provocação que transportem, possam induzir nos cidadãos a vontade de participarem em outros eventos incluídos na programação geral do Porto 2001, mesmo quando realizados noutras zonas na cidade e em equipamentos culturais a que habitualmente não acedem [7]”. Para levar a cabo estes propósitos recomendava-se o envolvimento de instituições públicas e privadas, como as escolas, clubes e associações, às quais deveria ser proporcionado acompanhamento técnico qualificado de modo a incentivar as iniciativas individuais ou de grupo.


Contava-se, também, com a acção de um gabinete de Comunicação e Marketing, ao qual, a par de promover o envolvimento da população, foi cometida a tarefa de planear a estratégia adequada a promover e dar visibilidade à Capital Europeia da Cultura quer no plano nacional, quer no plano internacional.


Reconhecia-se, finalmente, a necessidade do trabalho dos decisores, gestores e programadores assentar em dados concretos para efeito da definição de estratégias de comunicação e de captação de públicos. Nesse sentido, a Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura decidiu encomendar estudos nesses domínios e propôs a criação de uma Comissão de Acompanhamento – entendida como um pólo de reflexão independente e distanciado –, à qual ficaria cometida a incumbência da elaboração de relatórios críticos e de pareceres fundamentados sobre matérias em relação às quais fosse chamada a pronunciar-se.


Do ponto de vista da Programação Cultural foram identificadas duas áreas de importância estratégica: a Música e o Audiovisual e Multimédia [8]. A aposta no Audiovisual e Multimédia, de acordo com o Relatório da Comissão Instaladora justificava-se fundamentalmente em função dos seguintes pressupostos:


“O inevitável percurso para a Sociedade da Informação torna cada vez mais importante a produção de ‘conteúdos’ em Portugal para salvaguardar a permanência da cultura portuguesa no Mundo (...) num momento em que o satélite, o cabo e a difusão terrestre digital aceleram os processos de globalização dos media e o seu impacto entre nós; a produção de conteúdos audiovisuais e multimédia para ser feita com a qualidade que garanta a sua eficácia e difusão internacional é um vasto campo de trabalho para criadores de todas as áreas das artes e das letras, para investigadores e técnicos qualificados, podendo fixar na cidade e área metropolitana a ‘massa crítica’ que tende a fugir-lhe e gerar a criação de organizações empresariais baseadas nesse trabalho eminentemente cultural [9]”.


Estes pressupostos, associados à ideia que aqui se retoma segundo a qual a programação deveria decorrer de uma “escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas [10]”, constituíram o ponto de partida para a explicitação da lógica da Programação da área Audiovisual e Multimédia, a qual fez do Documentário a opção prioritária.


Uma vez feita essa opção, por razões de coerência teórica e metodológica, considerou-se essencial valorizar o papel do Cinema, pelo que se entendeu alterar a designação da área para Cinema, Audiovisual e Multimédia, a qual viria, posteriormente, a ser conhecida por Odisseia nas Imagens.  



Notas remissivas

[1]. A Programação Cultural da Sociedade Porto 2001, sob a coordenação de Manuela Melo, numa primeira fase, ficou a cargo de Álvaro Domingues (Relações Institucionais), Paulo Cunha e Silva (Ciência e Literatura; Relações com Roterdão), Pedro Burmester (Música), Miguel Von Haffe Pérez (Artes Plásticas), Jorge Campos (Cinema, Audiovisual e Multimédia), Isabel Alves Costa (Artes de Palco), João Teixeira Lopes (Envolvimento da População) e Júlio Moreira (Animação da Cidade). Posteriormente, as equipas iniciais foram reforçados com novos elementos. - Nota do Autor. [2] . Relatório da Comissão Instaladora da Sociedade PORTO 2001 S.A. de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [3] . ibid. [4] . ibid. [5] . É a seguinte a lista de recomendações avançadas no Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 S. A.: “- sedimentação de eventos e/ou áreas de criação já existentes (ou com potencialidades) na cidade, e criação de novos eventos cíclicos em áreas estratégicas, que nasçam com uma qualidade a manter depois de 2001”;  - fomento da criatividade dos artistas portugueses, através de encomendas, apresentação e divulgação do seu trabalho (inclusive em outras áreas geográficas, com destaque para Roterdão) e, sempre que possível, desenvolvendo no Porto projectos conjuntos com artistas de outros países;  - apresentação de produções inéditas, seja porque trazem à cidade pela primeira vez obras essenciais da cultura europeia e mundial, seja pelo carácter artístico inovador que transportam;  - valorização da cidade como espaço informal de contacto entre criadores e cidadãos, despertando o interesse global pela articulação activa nos projectos incluídos no Porto 2001;  - integração das programações específicas das diversas áreas, para que o programa global do Porto 2001 se desenvolva ao longo do ano harmonicamente, seja no que respeita à distribuição dos pontos altos, seja na sua ligação a projectos de menor dimensão que os possam amplificar (no campo dos criadores e dos públicos), seja ainda para, em cada momento, haver uma oferta diversificada, adequada às condições dos equipamentos culturais e dos espaços públicos que os ligam;  - articulação da Programação Porto 2001 com projectos de instituições culturais da Área Metropolitana do Porto, desde que se enquadrem no conceito global definido e se encontrem formas de co-financiamento fora do orçamento da Capital Europeia da Cultura;  - privilegiar eventos e actividades que potenciem a requalificação urbana também integrada no Porto 2001, com destaque para a revitalização da ‘baixa’, a criação de ‘circuitos culturais’ ancorados nos equipamentos e no património existente, o centro histórico, as frentes ribeirinha e marítima e espaços informais (fábricas, armazéns, jardins, pátios de bairros, etc.);  - estabelecer pontes entre a criação artística e o universo empresarial, para que a criatividade de designers, arquitectos, estilistas e artistas plásticos possa conferir a indústrias (tradicionais ou emergentes) uma marca própria de qualidade e contemporaneidade de que cada vez mais necessitam;  - não esquecer o carácter festivo e lúdico que toda a cidade deve apresentar ao longo do ano, para o que é necessário cuidado especial com a defesa (pelos cidadãos e pelas entidades responsáveis) do ambiente, nomeadamente com a limpeza de ruas e a renovação do imobiliário urbano, da qualidade do alojamento, restauração e locais nocturnos de diversão, da sinalização cuidada e cenográfica de obras, eventos e actividades diversas incluídas no Projecto Porto 2001”. - in Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [6] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [7] . ibid. [8] . O Relatório da Comissão Instaladora segue de perto, nesta matéria, o conteúdo das Linhas Gerais da Programação da Área Audiovisual e Multimédia in Anexo III pp. 15-23. - Nota do autor. [9] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [10] . ibid.


(Continua)


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Jorge Campos

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        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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