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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 10 de nov. de 2020
  • 7 min de leitura

Fonte: Euronews

Ponto de partida: Francis Fukuyama. O statement sobre o fim da História nunca foi levado muito a sério. Em rigor, serviu mais como fórmula proclamatória de uma crença conveniente do que como evidência fundamentada de um juízo analítico. A crença é sempre uma simplificação legitimada pelo transcendente premonitório. No caso de Fukuyama, uma relação mágica de causa e efeito entre a imposição da economia de mercado e o triunfo da democracia liberal. Valha a verdade, o próprio Fukuyama mudou de opinião. Há três ou quatro anos, surpreendeu tudo e todos ao dizer que andava a tentar compreender a História. E, numa entrevista à BBC World, em Maio de 2019, aquando do lançamento do seu último livro – Identidades: A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento – foi mais longe no reconhecimento do engano ao admitir ter ficado abalado com a segunda invasão do Iraque e com a crise financeira de 2008, uma e outra por ele qualificadas como catástrofes cujos efeitos se fizeram sentir, designadamente, na sua quebra de confiança na irredutibilidade dos valores dados como adquiridos.

Sinais contraditórios surgiram logo pós a queda do muro em 1989 e multiplicaram-se até ao colapso de União Soviética, dois anos mais tarde, tendo, no entanto, passado relativamente despercebidos ou, pelo menos, sem suscitar grande atenção mediática. Daí que haja evidência deles mais em representações no âmbito do trabalho de criação, designadamente no cinema documental, do que através da visão do mundo veiculada nas narrativas mainstream. Um exemplo é o documentário do holandês Johaan Van Der Keuken intitulado Face Value – um ensaio sobre o valor da palavra, a paisagem do rosto e a semântica do gesto – no qual, num dos quadros, operários da ex-RDA manifestam o seu incómodo face à incerteza trazida pela nova ordem económica. Tratando-se de uma obra despida de intuitos proclamatórios, Face Value, um filme de 1991 rodado em vários países, é uma reflexão pioneira sobre a nova Europa, dando indícios, já nessa altura, de problemas, hoje, na ordem do dia. Lá está, também, um apontamento incisivo sobre a Frente Nacional de Jean-Marie Le e os seus apoiantes.

Obviamente, o erro de Fukuyama não desmerece o tremendo simbolismo da queda do muro de Berlim. Representou não só o fim da Guerra Fria, mas também das ilusões que pudessem ainda subsistir em relação à bondade de um socialismo de cariz totalitário, no qual pouco restava da utopia fundadora. Gorbachov percebeu isso e quis mudar de rumo. Demasiado tarde. O socialismo real tinha deixado pelo caminho o poder de atração do pós-guerra, quando a União Soviética emergiu como a grande vencedora do nazi-fascismo e, de certa forma, inspirou a construção do estado social na Europa. O caminho para a derrocada atravessou alguns episódios determinantes. A revolta na Hungria em 1956, a Primavera de Praga em 1968 e o movimento do Solidariedade na Polónia nos anos 80, deram indicações sobre a incapacidade de Moscovo responder aos desafios que nos países sob a sua influência lhe iam sendo colocados. Concomitantemente, a partir da divulgação do relatório secreto de Krushev durante o XX Congresso do PCUS, também em 1956, avolumaram-se as suspeitas, posteriormente confirmadas, sobre o período estalinista e o seu cortejo de atrocidades. Quando o muro caiu, a União Soviética era um gigante com pés de barro, um corpo minado por contradições internas incapaz de lidar dialeticamente com o mundo e, como tal, sem a vitalidade cidadã indispensável à construção de uma sociedade dinâmica.

Berlim, Checkpoint Charlie

Todavia, a época dos grandes consensos preconizada por Reagan e, também, pelos Bush, pai e filho, apesar do ponto de partida promissor, não foi muito além de uma ideia. A leste, a imposição de um capitalismo de choque e de uma economia de saque nas mãos de oligarquias corruptas, depressa suscitou interrogações sobre os limites da democracia liberal. É certo que a generalidade desses países passou a integrar a União Europeia e adotou formalmente o figurino político exigido. Mas também é certo que foi no eixo de Visegrado que se verificaram, e verificam, as mais graves disfuncionalidades traduzidas na emergência meteórica de populismos de extrema direita com via aberta para governos autocráticos de que a Hungria e a Polónia são casos paradigmáticos. É grave, mas não surpreendente. O Partido Popular Europeu (PPE) tende a desvalorizar estes movimentos, olha-os com condescendência e até lhes dá a mão quando se trata de agitar o fantasma do comunismo para consolidar posições ultra conservadoras como sucedeu na Ucrânia. De resto, ainda agora, numa Alemanha que continua dividida em duas realidades assimétricas, perante os resultados eleitorais na Turíngia, onde o Partido da Esquerda (Die Linke) ganhou sem maioria absoluta, a CDU regional não teve problema em sugerir à senhora Merkel um entendimento com os neonazis da Alternativa para a Alemanha (AFD). Quanto à família socialista e social democrata, se não se lhe podem assacar responsabilidades do mesmo grau, a verdade é que também ela, ao sucumbir à miragem neoliberal, tem contribuído para o estado das coisas. E, diga-se, para o seu próprio definhamento. É uma história antiga que vem do tempo de Tony Blair.

Uma vez mais, é no campo das representações exteriores à retórica mediática que se encontram as reflexões mais penetrantes sobre este percurso, seja através de oportunas e esclarecedoras incursões no passado, seja por via da interpelação não convencional do presente. Nessas obras não estão diretamente em causa nem a política, nem a economia, nem a estatística. Sob foco estão a memória e o esquecimento, as pessoas, personagens e situações dadas a conhecer através de narrativas autorais que acrescentam conhecimento ao conhecimento através da imaginação criadora. Por exemplo, em Taurus (2001) o cineasta russo Aleksandr Sokurov faz uma abordagem soturna dos últimos dias de Lenine e um inquietante retrato psicológico de Estaline, explorando a ambiguidade da relação entre os dois líderes e suscitando a dúvida sobre o rumo da Revolução. Outro russo, Nikita Mikhalkov recupera em O Sol Enganador (1994) a figura trágica do general Kotov, um dos favoritos de Estaline, caído em desgraça sem noção das acusações de que era alvo. Numa outra perspetiva, em Toni Erdmann (2016) a alemã Maren Arden trabalha alegoricamente sobre a metamorfose da conjuntura socialista em economia capitalista a partir de citações subtis e divertidas da obra prima de Stevenson O Médico e o Monstro. Mestre do realismo, o britânico Ken Loach observa nos seus filmes, designadamente Eu, Daniel Blake (2016) o desespero do homem comum, indefeso, perante a falência dos serviços públicos resultante da degradação do estado social no Reino Unido. E Christian Petzold, provavelmente o maior cineasta alemão contemporâneo, sempre às voltas com a questão da identidade, coloca em Transit (2018) uma Europa de novo em guerra e uma França ocupada pelos fascistas. Naturalmente, os exemplos poderiam multiplicar-se.

Taurus (2001) de Alexander Sokurov

Na literatura há, também, diversos exemplos do modo como os artistas olham o mundo, transformando-o, para lhe acrescentarem um novo sentido e, porventura, proporcionar uma leitura e reflexão com potencial prospetivo. Talvez o caso mais interessante seja o da escritora bielorrussa Svetlana Aleksievich, autora de Vozes de Chernobyl, o livro que deu origem à notável série televisiva com o mesmo nome. Vencedora do prémio Nobel da Literatura de 2015, Svetlana Aleksievich desenvolveu um projeto literário chamado Vozes da Utopia constituído por cinco romances, entre os quais se destaca O Fim do Homem Soviético. É uma obra polifónica, de rara concisão artística, construída a partir de testemunhos de centenas de homens e mulheres sobre os velhos e os novos tempos no território da antiga URSS. Sem explicar nem tomar partido, expõe as expectativas dos protagonistas, convoca as suas memórias, emoções e afetos e cria um mosaico policromático da Rússia de Putin, no qual se faz o ajuste de contas com o passado e onde, apesar de tudo, sobra do colapso do comunismo o homem soviético.

Nos últimos 30 anos o mundo mudou radicalmente e mudaram de igual modo as representações que dele se fazem. A crise de credibilidade da narrativa dos media tradicionais, o impacto da tecnologia digital na multiplicação praticamente ilimitada de mensagens e a disseminação orquestrada de fake news com vista à construção de um presente orwelliano, tudo isso abriu portas a uma entropia comunicacional sem precedentes. Daí, também, a pertinência da imaginação criadora enquanto elemento essencial para a organização do mundo através da visão singular dos artistas. Sem ela, qualquer balanço será, portanto, precário e lacunar, uma vez que lhe faltará a espessura dramática da humanidade na sua diversa condição. Mas, obviamente, este enfoque exige a historicidade e um contexto. Voltemos então à mudança e à sinalização final de tópicos de um balanço possível.

Pela reconfiguração do mapa geopolítico após a queda do muro de Berlim, no quadro de uma globalização vertiginosa, passaram o reposicionamento estratégico dos Estados Unidos, a reivindicação por parte da Rússia do estatuto de grande potência e, sobretudo, o crescimento colossal da China a caminho da hegemonia global. A participação da União Europeia nesta mudança é controversa e, em alguns aspetos, desoladora. Na ânsia de isolar a Rússia contribuiu para o regresso das taras da Guerra Fria. Envolveu-se a fundo nos Balcãs. Não foi capaz de ajudar a encontrar soluções equilibradas para os antigos países do leste, optando por legitimar uma privataria cujas consequências sociais trouxeram a desconfiança tanto face a Bruxelas quanto a dirigentes incapazes de compreender os problemas das pessoas e, nessa medida, contribuiu para o vazio preenchido pelo populismo. Foi cúmplice de guerras que destruíram países como o Iraque e a Líbia e criaram vagas de refugiados a reboque de uma política americana que cinicamente justificou as intervenções militares em nome da democracia e da liberdade. Perante o ressurgimento da xenofobia, do racismo e do fascismo optou pela relativização quando não enveredou pelo grotesco histórico como fez ao equiparar nazismo e comunismo. Apoiou golpes militares, como acaba de suceder na Bolívia, enquanto mantem reserva, por exemplo, sobre a repressão brutal no Chile. Sobre a emergência climática, à penúria das medidas sobram as palavras. Há uma razão para este desconcerto? Há várias. A primeira é a adoção do modelo económico neoliberal e os alinhamentos daí decorrentes.

Edgar Morin, numa entrevista recente à RTP, comparou a União Europeia a um esqueleto vazio. Não se deve deitar fora o esqueleto, disse ele, mas é preciso dar-lhe vida. Sou da mesma opinião. Mas para isso é preciso encontrar o músculo, a carne, a cabeça e, sobretudo, o coração que a Europa não teve com a Grécia e não tem com os refugiados. Se isto falta é porque as forças políticas maioritárias, no fundo, subscrevem o pensamento mágico de Fukuyama e insistem num modelo de desenvolvimento que compromete o estado social, reincide em privatizações desastrosas, gera iniquidade, agrava clivagens, resolve a favor dos mais fortes, desmobiliza a esperança, desinveste na cultura e, como tal, inevitavelmente, alimenta a pulsão populista. Vamos ver até quando. Afinal, também há lutas. Afinal, até Fukuyama mudou de opinião...

Jorge Campos


Publicado in Forum Demos, 2019

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 19 de out. de 2020
  • 2 min de leitura

Atualizado: 13 de set. de 2022


Fonte: catracalivre.com.br

Devido à acusação reiterada da filha adotiva, Dylan Farrow, de ter sido abusada por ele em 1992 quando tinha apenas 7 anos, este livro entrou na lista dos malditos. A editora Hachette foi sensível ao coro das indignações e desistiu da publicação. Celebridades cavaram trincheiras, contra e a favor, maioritariamente contra o cineasta, e até o circunspecto NYT saiu a terreiro para apontar o dedo ao degenerado Woody. Nenhuma operação de marketing teria funcionado melhor. Finalmente publicado, o livro esgotou várias edições. Em Portugal vai na 3ª. Saiu com uma capa negra e chama-se A Propósito de Nada. Impossível não ver aqui a impressão digital do autor. O Nada é ele próprio - neurótico, inseguro, inculto, mau clarinetista, realizador medíocre - mais as acusações de que foi alvo, as quais nunca foram dadas como provadas sendo, portanto, também, Nada. A capa é negra por lhe terem feito a vida negra. Dito isto, ler a autobiografia de Woody Allen é um bocado como ver os seus filmes, ou melhor, como ler os argumentos que ele próprio escreveu ao longo da vida. É divertido, observador, ágil, desconcertante, analítico. Sempre em desconstrução de si mesmo. Enciclopédico alegando ignorância. Sem nenhum problema em declarar candidamente ter gostado das polaroids tórridas feitas com a sua atual mulher Soon-Yi, 35 anos mais nova e enteada da antiga mulher ou companheira, nunca se chega a entender, Mia Farrow, esta uma espécie de bête noire na sua vida. Talvez por isso lhe faça grandes elogios enquanto atriz ao mesmo tempo que deplora a quantidade de processos judiciais que ela lhe moveu só explicável, segundo ele, devido à perversidade que a alimenta. Tendo sido a atriz principal de vários dos seus filmes, mesmo quando havia processos a correr entre ambos, Mia é retratada como um anjo de alma negra, um pouco à semelhança da personagem que encarnou no filme de Roman Polanski, Rosemary's Baby, onde vai ser mãe de um filho do diabo. Conta Woody que um dia, estando na Europa, Soon-Yi lhe comunicou terem sido convidados para uma festa em casa de Polanski. Estranhou, mas lá foram. E mais estranho ficou quando se apercebeu que o Roman era o Abramovich. Tudo o mais nesta autobiografia é o fascinante mundo do espetáculo americano. vale a pena ler. Depois, cada um pense o que bem entender. Declaração de interesse: eu gosto muito dos filmes de Woody Allen.


  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 4 de out. de 2020
  • 10 min de leitura

“O velho mundo agoniza, o novo tarda a nascer e, nesse

claro-escuro, irrompem os monstros.”

Antonio Gramsci in Cadernos do Cárcere



Uma pandemia é uma pandemia. Ninguém sabe ao certo quando irrompe embora seja sempre uma possibilidade. Na verdade, as pandemias nunca faltaram. Nem nunca se fizeram anunciar. Mas, por norma, uma vez instaladas, produzem efeitos devastadores. O guião, em função do que se vai constatando, podia ser mais ou menos como segue.

Milhões de pessoas desorientadas, cientistas à beira de um ataque de nervos, governos à deriva, o medo à solta, um cortejo de vítimas em valas comuns, enterradas dia e noite, à pressa, como se má consciência houvesse e fosse imperioso esconder uma vergonha comum. Na fase seguinte, bandos de idólatras armados de crucifixos e espingardas de canos serrados entram no centro das cidades, grandes e pequenas, prontos a exorcizar quem se lhes oponha em nome da crença no poder salvífico dos mercados e dos messias de circunstância. A tempo inteiro, em cada esquina, em cada casa, ecrãs tutelados por insufláveis sistémicos salmodiam boas práticas, cuidai-vos, dizem, se quereis voltar à normalidade o mais depressa possível com um mínimo de danos colaterais, ou seja, haverá sempre algumas mortes, todos lamentamos, embora deva reconhecer-se a escassa produtividade dos mais pobres e a nula utilidade dos mais velhos quando está em causa a distribuição de dividendos. O que importa é estar no bom caminho. E estamos. Em breve estaremos de novo a consumir. De máscara.

Fosse um guião original e poderia dar um filme interessante. Ou um livro. Ou um quadro. Mas não é original.

Os filmes catástrofe andam por aí há muito, como sucede com alguns de John Carpenter e David Cronenberg. À semelhança das obras dos cineastas expressionistas da República de Weimar, cujo conteúdo latente antecipava a mitologia nazi, também eles, a partir do final do século XX, encararam o material pró-fílmico como possibilidade de explorar os subterrâneos de uma normalidade tão eficazmente socializada quanto refractária ao sobressalto da razão. Em They Live (1988) Carpenter cria um universo de mortos vivos robotizado pelo ininterrupto estímulo ao consumismo, uma espécie de droga induzida através da fabricação de um imaginário cor-de-rosa, no qual o belo e o perfeito são, na verdade, equivalentes de posse e mercadoria, sem que disso o comprador compulsivo tenha consciência. Ironicamente, a personagem principal de nome Nada (Roddy Piper) vê para além das aparências quando coloca óculos escuros através dos quais percepciona o horror de rostos que afinal são caveiras, bem como a falsidade de anúncios publicitários que afinal são campos de concentração da mente ou, se quisermos, as máscaras invisíveis do admirável mundo reaganomics, esse modelo ultraliberal dos Chicago boys testado no Chile de Pinochet. Trinta anos depois, quando alguém quis celebrar They Live como um filme de culto de ficção científica, Carpenter comunicou aos sacerdotes da função não terem percebido nada de nada. O filme, disse ele, é um documentário.


Também na literatura há uma longa e brilhante lista de declinações mais ou menos a propósito. Tanto passa pelas distopias de Brave New World (1932) de Aldous Huxley e 1984 (1948) de George Orwell, quanto, no plano existencial, pelo jogo de espelhos e paradoxos faustianos de The Picture of Dorian Gray (1890) de Oscar Wilde, pela ambiguidade gótica de Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886) de Robert Louis Stevenson ou pela aterradora impossibilidade de ser da criatura prometaica de Frankenstein (1931) de Mary Shelley. Os dois primeiros, os livros de Huxley e Orwell, expõem o totalitarismo no quadro de normalidades construídas através da engenharia social. Sendo a individualidade e a diferença interditos, qualquer desvio à norma é punido por heresia para salvaguarda da perfeição do sistema. Os três restantes, de Oscar Wilde, Stevenson e Mary Shelley, por sua vez, propõem-se explorar comportamentos desviantes desafiando a máquina censória da normalidade que interdita pulsões perigosas e enigmas interiores. Tal como no filme de Carpenter, também em relação aos livros, é preciso desafiar as máscaras.

São obras abertas, fruto da imaginação criadora. Por mais vezes que se leiam surgem sempre renovadas convocando leituras plurais, quer em função da singularidade do leitor, quer dos contextos em mudança. Não alimentam dogmas. São intemporais e necessárias. Intemporais porque sinalizam no plano simbólico o essencial da humanidade, as suas perplexidades e interrogações. Necessárias porque a imaginação expande os jogos de prazer, alarga o horizonte da razão, sugere a ousadia de experimentar e, sobretudo, obriga a fazer perguntas. Muitas perguntas. Como aquelas que reiteradamente foram colocadas a Aldous Huxley. Numa entrevista televisiva concedida ao jornalista americano Mike Wallace, em 1958, a propósito de Brave New Word Revisited, então acabado de publicar, apontou ele como principais perigos para a democracia a explosão demográfica, as desigualdades sociais, a propaganda política e comercial, as drogas aditivas e as ainda mais aditivas tecnologias que, segundo ele, iriam irromper sem controle para ocupar um lugar central na vida das pessoas, elas próprias, por essa via, cada vez mais ausentes de si mesmas, do outro e desse outro, por ignorância, cada vez mais tementes.

Olhando em volta, sessenta anos depois, bate certo. Bem sei que aos artistas é muitas vezes atribuída a faculdade de ver mais longe, de ir à frente. Mas eles não fazem profecias. Olham em redor e buscam indícios. Pequenas coisas, aparentemente. Fragmentos sob os quais encontram raízes, conexões, porventura, a lógica oculta das normalidades do quotidiano. Ou as engrenagens dissimuladas de desastres maiores, quem sabe. Depois são capazes de inventar relações, plasmar inquietações, criar novos mundos, em suma, são capazes de, ao imaginar, ver diferente. Interpelando. Assim, através da suas obras, também nós somos levados a empreender viagens, por vezes dolorosas, fazer descobertas, por vezes inquietantes, formular perguntas, muitas vezes incómodas, crescendo ou não, é problema nosso, mas tendo essa opção no quadro do bem essencial que é a liberdade de decidir. Pelo menos, quero crer que assim seja. Gostaria que assim fosse. Mas é justamente aqui que entra na equação uma das mais sinistras hipóteses de Huxley. Em Admirável Mundo Novo - e não só - ele admite a possibilidade dos escravos amarem a própria escravidão.

E, aqui chegados, temos, na realidade, um problema. Multidões idolatram líderes de irresponsabilidade ilimitada cuja ignorância e pesporrência põem em risco vidas humanas, rasgam as vestes por oportunistas cobradores de dízimos como se deles dependesse a salvação do mundo, veneram criacionistas, terraplanistas e negacionistas da ciência projetando neles o anseio de uma ordem indiscutível, acreditam na bondade de ditaduras insidiosamente urdidas à sombra da ordem democrática, em suma, querem uma entidade omnipresente e omnisciente que as retire do suplício da dúvida e lhes proporcione a graça de viver na ilusão. Em rigor, não sei quem são estas pessoas que juntas formam multidões. Admito a transversalidade, a pertença a diferentes estratos sociais. Mas não ficaria surpreendido se a maioria não fizesse parte do grupo dos descamisados e mais pobres e se encontrasse, antes, entre aqueles que muito têm ou, não tendo, têm o pouco ou mediano bastantes para alimentar o fantasma da perda às mãos de ímpios e comunistas.


Este é o império do medo. Não cabe nele a fissura ontológica. O ar rarefeito favorece o desígnio da absoluta certeza. No meio de uma entropia informativa sem precedentes ligada a tecnologias aditivas, com centenas de milhões de pessoas a trocar mensagens à hiper velocidade consentida no ciberespaço, essa fantasmagoria identitária ganha espessura em lugares fascistas de notícias falsas manipulados por peritos em condicionamento. Na era da pós-verdade pouco importa o que é dito. Importa é atingir o nervo sensível do medo de modo a reforçar a crença. E um crente assim formado tem uma força desmedida. Elege gente saída das catacumbas, associa a cultura ao marxismo, a imaginação criadora à subversão, compra avidamente de tudo a prestações e usa o cartão de crédito para legitimar o estatuto social que a dívida lhe concede. Não sei se ama a escravidão, mas é provável. Se bem lembro, o selvagem de Brave New World comete o pecado capital de ter descoberto um estranho livro de um tal Shakespeare há muito apagado dos registos. E, na novilíngua de Orwell, escravatura é liberdade.

Isto já não é apenas latência. É, demasiadas vezes, conteúdo manifesto. Mas não tem de ser fado. Há sinais nesse sentido. Paradoxalmente, a pandemia, a par da tragédia sanitária e da enormidade das consequências dela decorrentes, está a obrigar a pensar a desordem do mundo. É como se, de súbito, muitos tivessem sentido a necessidade de colocar os óculos escuros de Nada, o herói de They Live, e surgisse a descoberto, perante a perplexidade de tantos, um insuspeitado desconcerto das coisas. Afinal, sob a máscara das democracias liberais, por sinal, cada vez mais iliberais, movem-se as engrenagens subterrâneas de uma normalidade que coisifica as relações infetando o espaço público com o vírus da mercantilização e deixa multidões indefesas perante a falência de serviços públicos essenciais. Não é propriamente uma novidade. Conhecem-se há muito os efeitos desagregadores no tecido social de privatizações que contrariam a universalidade e igualdade de acesso a esses mesmos serviços, designadamente de saúde.

Novidade é que um outro vírus, o da dúvida, em relação ao qual se julgava existir uma vacina infalível, se tenha insidiosamente infiltrado no próprio sistema imunitário neoliberal. Pelo menos, por agora. O sobressalto terá as suas limitações, mas existe. Veja-se como na União Europeia há quem, face à pandemia, se interrogue sobre a bondade da ortodoxia financeira dominante quando antes não abria mão dela. Como o Tribunal Constitucional Alemão entrou em conflito com o Tribunal de Justiça da UE por este ter declarado legal o programa de compra de dívida pública do Banco Central Europeu. São bons sinais, algo se move. Serão temporários? Talvez. Entre outras razões, devido à irreprimível tendência dos decisores mais conservadores, a maioria na Europa, de procurar soluções à sombra do mantra de um modelo económico predador, notoriamente incapaz de dar resposta aos problemas do mundo.

São esses da mesma linhagem daqueles outros que não hesitaram, inicialmente, apresentar uma solução malthusiana para responder à ameaça da COVID-19. A economia primeiro, disseram eles. Umas quantas mortes, aliás, teriam a vantagem de eliminar improdutivos, como pobres e velhos, reduzindo despesas com a segurança social e aplanando caminho para uma retoma impetuosa. Não o disseram assim, como é óbvio. Mas a ideia, subconscientemente ou não, era exatamente essa. Não por acaso é nos grandes países que seguiram a pauta da economia primeiro que a situação se tornou especialmente grave. Em todos eles se impôs o fetiche dos mercados. Em todos eles falhou a ponderação do simbólico, saltou à vista o défice da imaginação criadora, estalou a brecha das lacunas culturais.

Tivesse Boris Johnson levado a sério Dorian Gray e saberia o quanto a metamorfose de uma imagem pode revelar o hediondo oculto do modelo perfeito que lhe serviu de referente. Não só não teria sugerido infetar 60 por cento dos seus concidadãos, como também teria evitado, ele próprio, a humilhação de ser tratado num hospital público ficando, ainda por cima, ao cuidado de um enfermeiro estrangeiro, por sinal um português. Depois agradeceu, emendou a mão e fez bem. Mas convém que não esqueça que, talvez inspirado pela nostalgia do império, começou por dizer a economia primeiro. Deu no que deu.

Tivesse Donald Trump refletido sobre Dr. Jekyll and Mr. Hyde, admitindo-se que o leu, e saberia do risco de desenvolver uma patologia esquizofrénica ao dizer todos os dias no Twitter uma coisa e o seu contrário como se fosse duas pessoas, uma menos boa, outra menos má. Também, não só não teria prescrito aos seus concidadãos lixívia para combater o novo coronavírus, como teria evitado a humilhação de ser permanente e publicamente contrariado pelas autoridades de saúde pública. Porventura viciado nas passadas andanças de boneco televisivo a viver de audiências, confundindo números e pessoas, mentindo por norma, também ele apontou ao nirvana da economia primeiro. Num país onde os pobres morrem por não poderem pagar cuidados de saúde, deu no que tinha de dar.


O presidente Jair Bolsonaro é um caso à parte. Evidentemente não leu Frankenstein e se tivesse lido teria manifestado preferência pelo torturador Brilhante Ustra, o seu super-herói da ditadura militar ou pela malta aguerrida dos quadrinhos Marvel de quando andava a brincar ao paraquedismo na tropa. Passar-lhe-ia completamente ao lado a tragédia da criatura concebida para ser super-homem, incapaz de se relacionar com o comum dos mortais, rejeitado por todos. No fundo, a tragédia dele próprio, Bolsonaro, criado pela burguesia Frankenstein brasileira para ser o messias da salvação evangélica, o missionário do extermínio de índios anormais, o curandeiro das minorias doentes como os gays, o campeão da luta contra o contágio dos puros, o capitão do saque. Alguém lhe disse que 70 por cento da população tinha de ser infetada e ele, feito estarola em cima de uma moto de água, lá disparou a facécia com a irresponsabilidade do costume. A economia primeiro. Num país com as assimetrias sociais do Brasil deu no que deu e o pior ainda está para vir.

Finalmente, uma carta aberta de duzentos artistas publicada no Le Monde pôs o dedo na ferida. Encabeçada por Juliette Binoche e pelo filósofo Aurélien Barrau, a carta tem como ponto de partida a opinião de David Cronenberg manifestada numa entrevista recente ao Hollywood Reporter, na qual o cineasta encarava a pandemia como uma oportunidade para repensar o mundo. Os signatários constatam que o consumismo nega o valor da vida - entre os homens, no mundo animal e no mundo vegetal - e que a destruição da natureza atingiu o ponto de ruptura. Exigem-se responsabilidades a quem as tem. Recusam-se os meros ajustamentos. E assim se chega ao essencial: o problema é sistémico, a mudança terá de ser radical. Rejeitamos, portanto, dizem eles, o regresso à normalidade. Assinam, entre outros, Almodóvar, Madonna, Javier Bardem, Joaquin Phoenix, Robert de Niro, Jane Fonda, Iñárritu e Penélope Cruz.

Se o nosso problema fosse apenas um problema de lideranças, mudavam-se as lideranças, resolvia-se o problema. Não é. É mais fundo. É preciso restaurar a autoridade pública democrática sobre o sistema financeiro, promover uma reestruturação profunda das dívidas pública e privada, rever tratados, questionar a globalização neoliberal, pôr travão aos combustíveis fósseis, modificar hábitos de trabalho, levantar as máscaras do consumismo, enfim, um sem número de tarefas e combates no âmbito de um desafio maior que é tornar o planeta um lugar habitável. Como? De certeza certa sei apenas da inevitabilidade de empreender um longo caminho feito de tentativa e erro, avanços e recuos, determinação e perseverança, alterando a correlação de forças a começar pelas lutas do dia a dia, as quais farão tanto mais sentido quanto mais forem enquadradas por uma revolução cultural. Chego, assim, ao meu ponto de partida, reiterando a necessidade de inscrever a centralidade da arte, da cultura e da imaginação na equação global. Não vejo como sem entender as representações do mundo se possam fazer as perguntas para desencadear a ação. Para mais, sabendo que da sombra do tempo que agoniza irrompem novos monstros do velho normal. Perante esse quadro de horror que O Grito do norueguês Edvard Munch poderia simbolizar, precisamos mais do que nunca das ferramentas da Cultura. Li a carta dos 200 artistas. Assino por baixo. Não, definitivamente não quero o regresso à normalidade.

Porto, 12 de Maio de 2020

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Jorge Campos

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        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

Todo o conteúdo © Jorge Campos

excepto o devidamente especificado.

     Criado por Isabel Campos 

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