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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 1 de fev. de 2021
  • 17 min de leitura

A imagem de rosto deste texto é mais uma das que o meu inesquecível amigo Rui Pimentel fez para o meu livrinho A Caixa Negra. O livro, cuja capa traz um desenho de outro grande amigo, o escultor José Rodrigues, tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado e de alguns pontos sobre os quais mudei de opinião, penso que ainda terá alguma utilidade. Até porque foi pensado como uma introdução ao jornalismo de televisão para estudantes tendo como pano de fundo a necessidade de conhecer o Cinema. E nisso não mudei de opinião. Também se fala sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. O que se segue é a segunda de duas partes sobre a Linguagem que constituem o Capítulo III de A Caixa Negra.


Desenho de Rui Pimentel para A Caixa Negra

(Continuação de A Caixa Negra 3 - O Desafio da Linguagem I)


GRIFFITH


foi o primeiro grande intérprete da noção de montagem, foi ele quem, de facto, revolucionou a linguagem do cinema elevando-o ao estatuto de Arte.


Nascido em Janeiro de 1875, em Crestwood, no Kentucky, Griffith recebeu uma educação tipicamente vitoriana muito marcada pelas ideias sulistas. Disso viria a dar conta nos seus filmes, a par de um sentimento de independência intransigente face aos produtores. Com ele não surgiu apenas o cinema-arte, nasceu também, o cinema-indústria do qual, aliás, viria a ser uma das vítimas maiores. Mas o apagamento a que foi sujeito nos últimos anos da sua carreira não obscureceu os seus méritos indiscutíveis, antes os evidenciou, a posteriori, quando foi demonstrado que Griffith era, na realidade, um homem demasiado avançado para o seu tempo: foi o primeiro a utilizar o grande plano como elemento de valorização expressiva e dramática; inovou quanto ao da luz e da sombra, tirando partido dos efeitos de contra-luz; utilizou de modo consequente e planificação e a montagem. Quando, em 1915, fez Birth of a nation a narrativa cinematográfica ficou estruturada e estavam lançadas as bases do cinema moderno, as mesmas bases a partir das quais iria trabalhar e teorizar o genial


EISENSTEIN,


nascido em Riga, Lativa, em 1899. Tal como Vertov, também Eisenstein foi influenciado pelo ambiente familiar quanto ao seu interesse pela arte. Estudou no Instituto de Engenharia de Petrogrado. Quando do derrube do Czar, os pais de Eisenstein partiram para a Europa, mas ele optou por alistar-se como engenheiro no Exército Vermelho, construindo pontes durante dois anos. Depois, deixou-se levar pelas suas inclinações artísticas e começou a desenhar cartazes de propaganda. Um acaso levou-o até ao mais famoso teatro de Moscovo, o Proletkult, onde leccionavam os mundialmente conhecidos Konstantin Stanislavsky e Vsevolod Meyerhold. Apaixonado pelo teatro, o jovem Eisenstein nutria, em contrapartida, uma enorme suspeição quanto ao cinema, considerado um meio pobre. Começou a estudá-lo para o destruir e fez até um pequeno filme parodiando as actualidades de Vertov. Acabou, afinal, por sucumbir ao fascínio das imagens.


O Couraçado Potemkine é a sua obra maior. Realizado em 1925, este filme é considerado "o exemplo mais perfeito e conciso da estrutura fílmica em toda a História do Cinema".(20) Com prestígio semelhante devem, no entanto, citar-se os filmes de D. W. Griffith O Nascimento de uma Nação e de Orson Welles O Mundo a Seus Pés. À semelhança dos filmes de Griffith e Welles, o Potemkine foi menos consequência de um rigoroso planeamento do que de uma intensa expansão de energia criadora. Na sua versão completa durava oitenta e seis minutos à velocidade do cinema mudo — dezasseis imagens por segundo — e continha 1.346 planos, um número invulgarmente elevado quando comparado, por exemplo, a O Nascimento de uma Nação, o qual, demorando cento e noventa e cinco minutos tinha apenas 1.375 planos. Só por si os números são indicadores da complexidade da montagem do Potemkine.


A MONTAGEM DIALÉCTICA


Eisenstein entendia a montagem como um processo operativo segundo a dialéctica marxista, a qual encara a História numa perspectiva conflitual: uma força (tese) colide com a sua contrária (antítese) de modo a produzir um fenómeno novo (síntese). Num diagrama, essa conflitualidade poder-se-ia representar do seguinte modo:



A síntese não corresponde a um mero somatório da tese e da antítese. É algo de diferente, gerador de um novo processo dialéctico que, por sua vez, dará origem a uma nova síntese e assim sucessivamente. Ora, Eisenstein sustentava que na montagem, o plano, ou "célula de montagem", é uma tese; quando colocado em justaposição com outro conteúdo visual oposto — a sua antítese — produz uma síntese (uma ideia sintética ou impressão), que por sua vez se transforma na tese de um novo processo dialéctico ajustado à sequência da montagem. Por outras palavras, a montagem surge como uma série de ideias e impressões resultantes da colisão de planos independentes. Utilizando uma metáfora industrial, Eisenstein comparava esse processo "à série de explosões de um motor de combustão interna, levando para diante o automóvel ou o tractor."(21) E acrescentava:


"Tal como as palavras isoladamente numa frase dependem, para o sentido, das palavras que a cercam, do mesmo modo os planos isolados numa sequência montada ganham sentido mediante a sua interacção com os outros planos da sequência."(22)


Montagem em o Couraçado Potemkine (1926) de Sergei Eisienstein: Alegoria de O Leão que Acorda

A COMPOSIÇÃO LÓGICA


Outro soviético, Vsevolod Pudovkin, anota que "só à luz dos seus métodos de montagem se pode julgar a personalidade de um realizador. Assim como cada escritor tem o seu estilo literário também cada realizador tem o seu estilo cinematográfico: o seu método pessoal de representação fílmica."(23)


"Ao juntar as peças — acrescenta Pudovkin — o realizador cria o seu próprio espaço de ecrã."(24) Ou seja, impõe a sua marca distintiva, na sequência, afinal, da tese vertoviana da visão activa da realidade: boas imagens tratadas analiticamente através da câmara proporcionam a possibilidade de proceder a uma espécie de alquimia imagética, a qual se distingue radicalmente do corte semanticamente irrelevante. A transposição destes conceitos para o trabalho de reportagem permite constatar que num grande número de casos não existe sequer montagem. Faça-se a seguinte experiência: tire-se o som ao televisor durante uma emissão de notícias: ver-se-á como a maioria das imagens são confusas, sem ritmo e desarticuladas quando, em rigor, só por si, já deveriam contar uma história. Dizia Pudovkin a propósito da montagem: "O corte não existe. O que existe é a composição lógica."(25)


Dito de outra maneira, segundo Boretsky e Kuznetsov as funções de corte


"são muito mais amplas: são funções semânticas, fazem parte do enredo ou do elemento emocional (criam a atmosfera, por assim dizer). A chamada 'imagem de fundo' está a ser criada com o auxílio destas 'dimensões secundárias' descobertas pelo operador da câmara. Ela confere ao material saturação emocional, informa o público sobre uma situação, de uma maneira concentrada: poderá até dispensar-se o comentário simultâneo."(26)


Esta é uma questão chave da linguagem da Televisão quando aplicada à reportagem. Merece uma indagação tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista do paradigma dos efeitos, no âmbito da relação do impacto da mensagem com a reacção por parte do público. E repare-se que esta abordagem das imagens, por razões de método, antecedeu, propositadamente, qualquer referência, aliás, indispensável, ao som e à forma de escrever para Televisão. Justamente porque a componente visual é determinante, quer na construção da narrativa, quer na estimulação de uma atitude crítica e criativa por parte do receptor, no fundo, interpelando-o por forma a promover a sua cidadania e, em última instância, apelando ao seu envolvimento democrático por oposição ao entorpecimento envolvente.


Vsevolod Pudovkin: "O CInema é o maior de todos os professores porque ensina não só através do cérebro, mas também através de todo o corpo.". Fonte: IMDb

O GRAMOFONE ILUSTRADO


Correndo embora o risco da redundância importa insistir na perspectiva de Boretsky e Kuznetsov quando afirmam que


"na maioria das vezes os métodos do trabalho literário utilizados na Imprensa, e ainda mais frequentemente na Rádio, são automaticamente aplicados na Televisão. São inadequados porque subestimam a imagem que o público capta. Um autor que utiliza esses métodos na Televisão, esforça-se muitas vezes, provavelmente de uma maneira subconsciente, por dar a primazia ao texto e pôr a imagem em segundo lugar (...). Daí resulta o que René Clair habilmente classificou como 'um gramofone com várias ilustrações'."(27)


"Escrever é cortar palavras" disse uma vez o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Isso é especialmente verdade em Televisão, cuja linguagem integra, como vimos, diversos sistemas de comunicação. O cineasta francês Robert Bresson, por seu turno, formulou o seguinte aforismo: "A imagem principal no filme sonoro é o silêncio"(28). E o realizador soviético Alexander Dovzhenko recomendava aos argumentistas que


"deviam pensar sempre naquilo que é melhor não escrever, naquilo que deve ser deixado de fora ... naquilo que deve ficar nas entrelinhas, para despertar a percepção artística, criativa e activa do espectador, em vez de o adormecer com cuidados redundantes."(29)


Pois bem, em Televisão, o repórter experiente habituou--se a confiar acima de tudo nas suas imagens, procurando entender a sua lógica interna. Muitas vezes, são elas que determinam a construção da peça. Escolhem-se as melhores e de maior conteúdo metafórico, para depois as organizar. Quantas vezes imagens interessantes não salvam um assunto banal e quantas vezes a qualidade do repórter se não mede pela sua capacidade de ultrapassar a banalidade através de uma manipulação hábil dessas mesmas imagens!


O TEXTO: CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS


Do exposto facilmente se conclui ser preferível a montagem prévia das imagens à redacção do texto off. Contudo, nem sempre isso é possível. Com frequência é necessário dar informações sem o apoio das imagens adequadas. Neste caso, podem utilizar-se as chamadas imagens pretexto, as quais se limitam a servir de suporte do texto. Ainda assim, o repórter há-de tirar o partido possível delas, levando em conta o seu conteúdo manifesto. É o que acontece com a utilização de uma parte substancial do material de arquivo. Dispondo de tempo, o repórter pode e deve recorrer, também, ao grafismo electrónico.


"Escrever é cortar palavras."

Entretanto, quando se afirma o primado da linguagem visual, não deve excluir-se a possibilidade de procedimentos diversos quanto à elaboração do texto. Por exemplo, redigi-lo antes da montagem das imagens. Os repórteres das estações americanas (e, cada vez mais, os europeus) fazem-no. A peça estrutura-se em função do destaque das frases-chave dos entrevistados, com valorização dos elementos constitutivos da realidade sonora. É uma forma de proceder aparentemente decorrente da natural e progressiva autonomização da linguagem televisiva, bem como de um modo de fazer que foi criando a sua própria escola em circunstâncias culturais específicas, nada tendo a ver com o trabalho do repórter inexperiente ou proveniente de outros media, que se limita a transpor mecanicamente outras linguagens para a Televisão.


Bem pelo contrário, a escola americana exige o domínio da linguagem televisiva por parte de todos os elementos implicados na reportagem, do operador de câmara ao operador de montagem, passando, naturalmente, pelo jornalista, a quem cabe o papel de coordenar todo o trabalho. Por outras palavras, o operador de imagem, conhecendo as potencialidades analíticas da câmara, age de acordo com um guião previamente fornecido pelo jornalista; o montador, sendo um especialista da articulação de planos visuais e sonoros, utiliza criativamente o guião e o texto jornalísticos, no sentido de concretizar a história (é assim, de uma forma feliz, que os americanos chamam à reportagem); e o repórter redige o seu texto a pensar nessa história, a partir do seu guião e das imagens, sons e frases-chave de que dispõe. Ora isto, nada tem a ver com a fórmula do "gramofone ilustrado". Muito pelo contrário remete, em última instância, para a lógica das imagens.


O TEXTO


é um dos aspectos mais interessantes e complexos da linguagem da Televisão. A seu respeito ouvem-se frequentes críticas. Muitas vezes, essas críticas são pertinentes porque evidenciam determinados erros óbvios do ponto de vista da gramática da língua, como é o caso de concordâncias incorrectas ou de sucessivas e injustificadas trocas do tempo dos verbos. Pertinentes são igualmente as críticas ao modo como alguns profissionais se exprimem oralmente. Nem sempre, porém, a crítica tem razão, sobretudo quando revela desconhecimento da necessidade do texto combinar com planos visuais e sonoros, dando lugar a formas expressivas cuja correcção não pode ser aferida em função do critério exclusivo da gramática da língua. Quando se ouve denunciar a transformação do português em teleguês, bom seria refletir sobre o carácter global da linguagem televisiva pois, se calhar, o teleguês anunciado é uma necessidade linguística ajustada às características do medium. Será, até, porventura, uma exigência da sua democratização. O que não quer dizer que não haja também verdadeiros atentados à língua portuguesa.


Na sequência das suas considerações sobre os media enquanto extensões dos sentidos humanos, McLuhan faz a distinção entre meios quentes (hot) e meios frios (cool). Não cabe aqui uma análise detalhada sobre estes aspectos. Bastará referir que, segundo ele, os meios quentes apelam fundamentalmente a um sentido, exigindo reduzido grau de participação; os meios frios, pelo contrário são altamente participativos e apelam a mais do que um sentido. Diz McLuhan:


"A TV é um meio frio, participante. Quando aquecido por dramatização e aguilhoadas, o seu desempenho decresce, porque passa a oferecer menos oportunidades à participação. O rádio é um meio quente. Quando intensificado, o seu desempenho é melhor. Não convida os seus usuários ao mesmo grau de participação. O rádio pode servir como cortina sonora ou como controle do nível de ruído: é assim que o adolescente o utiliza para desfrutar de uma certa intimidade. A TV não funciona como pano de fundo. Ela envolve. É preciso estar com ela."(30)


Marshall Mcluhan: "O meio é a mensagem.". Fonte: Mcluhan Galaxy

Este envolvimento em profundidade, sinestésico, seria, portanto, uma das características da Televisão, exigindo a participação do espectador. Desde logo, ele está perante uma imagem de baixa definição, cujos contornos só ganham clareza mediante um esforço de descodificação das linhas e pontos luminosos a partir dos quais é possível reconstituí-la. Este esforço pressupõe um contacto sensorial global, participativo, iminentemente táctil, visto a Televisão tocar, envolvendo, todos os sentidos.


Sublinha McLuhan: "Como a baixa definição da TV assegura um alto envolvimento da audiência, os programas mais eficazes são aqueles cujas situações consistem de processos que devem ser completados."(31)


Esta lógica é abrangente do texto, o qual necessita igualmente de ser completado. No limite, poder-se-ia, até, afirmar a possibilidade de um texto off televisivo, isolado da narrativa visual, ser absolutamente incorrecto (incompleto) do ponto de vista da gramática da língua, mas inteiramente correcto se integrado (completado) no contexto dessa mesma narrativa. Por outras palavras, um texto sobreaquecido — comportando, por exemplo, a redundância ou com pretensões literárias — é naturalmente desajustado ao meio frio que é a Televisão. Dissuade a participação e promove o ruído e o entorpecimento. Em contrapartida, o texto arrefecido — claro, conciso e rigoroso — limitando-se a esclarecer e aprofundar o sentido dos planos visuais (e sonoros), estimula a atenção e promove a participação: é mais "democrático".


AUDIBILIDADE


Tecnicamente, no texto há-de prevalecer a audibilidade, o tom coloquial, procurando-se tirar partido das possibilidades rítmicas e fonéticas da língua, conferindo-lhe musicalidade. Afirma Aor da Cunha que o repórter


"verifica sempre a sonoridade das palavras no texto, lendo em voz alta o que escreve. Muitas vezes um sinónimo pode dar harmonia à sonoridade de uma frase sem qualquer prejuízo à informação. Outras vezes, mudando a ordem das palavras consegue dar sonoridade à oração. Isto porque palavras mal colocadas quebram o ritmo do tópico, o que é fundamental. O equilíbrio do texto favorece a concentração de quem ouve. Não pode ser contundente ou agressivo; nem monótono ou lento. Para ritmar, usa frases curtas que ajudam a compreensão e dá sentido de acção à notícia, além de imprimir-lhe objectividade. A pontuação indicando as pausas e o tom, dá o sentido interpretativo da locução. O texto basicamente identifica os elementos fundamentais da notícia, mas com ritmo, harmonia e tom. Verdadeira música."(32)


Porque existe em função das imagens, o texto televisivo é necessariamente lacónico. Só excepcionalmente um período terá mais de quatro linhas. Dizia Scott Fitzgerald que não se escreve por se ter vontade de dizer alguma coisa: escreve-se porque se tem alguma coisa para dizer. Quando, só por si, as imagens forem suficientemente esclarecedoras ou emotivas dar-se-á espaço ao silêncio. A trivialidade, o lugar comum, o chavão empobrecem o texto. Em suma


"o telejornalismo não é preconceituoso nem presumido. Simplesmente defende-se das formas afectadas no escrever. Ajuizadamente não se municia de termos pretensiosos. Procura ser natural e, por isso, se exprime em tom coloquial e espontâneo, para poder chegar e, quem sabe, ficar. A frase pomposa é arredia e apartada da população, especialmente aquela que vê e ouve televisão."(33)

Scott Fitzgerald: "Não se escreve por se ter vontade de dizer alguma coisa, escreve-se porque se tem alguma coisa para dizer.". Fonte: PBS

O COMENTÁRIO SOBRE A IMAGEM


é a fórmula habitualmente utilizada para caracterizar o texto de Televisão. Conhecendo as regras de articulação dos planos, bem como a sua dinâmica interna, o repórter orienta a montagem da sua peça. Porque trabalhou a partir de um guião, mesmo que rudimentar, dispõe de um conjunto de imagens cuja ordenação, só por si, constitui o módulo nuclear da reportagem. Ao montador compete imprimir o ritmo adequado à narrativa visual, bem como valorizar os planos sonoros susceptíveis de sugerir uma maior aproximação à realidade. Uma vez montada, a peça é logo significante, cabendo ao texto a função de esclarecer e aprofundar o seu sentido. Para o redigir o repórter procede à cronometragem dos planos anotando a sua tipologia, os movimentos de câmara e o áudio a aproveitar, quer em termos de som ambiente, quer de grandes planos sonoros. Em função destas indicações pode redigir um bom texto destinado a ser dito com as indispensáveis pausas e momentos de silêncio quando as imagens assim o exigirem. A leitura far-se-á com a narrativa visual correndo diante dos olhos do repórter, permitindo-lhe ajustar a voz às necessidades expressivas do momento.


Obviamente, estas regras não excluem outros procedimentos. Aliás, cada repórter, dada a flexibilidade do medium, acaba, muitas vezes, por desenvolver técnicas próprias. De qualquer modo, a experiência do comentário sobre a imagem abre abre espaço para explorar a linguagem da Televisão, na medida em que procede do conhecimento global dos diversos sistemas de comunicação que a compõem.


O SOM


Pelas razões evidenciadas optou-se, metodologicamente, por dar prioridade ao tratamento da narrativa visual. Porém, quando entendida na globalidade do quadro audiovisual, a lógica das imagens não prescinde da dimensão sonora da realidade. Pelo contrário, o som é cada vez mais entendido como um sistema gerador de sentido quando se trata de promover a ilusão da realidade.


Jean Cloutier chama audioesfera ao mundo audível. Segundo ele, a audioesfera é composta por três elementos: a fonte sonora, o som e a audição.


A fonte sonora é o emissor que transmite uma informação acústica seja ela acidental, como o ruído, ou desejada, como a palavra e a música.


O som é um fenómeno simultaneamente físico e fisiológico: propaga-se em ondas em todas direcções, dependendo a sua existência da forma como é percepcionado. A intensidade de um som tem a ver com a sua força ou o seu volume, dependendo da amplitude da vibração, ou seja, do espacejamento maior ou menor entre os limites inferiores e superiores da onda sonora. A intensidade do som mede-se em decibéis. A altura do som varia de baixo (grave) a alto (agudo), obtendo-se essa tonalidade através da frequência, isto é, o número de vibrações por segundo. A unidade de medida é o hertz. O timbre de um som é a qualidade que permite distingui-lo dos outros sons, sendo constituído pelas harmónicas, "notas" derivadas do som fundamental, cuja frequência é a mais baixa. O timbre confere ao som, por exemplo, à voz humana, a sua personalidade própria.


Finalmente, a audição é possível graças ao ouvido que capta a vibração das ondas sonoras para as transmitir ao cérebro, tal como o microfone as capta para permitir a sua transmissão, amplificação ou registo. O ouvido é um instrumento notável: "Pode captar sons de tal modo fracos, que apenas fazem vibrar o tímpano numa distância inferior ao diâmetro de uma molécula de hidrogénio, e sons até milhões de vezes mais fortes. Pode distinguir 400.000 sons diferentes"(34). Citando redactores da revista Life, Cloutier sublinha que o ouvido


"pode adaptar-se, tanto às baixas frequências de uma sereia, como ao zumbido perfurante de um motor de reacção. Consegue, também, fazer a distinção, subtil, entre a música tocada pelos altos e a dos violinos de uma orquestra sinfónica. Pode rejeitar o bru-a-a de uma reunião de amigos, seleccionando uma única voz familiar. Mesmo durante o sono, o ouvido funciona com uma eficiência incrível."(35)


Jean Cloutier nos anos 60, o homem que antecipou a noção de self media. Fonte: Histoire du Monde

O PLANO SONORO


Na verdade, a realidade sonora é tão complexa quanto a realidade visual, pelo que a sua representação signíca pressupõe o domínio de uma linguagem específica. Por exemplo, do mesmo modo que se fala do tamanho do plano visual, também é possível falar do tamanho do plano sonoro, ou seja da quantidade de informação de som nele contido. O som de uma multidão assistindo a uma partida de futebol quando acontece um golo será um grande plano sonoro; um plano de pormenor, o som de uma gota de água caindo ritmicamente de uma torneira mal fechada, quando nada mais de ouve. Pode, igualmente, falar-se do colorido ou da tonalidade do plano, identificando estes conceitos com a sua altura mais ou menos aguda (brilhante) ou mais ou menos opaca (grave). Quando devidamente estruturado, o plano sonoro valoriza a reportagem, porque ao introduzir sons familiares facilita a identificação do espectador com a acção, potenciando a mensagem. Dada a inseparabilidade da imagem e do som, Llorenç Soler coloca assim a questão: "Se é certo que a banda sonora há-de gozar de certa autonomia no seu tratamento, é igualmente verdade que o seu valor significante só alcança autêntica dimensão a partir da união com a imagem."(36)


Tal como a captação da imagem visual exige a câmara, a captação da imagem sonora exige o microfone. O microfone pode ser utilizado de modo diverso, com maior ou menor proximidade da fonte sonora, procurando evitar-se o volume demasiado elevado, gerador de distorção, ou demasiado baixo, anulador da multiplicidade de matizes do som ambiente. É essencial não sobrecarregar o microfone, aproximando-o em demasia da fonte, nem amplificar excessivamente o sinal de reprodução, ou seja, a sobremodulação.


Se a câmara pode mudar de ponto e ângulo de vista, mudando de posição ou modificando as objectivas, o microfone pode igualmente mudar de posição e ser utilizado nas suas diversas versões, de acordo com as suas principais propriedades, a sensibilidade e a direccionalidade. Sem entrar em pormenores, dir-se-á que a sensibilidade é determinada pela amplitude de sinal áudio que o microfone é capaz de alcançar para um volume de som prefixado. A direccionalidade tem a ver com sensibilidade espacial do microfone. No caso de se tratar de um microfone omnidireccional, captará com a mesma sensibilidade o som proveniente de todas as direcções. O superdireccional, ou canhão, é sensível ao som proveniente de uma só fonte. O cardióide tem características intermédias.


EQUÍVOCOS HABITUAIS


Um dos aspectos mais exasperantes para um repórter de Televisão experiente é assistir ao modo como, muitas vezes, o som é maltratado. Isso acontece tanto na captação, quanto na montagem e na emissão. As razões desse procedimento incorrecto relevam, na maioria dos casos, de uma interpretação apressada do velho aforismo chinês segundo o qual uma imagem vale mais que mil palavras, mas decorrem, igualmente, de uma atitude mais ou menos generalizada de aceitação do processo de ilustração de textos. Por outras palavras, ao admitir o primado das imagens, tout court, perde-se a perspectiva da globalidade audiovisual da realidade; ao aceitar a prioridade do enunciado contraria-se a lógica visual; e, no meio deste emaranhado contraditório, a representação signíca da realidade sonora, à excepção do texto, quase, ou pura e simplesmente, desaparece. É uma rede de equívocos resultantes da compartimentação dos diversos sistemas de significação e da incapacidade de os reunir de forma a articular um texto global.


Fonte: Happy Mag

Muitas vezes, na captação do som são utilizados microfones inadequados, não se corrigem os níveis e, com maior frequência do que seria desejável, a equipa troca impressões juntando vozes ao conteúdo sonoro requerido. Na montagem, dá-se apenas um "cheirinho" de som ambiente, expressão reveladora de falta de entendimento da linguagem audiovisual. E à emissão, quando as coisas já chegam mal, mal continuam, e se chegam bem, mas sem que o áudio tenha sido previamente misturado, corre-se o risco de, por exemplo, o nível da música ou do som ambiente ser reduzido à escala do tal "cheirinho". Tudo isto empobrece a mensagem, retirando-lhe impacto.


Outro equívoco habitual remete para a facilidade com que se transferem vozes da Rádio para a Televisão. Ao contrário do que se supõe, nem sempre uma boa voz da Rádio é uma boa voz da Televisão. Avisadamente Gontijo Teodoro reconhece que o telejornalismo exige um desempenho muito diferente do radiojornalismo, dando preferência às vozes metálicas, agudas, imprimindo um ritmo de leitura quase marcial, com ênfase nos nomes de lugares, de pessoas e nas palavras-chave de cada frase. Afirma Teodoro:


"Embora a voz grave se mostre mais suave e, por isso mesmo, impressionando melhor, não é a indicada para a leitura de notícias. A voz aguda, mais metálica e menos suave, é mais inteligível e alcança com mais facilidade o centro auditivo do ser humano. Os sons graves se perdem e se confundem, por mais perfeita que seja a aparelhagem que esteja transmitindo a fala humana e a sua consequente recepção. Acresce, ainda, que ninguém assiste televisão com cem por cento de atenção. Os ruídos circundantes, a poluição sonora, tudo colabora para dificultar a audição dos textos lidos diante de câmaras e microfones. É preferível que o locutor de notícias tenha uma voz aguda, clara, ao invés de voz grave."(37)


A SENSORIALIDADE


Ao terminar este capítulo sobre a linguagem da Televisão impõe-se, ao menos, uma referência a um dos aspectos menos conhecidos e que maiores perplexidades comporta, a sensorialidade do medium. É uma questão central do pensamento de McLuhan e dos seus seguidores, cujo alcance está longe de ter sido determinado. Genericamente, pode afirmar-se que o audiovisual, aliando som, imagem e movimento, é uma linguagem relativamente completa, visto estar perfeitamente integrada no continuum espacio-temporal no qual o homem vive. É uma linguagem integral. Destinada a ser percebida simultâneamente pelo olho e pelo ouvido, permite o empenhamento de todo o ser, o qual não necessita de recriar uma realidade parcelar, como acontece, por exemplo, com a escrita. Ora, esse empenhamento impõe, justamente, a sensorialidade, certamente um dos aspectos mais controversos e perturbadores da linguagem audiovisual:


"É ao mesmo tempo a sua força, visto que funciona ao nível da emoção, e a sua fraqueza, porque não permite uma análise rigorosa — a imaginação não é obrigada a completar uma informação já completa e o empenhamento impede o recuo, o qual facilita o exame e o juízo. O audiovisual facilita pois, a participação no acontecimento, mas nem sempre, a compreensão desse acontecimento."(38)


O que é, evidentemente, um ponto de vista nada pacífico.





(Continua)


Notas remissivas


20. Em Junho e Julho de 1987, a Cinemateca Portuguesa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian realizou um ciclo do Cinema Clássico Soviético. A citação é retirada de um texto não assinado do catálogo, aliás notável, que então foi publicado. Trata-se, de qualquer modo, de uma afirmação relativamente pacífica, perfilhada por inúmeros historiadores do cinema.

21. EINSENSTEIN, S. M.

Obras Escolhidas, edições Yusskússtvô, Moscovo, sem data

22. Ibidem

23. PUDOVKIN, Vsevolod

Argumento e Realização, Editora Arcádia, Lisboa, 1961

24. Ibidem

25. Ibidem

26. BORETSKY, R. e KUZNETSOV, G.

O Trabalho de Jornalista e a Televisão, Organização Internacional de Jornalistas, Praga, 1983

27. Ibidem

René Clair é citado por Boretsky e Kuznetsov

28. Ibidem

Robert Bresson é citado por Boretsky e Kuznetsov

29. Ibidem

Alexander Dovzhenko é citado por Boretsky e Kuznetsov

30. McLUHAN, Marshall

Os Meios de Comunicação com Extensões do Homem, Cultrix, S. Paulo, 1988

31. Ibidem

32. AOR DA CUNHA, Albertino

Tele-Jornalismo, Editora Atlas S.A., São Paulo, 1990

33. Ibidem

34. CLOUTIER, Jean

A Era de Emerec ou a Comunicação audio-scripto-visual na Hora dos self--media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, 1975

35. Ibidem

36. SOLER, Llorenç

La Televisión - una metodologia para su aprendizage, Editorial Gustavo Gilli, S.A., Barcelona, 1988

37. TEODORO, Gontijo

Jornalismo na TV, Editora Tecnoprint, S.A., Rio de Janeiro, 1980

38. CLOUTIER, Jean

A Era de Emerec ou a Comunicação audio-scripto-visual na Hora dos self-media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, 1975


  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 16 de jan. de 2021
  • 20 min de leitura

Atualizado: 30 de jan. de 2021


A imagem de rosto deste texto é uma das que o meu inesquecível amigo Rui Pimentel fez para o meu livrinho A Caixa Negra. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. O livro, cuja capa traz um desenho de outro grande amigo, o escultor José Rodrigues, tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade, até porque foi pensado como uma introdução ao jornalismo de televisão para estudantes tendo como pano de fundo a necessidade de conhecer o Cinema. Também se fala sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. O que se segue é a primeira de duas partes sobre a Linguagem que constituem o Capítulo III de A Caixa Negra.


(Continuação de A Caixa Negra 3)


A LINGUAGEM


Desenho de Rui Pimentel para A Caixa Negra

A NARRATIVA AUDIOVISUAL

Até agora o termo linguagem tem sido utilizado sem que dele tinha sido dada qualquer definição. Por outro lado, importa verificar se existe, de facto, uma linguagem de televisão. O que é, então, uma linguagem?


"Uma linguagem é um sistema semiótico ordenado de comunicação (que serve para transmitir a informação). Desta definição de linguagem como sistema de comunicação decorre a propriedade da sua função social: a linguagem assegura a troca, a conversação e a acumulação da informação na colectividade que a utiliza. O que define a linguagem como sistema semiótico é a circunstância de ela ser constituída por signos. Para realizar a sua função de comunicação, uma linguagem deve dispôr de um sistema de signos. No processo de troca de informação no seio da colectividade, o signo é o equivalente material dos objectos, dos fenómenos e dos conceitos que exprime. Por conseguinte, a principal característica do signo é a sua capacidade de exercer a sua função de substituição."(1)


Tal como uma moeda, o signo tem duas faces: o significante, ou seja, a expressão, a manifestação sensorial que permite a sua representação, e o significado, que é o conteúdo, a ideia, e que não pode confundir-se com o objecto, antes se identificando com o conceito que se tem desse mesmo objecto. O objecto é o referente. Da união entre o significante e o significado resulta o processo de significação.


Uma linguagem, por outro lado, não é um sistema de signos isolados. É, sim, um sistema organizado, condição mesma para a constituição de qualquer linguagem e respectivas regras. Segundo Lotman, as regras de sintaxe "orientam a combinação de sinais isolados em sequências, em proposições e correspondem às normas de uma dada linguagem".(2) Ainda de acordo com o mesmo autor, "na medida em que os signos são sempre o equivalente de qualquer coisa, há uma relação constante do signo com o objecto que substitui. Essa relação (biunívoca) entre a expressão e o conteúdo constitui a semântica do signo."(3)


Página de A Caixa Negra com desenho de Rui Pimentel

No que respeita à Televisão, ela é um meio audiovisual caracterizado fundamentalmente pela imagem e pelo som, os quais surgem articulados de modo a resultarem numa realidade (outra) perceptível pelo olho e pelo ouvido, após reprodução por um sistema técnico. Uma tal realidade é, naturalmente, uma resultante seleccionada, estruturada, codificada em função de limites muito precisos, como sejam, por exemplo, a objectiva da câmara e o microfone. De tal modo, que a coordenação simultânea de imagens acústicas, visuais e verbais convoca uma leitura plurissintáctica, cujos nexos e articulações remetem para códigos procedentes de diversos campos de experiência convergindo num propósito comum.


Por outras palavras, o audiovisual, e a Televisão em particular, funciona como um conjunto de relações as mais diversas, cuja síntese decorre de uma estrutura unificadora, a qual recolhe e dá sentido a todos os sistemas parciais de comunicação e significação integrados no meio. Neste sentido, os sistemas parciais funcionam em termos de uma maior ou menor autonomia relativa no âmbito da sua esfera particular, uma vez que mantêm interdependência entre si, para se organizarem numa unidade superior à qual Cebrián Herreros chama o "sistema audiovisual cinético".(4)


Quais são esses sistemas parciais, cada qual com o seu conjunto organizado de signos?


Cebrián Herreros destaca, em primeiro lugar, o sistema da realidade sonora. Engloba as realidades acústicas naturais ou criadas pelo homem. Cabem nele o verbal falado ou linguagem coloquial, os ruídos, o silêncio e a música.


Depois vem o sistema visual. Comporta todos os sistemas de comunicação e significação relacionados com a vista e com a psicologia da percepção visual. Inclui-se neste sistema a linguagem escrita com todas as suas variantes gráficas, como sejam o grafismo electrónico e a legendagem, cuja influência no conjunto dos elementos audiovisuais é notória.


Há, finalmente, o sistema de transformação técnico--retórico audiovisual, através do qual o repórter enquadra e regula os outros dois. Neste sistema cabe tudo quanto respeita à selecção visual ou sonora da realidade, bem como a sua manipulação através, por exemplo, das objectivas da câmara, da montagem, iluminação, caracterização, sonorização, etc.


Dito isto é legítimo concluir pelo facto da Televisão constituir um sistema semiótico de comunicação: serve para transmitir informações e tem uma linguagem que lhe é própria. Essa linguagem é complexa, dada a multiplicidade de variáveis, e é a partir dela que se constrói a narrativa (ou reportagem) televisiva e audiovisual.


Cebrián Herreros sintetiza, como se segue, o modelo do sistema audiovisual:



A nova dimensão da realidade adquirida em função deste encadeado de signos constitui, pois, a narrativa audiovisual, indissociável do conceito de encenação. A reportagem, bem como qualquer outro género jornalístico, é sempre encenação. No caso da reportagem trata-se de contar uma história no quadro de um contexto histórico-cultural: sons e imagens procedem da realidade, são seleccionados e estruturados, postos em cena, organizados por forma a substituir a realidade da qual procedem, ou não cumprissem os signos, justamente, uma função de substituição. Daí, como antes se disse, o facto da mensagem da Televisão ser tanto mais eficaz quanto mais próxima da realidade for a ilusão dela criada. Sendo assim, a primeira atitude do repórter de Televisão é empreender um esforço no sentido de se apropriar da sua linguagem, o que desde logo passa pelo princípio da


VISÃO ACTIVA


Wim Wenders, o cineasta de O Amigo Americano, Paris, Texas e As Asas do Desejo, refere-se assim ao início da sua carreira : "Mesmo no começo — e dele muito me restou — para mim, fazer filmes era: colocar-se a câmara algures e dirigi-la para alguma coisa muito concreta e depois não fazer mais nada, deixá-la apenas correr. E os filmes que mais me impressionavam eram também os dos realizadores muito, muito antigos, da viragem do século, que gravavam apenas e se admiravam que houvesse algo no material. Estava-se, muito simplesmente, fascinado pelo facto de se poder fazer uma imagem de alguma coisa em movimento e de se poder revê-la. Um comboio entra na estação, uma mulher de chapéu recua um passo, há fumo, depois o comboio pára. Os pioneiros do cinema filmavam, à manivela, alguma coisa como isto, examinando-a no dia seguinte muito orgulhosos e contentes. É mais o olhar do que o transformar, ou mover ou encenar o que me fascina na realização".(5)


Pode parecer um ponto de vista um pouco contraditório, uma vez que olhar através da câmara é já transformar: o olho da câmara é diferente do olho humano, a realidade gravada num suporte de vídeo ou de filme, mesmo com uma câmara fixa, remete para o domínio dos signos. De qualquer modo esta ideia do olhar é fundamental para o repórter de Televisão: ele tem de saber ler o mundo com o olhar da câmara por razões que se prendem com o título da obra citada de Wim Wenders, A Lógica das Imagens, o qual resume de forma magistral o núcleo do trabalho de reportagem. Repito: a lógica das imagens, algo cujo sentido, por vezes, transcende o acto de vontade do jornalista para se impor em função das sua próprias virtualidades.


AS HISTÓRIAS SÓ DE IMAGENS


Uma boa maneira de entender a Televisão é estudar obras marcantes da época do cinema mudo, quando as histórias se contavam exclusivamente através de imagens com recurso, eventualmente, a uma legenda. São especialmente interessantes os primeiros documentários, como Nanook of the North, em português Nanuk, o Esquimó, realizado por Robert J. Flaherty em 1922.


Nanook of the North (1922) de Robert J. Flaherty

Instalado no Polo Norte durante dois anos, Flaherty apontava a sua câmara para tudo o que via, trabalhando por vezes em condições extremamente rigorosas, com temperaturas inferiores a 55 graus negativos. Filmando sem planificação, já nessa altura Flaherty revelava uma confiança intuitiva e quase absoluta nas imagens obtidas pela sua câmara. (Nota do Autor de 2021: sabemos hoje que não foi assim).


"Foi a montagem — segundo os historiadores do cinema René Jeanne e Charles Ford — que, reunindo todos esses elementos destinados a uma fita publicitária, fez uma obra humana e poética, cujo interesse e valor tem resistido à dura prova do tempo. Esse facto confirmou-se quando, transposto para a cadência de 24 imagens por segundo — a cadência do cinema sonoro — e devidamente acompanhado de um comentário falado e musical, Nanook of the North começou uma nova carreira, em 1950, nos écrans franceses."(6)


Na verdade, o que se acrescentou foi algo de semelhante a um comentário sobre a imagem, lacónico, porque as imagens de Flaherty, devidamente estruturadas na montagem, já contavam, exemplarmente, uma história.


Com Flaherty nasceu o documentário cinematográfico, um género que precedeu a reportagem televisiva. Na opinião de muitos é, todavia, ao cineasta soviético Dziga Vertov, a quem as actualidades de Televisão mais devem. Vasco Granja, autor de um livro sobre Vertov e um dos raros portugueses que teve a oportunidade de ver boa parte do material por ele filmado, tem a seguinte opinião: "Quer se queira quer não, consciente ou inconscientemente, muito do que hoje se faz em Televisão vai beber à inesgotável fonte perfurada pelo pesquisador Vertov. Embora diluídos muitos dos seus princípios teóricos, a aplicação prática da sua obra é quotidianamente posta em circulação numa parte considerável do cinema feito para a Televisão."(7)


E mais ainda na reportagem, se bem executada, acrescento eu. (Nota do Autor de 2021: Como é evidente praticamente nada do que atrás se disse, bem como grande parte do que se segue viria a ter aplicação).


O CINE - OLHO


Dziga Vertov nasceu em 2 de Janeiro de 1896 em Bialysto, na Polónia, então uma província anexada à Rússia czarista. Era o filho mais velho de um casal de bibliotecários, cujo interesse pelo estudo da literatura e da arte viria a ser determinante na formação do jovem Denis Arkadievitch Kaufman, mais tarde Dziga Vertov, nome definitivo inscrito no registo civil e, na verdade, apropriado a uma personalidade tão irrequieta. Dziga é uma palavra ucraniana que tanto pode querer dizer toupeira, quanto roda que gira sem parar ou, ainda, movimento perpétuo. Vertov radica no verbo russo vertet, sinónimo de girar, dar voltas em torno de um eixo. Influenciado pelo futurismo de Maiakovski, Dziga Vertov assumia, assim, de forma integral o princípio enunciado pelo poeta italiano Marinetti, pai do movimento, segundo o qual não há beleza senão na luta.


Dziga Vertov

Escrevera Marinetti, e cito de cor: "Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta." O jovem Vertov não podia estar mais de acordo o que não deixa de ser algo paradoxal posto que, à época, o poeta italiano já se identificava com o fascismo. Em 1918, em Moscovo, começou a trabalhar em cinema. Em breve era o responsável pela montagem do primeiro jornal de actualidades produzido pelo governo soviético, o Kino-Nedelia (Cine-Semanal). Os temas do Kino-Nedelia eram, naturalmente, relacionados com as profundas alterações introduzidas pela Revolução de Outubro, como cenas de combates contra os invasores estrangeiros, acidentes, catástrofes, enfim, as experiências do poder soviético. Se os acontecimentos se sucediam de forma vertiginosa, então era necessário divulgá-los vertiginosamente. Essa necessidade levou-o a tomar conhecimento das possibilidades praticamente infinitas da câmara de filmar. Chegara o tempo da cine-sensação do mundo. Afirmava Vertov:


"O olho submete-se à vontade da câmara e deixa-se dirigir por ela para esses momentos sucessivos de acção que, através do caminho mais curto e mais claro, conduzem a cine-frase em direcção ao cume ou ao fundo do desenvolvimento."(8)


Por outras palavras, Vertov tivera a intuição genial de que a objectiva da câmara recriava a realidade, conferindo-lhe uma vitalidade prodigiosa:


"Eu, cine-olho, crio um homem muito mais perfeito do que aquele criado por Adão; eu crio milhares de homens diferentes e esquemas pré-estabelecidos.


Eu sou o cine-olho.

A um, tomo os braços mais fortes e mais habilidosos, a outro tomo as pernas mais bem feitas e mais velozes, ao terceiro a cabeça mais bela e mais expressiva e, graças à montagem, crio um homem novo, um homem perfeito."(9)


Mas, atenção: não há montagem que salve material filmado de maneira indiferente e superficial.


"Foi por isso que (...) Dziga Vertov, ao tentar 'organizar e dar vida a material que fora filmado em sequências longas e monótonas, salpicado de paisagens frias e formais, se apercebeu da inutilidade dos seus esforços e juntamente com o operador de imagem, mergulhou na profundidade dos acontecimentos. E a câmara adquiriu vida. Escalou o cimo de altos fornos, desceu às profundezas das minas de carvão; acoplada a uma motorizada atravessou colunas de manifestantes, e subiu no céu com o balão dos primeiros conquistadores da estratosfera ... O ecrã tornou-se uma verdadeira janela da vida."(10)


Cine-Olho

Sobre as ideias expostas por Vertov passou muito tempo. Despojado dos seus aspectos retóricos, o discurso vertoviano mantém, no entanto, actualidade. As imagens são, de facto, a matéria prima do jornalismo electrónico. Sem boas imagens não há boas reportagens. Se, por exemplo, durante uma campanha eleitoral se quiser favorecer um dos candidatos, não é necessário confiar a cobertura da campanha a um jornalista simpatizante desse candidato. Isso pode ser útil em termos de manipulação, mas não é tudo. Indispensável é destacar um operador criativo e competente.


Um operador que desconheça as potencialidades criadoras da câmara, só por acaso fará boas imagens. Perde-se em planos gerais mal enquadrados e em panorâmicas repetitivas, quase sempre imprestáveis em termos de articulação sintáctica. Procura adaptar o olho da câmara ao modo de ver do olho humano, invertendo a lógica da visão activa vertoviana. Os resultados são pobres. Nada têm a ver com a lógica das imagens de Wim Wenders, nem com o cine-olho de Dziga Vertov.


O PLANO


Numa das suas obras consagradas à prática do cinema, Lev Kulechov aconselha a treinar a vista olhando para os objectos que se queira filmar através de um pequeno rectângulo com as proporções de um plano recortado numa folha de papel preto. É, de facto, um bom exercício para compreender a diferenciação essencial entre o mundo visível da vida e o mundo visível do ecrã. Este é um mundo segmentado, consequente do trabalho analítico da câmara posteriormente (re)organizado pela montagem.


Se um repórter de Televisão não entender isto incorre no equívoco de dar prioridade aos seus textos em detrimento da articulação das imagens, ou seja, privilegia a gramática da língua preterindo a gramática e a lógica das imagens e, por isso, faz peças frouxas, as mais das vezes, simples textos ilustrados. Se, porventura, cair na tentação de redigir um texto com pretensões literárias, então, arrisca-se a ficar à beira do abismo ou mesmo a cair no ridículo, o que, infelizmente, não é tão pouco frequente quanto isso.


O plano é a unidade mínima de significação do discurso televisivo. Fraccionado em planos, o mundo televisivo permite-nos isolar qualquer pormenor. Diz Lotman:


"O plano adquire a liberdade da palavra: pode ser destacado, combinado com outros planos segundo as leis da associação e da contiguidade semânticas, e não naturais, pode empregar-se num sentido figurado, metafórico ou metonímico."(11)


O plano delimita, pois, o espaço formal da intervenção jornalística na medida em que para reproduzir uma imagem visível da vida, segmenta-a, condicionando tanto a actuação do repórter, quanto a interpretação do espectador. Ao operador de câmara cabe proceder analiticamente, reinterpretando a realidade, mas fá-lo-á de acordo com o jornalista. Um bom operador é capaz de proceder rapidamente à leitura visual de um acontecimento, seleccionando as imagens mais expressivas e de maior conteúdo metafórico. Muitas vezes, a habilidade está em revelar no habitual aquilo que habitualmente passa despercebido. Em todo o caso, jornalista e operador constituem uma equipa. Se falhar uma das componentes o resultado nunca será inteiramente satisfatório. A um operador impreparado não se lhe pode pedir o que quer que seja. O jornalista impreparado, pura e simplesmente, não sabe dizer o que quer.


Planos de diferentes tamanhos em o Couraçado Potemkine (1924) de Sergei Eisenstein

o tamanho do plano


Existem numerosos tratados gramaticais sobre os planos. Porém, não há uniformidade de critérios quanto ao estabelecimento de uma nomenclatura. Há planos gerais, utilizados para situar uma acção; planos médios, cuja função é destacar o elemento mais importante aproximando, ao mesmo tempo, o público da acção e dos seus participantes; e grandes planos, os quais ignoram tudo quanto é secundário, obrigando o espectador a concentrar-se no essencial. Mas, podem fazer-se planos praticamente de todos os tamanhos, bastando variar a distância entre a câmara e o objecto ou utilizar diferentes tipos de lentes. A Televisão privilegia, naturalmente, o grande plano, posto que ele permite concentrar o máximo de informação, reduzindo, ao mesmo tempo, a polissemia. Por isso, é o mais eficaz em termos de prender a atenção de um público apenas medianamente atento.


Vejamos, a título meramente indicativo, uma nomenclatura possível:


"O plano de conjunto: este plano permite um enquadramento de grandes dimensões e destina-se a mostrar o assunto principal relativamente à paisagem ou à decoração.

O semiplano de conjunto: enquadra o assunto principal dentro de limites mais apertados: trata-se de uma solução de compromisso entre o cenário e o assunto, em que as personagens são enquadradas da cabeça até aos pés.


O plano médio é ainda mais limitativo que o precedente: é dado maior relevo ao assunto principal. Se se tratar de pessoas, estas serão enquadradas por inteiro ou a meia figura: o cenário ainda é visível, mas a acção não se situa da mesma forma que nos planos anteriores.


O plano americano enquadra a ou as personagens da cabeça até meio das coxas, devendo existir um bom equilíbrio entre o sujeito e o cenário.


O plano aproximado mostra a personagem enquadrada ao nível do busto.


O grande plano apresenta a personagem enquadrada ao nível dos ombros, permitindo sublinhar as expressões do rosto e as emoções que o animam.


O superplano enquadra uma parte da personagem: as mãos, os olhos, etc.,devendo-se evitar a sua frequente utilização". (12)


A partir destes elementos o repórter pode começar a pensar no modo de elaborar a sua história de imagens: terá de jogar com os diferentes tamanhos do plano susceptíveis de serem captados pela câmara.


Um dia, um jornalista perguntou a John Ford, o célebre realizador americano de origem irlandesa, como conseguira fazer determinada sequência, dado que, em seu entender, se tratava de uma abordagem formal especialmente difícil. Ford era um homem de poucas palavras e de nenhuma paciência em relação ao pedantismo cultural. Talvez por isso se tenha limitado a tirar o seu inevitável charuto da boca e respondido laconicamente: "Com uma câmara." Tão simples quanto isso. Para o repórter de Televisão este facto elementar de ser obrigado a trabalhar com material produzido por uma câmara é da maior importância. Por analogia, poder-se-ia dizer que a câmara é a sua caneta e o plano a sua palavra.


ponto de vista e enquadramento


O plano constitui uma realidade complexa. Desde logo, corresponde sempre a um acto selectivo, visto ser função de um enquadramento e de um ponto de vista ou ângulo a partir do qual a imagem foi captada. Os conceitos de enquadramento e ângulo estão relacionados com a perspectiva. À nossa percepção da realidade tridimensional corresponde a representação bidimensional da imagem televisiva. A perda de volume é, no entanto, compensada, justamente, pela perspectiva, a qual restitui ao espectador a terceira dimensão através de uma ilusão óptica.


Regra dos terços, enquadramento e pontos fortes da imagem em Rear Window (1954) de Alfred Hitchcock

Repare-se, contudo, no seguinte: é necessário distinguir entre o ponto e o ângulo de vista da câmara, os quais coincidem com os do operador quando olha através do visor, e os do espectador. O operador determina os seus ângulos de vista de acordo com uma determinada intenção, não fazendo mais do que mudar de lugar, de objectiva ou movendo a lente zoom. O espectador permanece diante do ecrã segundo um ângulo de visão fixo e inalterável, a menos que mude de posição. Sendo assim, todos os ângulos de tomada de vista se reduzem a um único ângulo de contemplação. Ora se atendermos ao facto da distância ideal face ao aparelho de televisão ser de cinco a seis vezes a medida da diagonal do ecrã — a essa distância o olho humano não se apercebe da descontinuidade resultante das linhas e pontos a partir dos quais se reconstitui a imagem — então temos um ângulo de visão do espectador à volta dos oito-graus. É por isso, segundo Jaime Barroso García que "a restituição da máxima realidade, ou seja, da chamada perspectiva natural se consegue quando se procura uma identidade entre o ângulo de observação do espectador e o da captação ou registo (o ângulo da objectiva) da imagem."(13) No caso da Televisão, essa perspectiva natural obtém--se quando se opera com objectivas de ângulo reduzido. Por exemplo, uma teleobjectiva utilizada para enquadrar em primeiro plano os apresentadores ou os locutores proporciona o chamado "paradigma da normalidade”.


A reportagem e as actualidades exigem, entretanto, a utilização de outros tipos de objectivas, nomeadamente as grandes angulares. Poder-se-á argumentar contra o facto delas criarem uma imagem muito distorcida, especialmente tendo em vista o ângulo de vista do espectador. Simplesmente, esse exagero da projecção perspéctica das imagens também pode torná-las muito interessantes. Diz Henrique Tóran:


"Os factos extraordinários não exigem uma contemplação normal, mas sobretudo o ponto de vista extraordinário ao qual nunca teria acesso o cidadão ainda que estivesse no local do acontecimento, embora afastado pela polícia. Quando o repórter aproxima a sua câmara a poucos centímetros dos protagonistas do acontecimento, a distorção da objectiva grande angular actua sobre o espectador fazendo com que ele se sinta uma testemunha de excepção, como se tivesse conseguido romper o cordão policial. Miguel de la Quadra, primeiro repórter da TVE, conseguiu com esta técnica captar planos surpreendentes a poucos milímetros do resto de Arafat, Péron, Nasser."(14)


Quanto ao enquadramento, "significa harmonizar, combinar, condizer, quadrar, abrangendo a posição do sujeito da acção em relação à margem."(15) Por outras palavras, o enquadramento é entendido como um sistema de comunicação a partir do qual cada autor de algum modo impõe a sua própria subjectividade na leitura de uma situação através do olho da câmara.


encenação e composição


Tecnicamente, a reportagem é sempre encenação. O mesmo acontece, de resto, com os demais géneros do jornalismo electrónico. Escreve Cébrian Herreros: "Os objectos, os animais, o homem como expressão e, em definitivo, tudo quanto possa ser percepcionado através da vista, ao ser captado pelas câmaras como elemento expressivo do autor ou testemunho da realidade perdem a sua individualidade e o seu contexto real para se incorporarem num novo contexto (o que o autor estabelecer) e, consequentemente, adquirem novos vínculos. Cria-se, para utilizar uma expressão procedente da linguística, uma sintaxe dos objectos ou da realidade (...). Pode acrescentar-se que a partir desse momento a realidade deixa de o ser para se converter em signo."(16)


Esse signo é então realidade encenada. Pôr em cena é, pois, um conceito englobador e final de selecção, disposição e apresentação dos elementos componentes de uma realidade através da qual o repórter expressa a sua visão particular do mundo enquanto testemunha privilegiada de um determinado acontecimento. A encenação é um conceito chave: resume toda a situação signíca, posto que permite organizar a reportagem em função dos parâmetros estéticos e informativos inscritos no signo visual.


Neste contexto, procede tanto do enquadramento quanto da composição do plano, embora apareça ligada com maior frequência ao conceito de composição, cujo objectivo é evitar que o olhos do espectador se desviem dos elementos essenciais da imagem. Compor o plano é organizar esses elementos de modo a que eles cheguem com clareza até ao espectador. Perante a composição, o repórter assume uma atitude semelhante à do pintor ao organizar traços e manchas de cor sobre a tela, ou à do cenógrafo quando constrói o cenário mais adequado à valorização da representação.


profundidade de campo e iluminação


Considerada a dimensão semiótica do plano é ainda indispensável referir a iluminação e a profundidade de campo. Esta, é entendida de um duplo ponto de vista, técnico e estético. Do ponto de vista técnico tem a ver com a "quantidade" de realidade captada com nitidez pela câmara em determinadas condições, como sejam a abertura do diafragma, o nível de iluminação, a distância focal da objectiva, etc.. Do ponto de vista estético, a profundidade de campo surge relacionada com a composição visto remeter para a possibilidade de dispor diferentemente os elementos, objectos ou pessoas, constituintes da imagem.


Profundidade de campo em Citizen Kane (1941) de Orson Welles

Quanto à iluminação, ela é um recurso expressivo e conotativo da maior importância. Factor relevante da criação artística, dando vida e personalidade à imagem, a força expressiva dos jogos de luz e sombra permite potenciar a dimensão estética e emotiva do plano e configurar até valores simbólicos. Sendo, portanto, um recurso expressivo, é imprescindível ao registo, quer da imagem cinematográfica, quer da imagem electrónica.


Até agora, por razões metodológicas, temos vindo a encarar o plano como uma unidade estática. A sua manifestação mais habitual é, porém, dinâmica. O movimento é mesmo a característica dominante do sistema visual: há, por um lado, o movimento no interior de cada plano, com a sua relativa autonomia; e, por outro, o movimento resultante da articulação dos diversos planos. Em qualquer dos casos estamos perante fenómenos complexos, como veremos adiante. Para já, vamos introduzir dois novos campos de abordagem. O primeiro é


A KINÉSICA


que intenta compreender a linguagem do corpo em movimento, estuda os gestos e a mímica, tanto de um ponto de vista autónomo, quanto associados à fala. Tem a ver com aquilo a que habitualmente se chama a expressão corporal. Ray Birdwhistell(17) pretendeu ver uma analogia entre a linguagem verbal e a Kinésica. Segundo ele, do mesmo modo que o discurso pode ser dividido em sons, palavras, frases, parágrafos, etc., também a fala do corpo se pode entender em função de unidades similares. A unidade mínima de significação é o kine, uma simples contracção, um movimento quase imperceptível. Acima do kine há movimentos mais significativos denominados kinemas, cujo entendimento se processa quando vistos em contexto.


Flora Davis regista que os americanos dispõem, apenas, de cinquenta ou sessenta kinemas para o corpo todo, incluindo trinta e três para o rosto e a cabeça. Estes últimos incluem quatro posições para as sobrancelhas (levantadas, abaixadas, contraídas, ou movidas em separado) quatro posições para as pálpebras, sete para a boca, três maneiras de balançar a cabeça (assentimento simples, duplo e triplo), etc.. Sublinha Flora Davis: "É lógico que isso representa apenas uma fracção muito pequena de todos os movimentos que a cabeça e o rosto são capazes. Na verdade, excluindo-se o número verdadeiramente astronómico de movimentos humanos anatomicamente possíveis, cada cultura confere significado para uma meia dúzia apenas."(18)


Apesar destas limitações, os conhecimentos da kinésica são muito úteis para o repórter permitindo-lhe não apenas fazer a leitura da disponibilidade e atitude dos seus interlocutores, mas também adoptar ele próprio a expressão corporal e facial mais adequada a cada momento da sua intervenção, sobretudo em directo ou em "vivo".


Do mesmo modo, é indispensável ao repórter conhecer, ao menos, alguns rudimentos da


PROXÉMICA,


cujo objecto de estudo é o uso que o homem faz do espaço no qual realiza a sua função social. Afirma Moles: "A proxémica assenta sobre uma espécie de perspectivismo dos fenómenos valorizando-se o que está próximo em detrimento do que está distante, ou seja, valorizando uma espécie de centro psicológico do mundo em relação ao indivíduo tomado como ponto de referência."(19)


Estudo para As Cabeças de Dois Guerreiros (1505) de Leonardo Da Vinci ou a forma de perceber através do desenho a paisagem do rosto na kinésica

A aplicação da proxémica à Televisão é de uma importância singular ao decidir sobre as modalidades de transmissão — directo ou diferido — e sobre os géneros jornalísticos, em especial a reportagem, posto que se pretende criar a ilusão de se estar perante a realidade. Sabe-se, por exemplo, como uma transmissão em diferido, facilita o distanciamento do espectador, visto ele saber de antemão o desfecho da notícia, reduzindo-se, como tal, o seu campo de participação e aumentando, concomitantemente, as suas possibilidades de juízo crítico e analítico.


Este ponto de vista compreender-se-á melhor se considerarmos os quatro tipos de distância habitualmente tidos em conta nesta matéria:


1. A distância íntima ou distância do amor ou da agressão.

2. A distância pessoal ou distância da amizade.

3. A distância social, a mais frequente, relativa ao mundo dos negócios, à vida nas empresas, aos postos de trabalho, às relações das pessoas que apenas se conhecem, etc.

4. A distância pública, respeitante às relações institucionais.


No tocante à Televisão estes conceitos são susceptíveis de diversas aplicações. Nas entrevistas, por exemplo, as distâncias entre as câmaras e os microfones, por um lado, e entre o entrevistador e o entrevistado, por outro, podem variar da íntima à pessoal, desta à social e pública, com toda a gama de combinações possíveis, de acordo com os planos visuais e sonoros pretendidos. Trata-se, em suma, de saber organizar as distâncias segundo as quais se pretende uma maior ou menor proximidade do receptor em relação à mensagem ou aos seus elementos constituintes.


OS MOVIMENTOS DA CÂMARA


Ao movimento no interior do plano devem acrescentar-se os movimentos da câmara: ou em torno do seu eixo, para baixo ou para cima e vice-versa, ou da esquerda para a direita e vice-versa; ou sobre um suporte, seja ele o ombro do operador ou qualquer outro. No primeiro caso temos as panorâmicas, no segundo os travelling.


A panorâmica é essencialmente descritiva. Serve para identificar o espectador com o local da acção. Em Televisão deve utilizar-se de modo muito comedido, pois não só não há nenhuma semelhança entre a imagem filmada e a imagem realmente vista pelo olho humano — os olhos não fazem panorâmicas — como pode distrair a atenção do espectador obrigado a dispersar-se por uma grande variedade de elementos icónicos sucessivamente mostrados. A panorâmica tanto pode introduzir a monotonia do olhar, quando utilizada com muita frequência, como produzir ruído na comunicação, se utilizada ora num sentido ora no outro, posto obrigar o espectador a mudar constantemente o sentido da leitura.


Quando ao travelling, permite acompanhar de perto o desenvolvimento de uma acção ou aproximar ou afastar o espectador do centro psicológico dessa mesma acção. É um efeito igualmente possível de obter através da utilização da lente zoom.


Montagem: O Efeito Kuleshov

De posse dos elementos enunciados podemos agora começar a pensar em termos da constituição de uma narrativa visual. Foi o que de algum modo fizeram os pioneiros do cinema, muito embora não possuissem ainda equipamentos capazes da sofisticação dos equipamentos actuais. Esses primeiros cineastas cedo perceberam que uma narrativa só pode ser veiculada através de uma linguagem e que a linguagem cinematográfica começa com a possibilidade de articulação de planos em movimento. Eles perceberam, também, que a justaposição de dois planos põe em jogo uma relação espacial e temporal uma vez que, na verdade, a mudança de plano rompe a continuidade de pelo menos um desses parâmetros: permite mudar de local para local ou de posição dentro de um mesmo local, bem como retomar continuadamente o tempo (diegético), ou dar um salto em frente (elipse), ou um salto atrás (flash-back). Cria-se, assim, o espaço e o tempo do ecrã, os quais têm um enorme potencial informativo e criativo pois permitem seleccionar o essencial, prescindindo do atípico e redundante. É deste modo que a história da evolução narrativa acaba por se identificar com a descoberta gradual das diversas possibilidades aí contidas surgindo, portanto, inevitavelmente, ligada à ideia de montagem.


(Continua)


Notas remissivas


CAPÍTULO III


1. LOTMAN, Yuri

Estética e Semiótica do Cinema, Editorial Estampa, Lisboa, 1978

2. Ibidem

3. Ibidem

4. HERREROS, M. Cébrian

Introducción al Lenguage de la Televisión - Una Perspectiva Semiótica, Ediciones Pirámide, S.A., Madrid, 1978

5. WENDERS, Wim

A Lógica das Imagens, Edições 70, Lisboa, 1990

6. JEANNE, R. e FORD, C.

História Ilustrada do Cinema, Enciclopédia de Bolso Bertrand, Lisboa, 1977

7. GRANJA, Vasco

Dziga Vertov, Livros Horizonte, Lisboa, 1981

8. VERTOV, Dziga

El Cine-Ojo, Textos e Manifiestos, Editorial Fundamentos, Madrid, 1973

9. Ibidem

10. BORETSKY, R. e KUZNETSOV, G.

O Trabalho de Jornalista e a Televisão, Organização Internacional de Jornalistas, Praga, 1983

11. LOTMAN, Yuri

Estética e semiótica do Cinema, Editorial Estampa, Lisboa, 1978

12. MASSON, Phillipe

Guia do Vídeo e da Câmara de Vídeo, Publicações Europa-América, Lisboa, 1987

13. GARCÍA, Jaime Barroso

Tratamento de la Information en Televisión, Instituto Oficial de Radio y Televisión/Ente Publico RTVE, Madrid, 1987

14. TORÁN, L. Henrique

La Informacion en TV, Editorial Mitre, Barcelona, 1982

15. Ibidem

16. HERREROS, M. Cebrián

Introducción al Lenguage de la Televisión - Una Perspectiva Semiótica, Ediciones Pirámide, S.A., Madrid, 1987

17. BIRDWHISTELL, Ray L.

Kinesics and Context, University of Pennsylvania Press, Philadelphia, 1970

18. DAVIS, Flora

A Comunicação Não-Verbal, Summus Editorial, São Paulo, 1979

19. MOLES, Abraham

La Comunicacion et les Mass Media, Marabout, Paris, 1973













  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 26 de dez. de 2020
  • 19 min de leitura

Capa do livro original com um desenho de José Rodrigues.

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto, continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu. Este texto corresponde ao Capítulo II.


(Continuação de A Caixa Negra 2)


REPÓRTERES, REPORTAGENS E EFEITOS PARADOXAIS


"A percepção do mundo circundante é fundamental para a formação de um indivíduo e para a orientação da sua conduta; ora, esta percepção do mundo (esta soma de experiências) prepara-se para se tornar hipertrófica, maciça, superior às possibilidades de assimilação; e, inicialmente idêntica para todos os habitantes do globo. Por outro lado, este acréscimo de experiência ocorre segundo modalidades qualitativamente novas: por via sensorial e não conceptual; não enriquecendo a imaginação e a sensibilidade segundo as modalidades da "catarse" estética (a qual exige consciência da ficção, racionalização do evento representado e o seu julgamento), mas impondo-se com a evidência da realidade indiscutível; e — o que é mais perturbante — invertendo as proporções que regulavam a relação quantitativa entre informações acerca dos eventos passados e informações acerca dos eventos simultaneamente presentes." - Umberto Eco

Desenho original de José Rodrigues para a capa de A Caixa Negra feito na toalha de papel de um restaurante, 1993.

UM OLHAR RETROSPECTIVO


Afonso X, "O Sábio", rei de Castela, exarou uma lei segundo a qual o uso do papel em determinados documentos ficava interdito. O soberano invocou razões de segurança. O papel seria demasiado perecível, logo indigno de confiança e, como tal, Afonso X discriminou quais os documentos que deveriam ser escritos em "pergaminho de pano", ou seja, em papel, e aqueles necessariamente lavrados em "pergaminho de cuero". Passou-se isto no ano de 1265.


O papel apenas começara a ser fabricado na Europa, era de qualidade duvidosa e quase tão caro quanto o pergaminho. Mas a desconfiança do monarca foi um reflexo, pelo menos em parte, de um preconceito religioso: "O papel chegara pelas mãos dos maiores inimigos de uma Europa fanaticamente cristã: os árabes e os judeus. Logo, forçosa e irracionalmente sofreria o estigma da origem."(1)


Em meados do século XV, Gutenberg inventou o prelo e os caracteres móveis. Publicaram-se livros, é certo, mas a tipografia levou 150 anos até começar a fazer jornais. Durante esse período de tempo multiplicaram-se as gazetas manuscritas, as quais iriam conviver com o jornal impresso até ao século XVIII. Porquê? Porque tinham sobre ele a vantagem da liberdade. Até à Revolução Francesa existiu um pouco por toda a parte um regime legal de censura, à excepção da Inglaterra, onde a liberdade de imprensa começara um pouco antes.


"As gazetas manuscritas, embora nem sempre consentidas, escapavam aos rigores da lei com maior facilidade por serem feitas à mão. Um vidro de tinta e uma pena ocultavam-se mais cómoda e rapidamente do que uma tipografia inteira. Por isso, abordavam certos temas vedados aos jornais impressos, principalmente assuntos internos dos países onde circulavam."(2)


Estes dois exemplos remetem, por um lado, para a suspeição clássica face às novas tecnologias da comunicação e, por outro, para a obliquidade das relações entre o poder e a liberdade de expressão, nomeadamente quanto à censura. São exemplos do carácter repetitivo de atitudes cuja persistência no presente justifica um olhar retrospectivo no sentido de melhor entender esse mesmo presente e perspectivar o futuro.


Johannes Gutenberg na sua oficina. Fonte: The Balance Careers.

JORNAIS SEM JORNALISTAS, JORNALISTAS SEM JORNAIS


É controverso situar e definir a figura do repórter. Contemporaneamente, ele aparece ligado à notícia enquanto produto de empresas de comunicação social, as quais operam à escala industrial. Nem sempre, porém, a figura do repórter esteve ligada à ideia moderna de informação jornalística. Alguns historiadores da Comunicação defendem até, porventura com exagero, que épocas houve de jornais sem jornalistas e outras de jornalistas sem jornais.


No primeiro caso, estariam, por exemplo, cinco séculos de Império Romano durante os quais se publicaram as diurnais, documentos afixados em lugares públicos dando conta de decisões oficiais, cuja periodicidade e actualidade permitiria situá-las como antepassados longínquos da imprensa moderna.


No segundo caso, estaria uma vasta fatia da Idade Média ocupada pela presença de trovadores e jograis no papel de mensageiros, levando e trazendo novas, um pouco à semelhança dos antigos aedos gregos. Desta turba medieval de faladores, cantadores e tocadores destacavam-se os goliardos, na maioria dos casos, religiosos falhados ou estudantes remissos. Entre todos, fez-se notar o Arcipreste de Hita,


"tipo consumado do clérigo-jogral, espécie de goliardo hispânico ou moçárabe, escolar noctívago, sempre enamorado, frequentador de tabernas, incansável tangedor de toda a casta de instrumentos, poeta de grande facilidade e talento."(3)


O Arcipreste de Hita. Fonte: www.biografias.info

Homens de letras foram também alguns nobres e, até, monarcas, como o nosso D. Dinis. De um modo geral, jograis e trovadores gozavam de má fama, sobretudo os primeiros. De qualquer modo, a eles se ficava a dever boa parte da circulação de notícias e, talvez, também por isso, Afonso X tenha decidido libertar de coima a profissão de jogral, definindo-lhe as categorias:


"Julgar propriamente dito era o que tangia instrumentos, 'contava novas' e recitava e cantava versos de outrém, portando-se com dignidade; cazurro o pultriqueiro que declamava sem nexo pelas ruas e praças, ganhando dinheiro de qualquer modo; bufón, o que fazia dançar animais e títeres entre a arraia miúda; remedador, o imitador e contorcionista; segrier, o que (geralmente fidalgo arruinado) errava pelas cortes; trovador, o que sabia achar o verso e a toada, cabendo--lhe o título don doctor de trobar se compunha poesias perfeitas, mostrando possuir a mestria do soberano trovar."(4)


Se estas palavras tivessem sido escritas hoje por algum dos nossos contemporâneos cronistas de escárnio e maldizer, bem poderia afirmar-se estarmos perante uma metáfora — malévola, claro — sobre as diversas categorias de jornalistas.


Mas, busquemos ainda outros antepassados dos modernos repórteres.


VER CLARAMENTE VISTO


No seu renomado Dicionário de Literatura, Jacinto do Prado Coelho defende que a par do lirismo e da historiografia lato sensu, a reportagem, aí caracterizada como "narração viva, directa, de acontecimentos a que o autor assistiu"(5) aparece com características individualizadas, pelo menos, desde o século XV.


Prossegue Prado Coelho:


"Repórteres terão sido os autores de roteiros, itinerários e livros de viagens, desde um Pêro Vaz de Caminha a Fernão Mendes Pinto ou Fr. Gaspar de S. Bernardino; repórteres os narradores da História Trágico-Marítima. É toda uma literatura do 'vi claramente visto', cheia de exotismo e pitoresco, de verdade humana também. Repórteres também os epistológrafos que andaram pelos caminhos do Império, inclusivamente Vieira em cartas do Brasil. O género enriqueceu-se no séc. XIX e mais ainda no séc. XX. Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Ferreira de Castro servirão de exemplos ilustres."(6)


Portanto, a reportagem não dispensa a arte, como adiante irei sustentar a propósito da Televisão. Por agora, ouçamos Fernando Pessoa dissertar sobre as relações entre a literatura e o jornalismo:


"O jornalismo, sendo literatura, dirige-se (...) ao homem imediato e ao dia que passa. Tem a força directa das artes inferiores mas humanas, como o canto e a dança, tem a força do ambiente das artes visuais, tem a força mental da literatura. Como, porém, o seu fim não é senão ser literatura naquele dia, ou em poucos dias, ou, quando muito, numa breve época ou curta geração, vive perfeitamente conforme os seus fins."(7)


A reter: literatura naquele dia, ou seja, arte naquele dia.


Repórter vem da palavra inglesa report, a qual significa o acto de informar, relatar, referir, contar, dar parte, manifestar. Repórter é aquele que anuncia. Compete-lhe distinguir o verdadeiro do falso, o interessante do irrelevante.


"O repórter — diz Phillipe Gaillard — sabe que trabalha para um determinado público. Em função do interesse desse público, não se contenta com registar tudo o que chega ao seu conhecimento; investiga os elementos complementares que lhe parecem úteis e, em lugar de apresentar uma simples análise, dá-se ao trabalho de fornecer ao leitor um artigo que põe em relevo a significação dos factos. O leitor não espera do jornalista que lhe transmita apenas uma ocorrência; pretende, também, ser transformado em testemunha, na medida do possível. O famoso estilo jornalístico (...) é indispensável para conseguir tal objectivo, mas não é suficiente: a condição primeira é a aplicação de um método rigoroso de reportagem."(8)


A reportagem exige um determinado número de qualidades que têm de ser exercitadas simultaneamente e se controlam umas às outras. Isso vale tanto para a Imprensa, como para a Rádio e a Televisão. Ao repórter exige-se conhecimento do assunto, curiosidade, capacidade de observação, sentido crítico, poder de análise e de síntese, rapidez de reflexão e de decisão, facilidade no contacto humano e, claro, absoluto domínio da linguagem do seu medium.


Cronista do quotidiano, um repórter bom é sempre um bom jornalista. Faz lembrar o jogral da Idade Média na sua itinerância, por vezes, a sua multivivência aproxima-o da figura do Arcipreste de Hita, não raro veste a pele do aventureiro romântico, mas a norma da sua conduta deve ser pautada pela discrição, pela capacidade de assumir com humildade a sua tarefa de agente do efémero, na maioria dos casos, anonimamente.


Edward R. Murrow em Londres durante a II Guerra Mundial. Fonte: Barry Bradford.

Se a notoriedade vier, então que venha em função da qualidade do trabalho produzido. Quase meio século antes da Guerra do Golfo, Ed Murrow relatava através da Rádio, para a América, do alto de um telhado de Londres, os bombardeamentos alemães. Foi o primeiro jornalista a ter conhecimento pela boca do próprio presidente Roosevelt do ataque japonês a Pearl Harbour, uma informação off the record que o deixou mergulhado na dúvida e em profunda melancolia: a opinião pública exigia ou não a revelação imediata da notícia ? Ed Murrow foi, também, o jornalista que teve a coragem de denunciar na Televisão os processos utilizados pelo senador Joseph McCarty no seu afã doentio de encontrar comunistas em cada esquina da América. A América ficou horrorizada ao ver claramente o que claramente tinha visto o jornalista Ed Murrow. Enfim, o caso de um homem cujo trabalho, ao longo dos anos, bem justificou a notoriedade de que veio a desfrutar.


O CRIADOR; TRIÂNGULOS DA COMUNICAÇÃO


O rigor do repórter na abordagem criteriosa da reportagem ganha novos contornos no jornalismo electrónico, dada a variedade de sistemas de comunicação convergentes na narrativa audiovisual. Em qualquer caso, o repórter, seja ele da Imprensa, Rádio ou Televisão está hoje confrontado com o facto de se insistir em vê-lo como um comunicador, um técnico de comunicação, e não um jornalista. Pois bem, em meu entender ele deve assumir-se como jornalista e, como tal, como um criador, no sentido utilizado por Edgar Morin em L'Espirit du Temps(9). Ao criador cabe conceber o novo. Exige-se-lhe imaginação, talento e a capacidade de manipular de forma original os seus materiais. O criador deixa a sua marca naquilo em que toca. Acontece o mesmo com o bom repórter, e por maioria de razão, dada a complexidade da linguagem dos meios electrónicos, com o bom repórter de Televisão. Isto é assim por diversas razões.


Em primeiro lugar, o jornalismo moderno procede de uma lógica industrial assente no triângulo clássico da comunicação: alguém (Quem) diz alguma coisa (Mensagem) a alguém (Público). A partir de sofisticadas estruturas de produção os media desenvolvem estratégias de persuasão ajustadas aos objectivos visados. Inscrevem-se no contexto da cultura de massa. E a cultura de massa, segundo Morin, "é o produto de uma dialéctica produção-consumo no seio de uma dialéctica global que é a sociedade no seu conjunto."(10) Neste quadro, o jornalismo moderno exige o traço distintivo do criador, o que lhe confere a originalidade da diferença capaz de gerar qualidade e credibilidade. Por isso, os projectos ambiciosos procuram os serviços dos melhores repórteres.


Em segundo lugar, Produção e Consumo são forças frequentemente contraditórias, donde o produto jornalístico resulta, por um lado, da superação dessa contradição e, por outro, da capacidade do repórter assumir uma função mediadora entre os diversos pólos constituintes daquilo a que Pierre Schaeffer chamou os triângulos da comunicação. Adaptando o ponto de vista de Schaeffer ao trabalho do jornalista obter-se-ia o seguinte esquema:


O MEDIADOR VIGILANTE


A interpretação do esquema proposto leva a concluir da necessidade de mediação do jornalista no quadro de um conjunto complexo e contraditório de interesses. Diz Schaeffer: "O nosso mediador encontra-se, finalmente, no centro de um quadrado e joga nos outros cantos."(11)


No caso de se encontrar ao serviço de uma estação de Televisão, o jornalista adapta a mensagem em termos do mapa-tipo de acordo com o tempo que lhe foi concedido e com o público ao qual a mensagem se destina. Todavia, com frequência há-de contrariar o ponto de vista do programador, procurando fazer prevalecer o critério jornalístico baseado no contacto directo com os acontecimentos e na avaliação deles feita. Por outro lado, ceder à pressão do poder talvez leve à assessoria de um ministério ou de uma secretaria de estado, mas dificilmente produzirá obra jornalística distanciada da propaganda oficial e partidária, indispensável à formação de uma opinião pública democraticamente consequente. Quanto a trabalhar de molde a agradar aos autores ou fontes leva o jornalista a transformar-se num mensageiro — na melhor das hipóteses num "comunicador" — de informações muitas vezes comunicadas com o único intuito de delas tirar proveito imediato. Finalmente, procurar agradar ao público a qualquer preço é um jogo demasiado arriscado, visto produzir quase sempre resultados deploravelmente demagógicos. O repórter deve, em suma, ser um mediador vigilante.


Pormenor da dedicatória de José Rodrigues no desenho feito para A Caixa Negra, 1993.

O repórter organiza a reportagem e a reportagem é o género nobre do jornalismo, uma vez que exige o domínio de todos os outros géneros jornalísticos, de cuja síntese depende em última instância. Em Televisão, pode e, frequentemente, deve ter a pretensão de ascender à categoria das chamadas obras de criação. Poderá ser apenas arte nesse dia, como dizia Fernando Pessoa, e porventura até uma arte menor. Mas que o seja, então, nessas circunstâncias. Exigem-no razões culturais decorrentes da existência de um público, ainda que minoritário, cada vez mais exigente; exige-o o facto de gradualmente se ter vindo a estabelecer uma linguagem cujas características permitem encarar a Televisão como um modo de expressão ambicioso; exige-o a herança de outras formas de arte, como o cinema e o teatro, às quais e a partir das quais se fica a dever a constituição de um corpo gramatical autónomo; exige-o o desenvolvimento tecnológico, ele próprio indutor de novas formas de expressão.


Por tudo isto há um número crescente de programas exclusivamente dedicados à reportagem, em horário nobre, em numerosas estações de Televisão. Em regime de concorrência esse procedimento acaba por institucionalizar-se, sem receio da mediação do repórter


"que carrega consigo toda uma formação cultural, todo um background pessoal, eventualmente opiniões muito firmes a respeito do próprio facto que está testemunhando, o que o leva a encará-lo de maneira diferente de outro companheiro com background e formação diversos."(12)


A gestão hábil deste género de diferença, bem como a capacidade de a entender e aceitar, são condições de uma informação democrática. Quanto mais não seja porque é

"realmente inviável exigir dos jornalistas que deixem em casa todos esses condicionalismos e se comportem, diante da notícia, como profissionais assépticos, ou como a objectiva de uma máquina fotográfica, registando o que acontece sem imprimir, ao fazer o seu relato, as emoções e as impressões puramente pessoais que o facto neles provocou.(13)


Não será uma perspectiva arriscada? Pelo contrário, é o único ponto de vista seguro para produzir boa informação: apostar na alta qualidade técnica e profissional do jornalista. De resto, ao contrário do que é dito na citação, nem sequer a objectiva da câmara opera de forma a reproduzir a realidade tal qual.


CONSIDERAÇÕES


É universalmente válido o princípio, segundo o qual o bom jornalista de Televisão, o apresentador de notícias incluído, deve ter um apurado sentido de reportagem. O domínio da linguagem do medium começa por aí. A CBS, por exemplo, escolheu Dan Rather para substituir Walter Conkrite, provavelmente o anchorman mais conhecido de toda a história da Televisão. Quando eclodiu a crise do Golfo, com a invasão do Kweite pelo Iraque, Rather foi dos primeiros a partir para a linha da frente. Claro que o envio de um apresentador-vedeta para um cenário de guerra comporta alguns riscos, nomeadamente aquele que decorre da própria notoriedade da vedeta, suficiente, por vezes, para ensombrar a pertinência dos factos, uma vez que pode tender a substituí-los.


Walter Conkrite. Fonte: Newsweek

Há mesmo quem entenda que nada justifica a ida de um apresentador em reportagem. De qualquer modo, Rather também tinha reputação de repórter. Antes dele, Conkrite já fizera história com as suas reportagens sobre a Guerra do Vietname, a tal ponto que, após ter deixado a Casa Branca, Lyndon Johnson admitiu ter percebido que os Estados Unidos estavam a perder a guerra após ter visto os trabalhos do jornalista da CBS. Em comum, sendo ambos vedetas, Conkrite e Rather tinham o facto de serem repórteres capazes, aliando a competência técnica à maturidade jornalística.(14)


Essa competência e essa maturidade adquirem-se ao longo dos anos, com trabalho, curiosidade, estudo e oportunidades, muitas vezes a partir da abordagem de assuntos aparentemente insignificantes. Aliás, é suspeito quando um jornalista destacado em serviço de reportagem regressa com frequência de mãos a abanar, argumentando com alegada falta de interesse do assunto. Na verdade, na maioria dos casos não se deu sequer ao trabalho de procurar uma solução. Quando, afinal, a realidade é tão estimulante que é quase sempre possível encontrar motivos de interesse mesmo em casos banais. Tudo depende da formação profissional do repórter.


Repórteres bem preparados são altamente rentáveis. Ao invés, repórteres impreparados ficam demasiado caros e são causadores de prejuízos que repercutem em cadeia, como veremos adiante. Gontijo Teodoro, que foi director do departamento de Telejornalismo da TV Tupi do Rio de Janeiro e titular de um dos programas de maior impacto da história da Televisão brasileira, o Repórter Esso, chamou a atenção para esse facto. Segundo ele, ao prevalecer a lógica da vedeta, ou do "talento", como lhe chamam os brasileiros, mesmo se a vedeta se limita ao papel de repetidor, ou de "papagaio", como lhe chamamos nós em Portugal, ao prevalecer a lógica da vedeta — dizia — descura-se a formação profissional dos repórteres. Estes, na maioria dos casos, não passam de simples locutores, afirma Teodoro, "transportados para a rua de outros ambientes, caricaturando uma função importante que, se bem desempenhada, daria mais impacto e força às reportagens realizadas no "campo de batalha".


"O repórter deveria apanhar, ele próprio, as informações que divulga — acrescenta o jornalista — e não ser o que geralmente temos visto nos vídeos: moças e rapazes charmosos, ledores de textos e informações corrigidas e redigidas por outros, alheios ao desenrolar dos factos, mais 'por fora' do que um recém--nascido diante de um livro de química."(15)


Quando Dan Rather (de costas) respondeu à letra ao presidente dos Estados Unidos. Richard Nixon: "O senhor está a pretender fazer algum número de circo ?" Dan Rather: "Eu não, presidente, porquê, o senhor está?"

Haverá algum exagero nestas afirmações, pelo menos quando interpretadas à luz da realidade de alguns países europeus, mas não deixa de ser verdadeira a tendência bastante generalizada para lançar jovens jornalistas no terreno da reportagem televisiva sem lhes proporcionar uma preparação adequada ou, sequer, um acompanhamento mínimo. Os resultados não são abonatórios. Do ponto de vista cultural e de conhecimentos elementares sobre a história moderna e contemporânea, a ignorância chega a espantar, embora apareça quase sempre mascarada, ora pela informação do telex, ora pelos estereótipos que os próprios media se encarregam de forjar. Do ponto de vista técnico, é fácil constatar o desconhecimento da linguagem da Televisão, quer por parte de jornalistas inexperientes, quer de jornalistas com experiência doutros meios de comunicação, mas não do jornalismo electrónico. Muitas das peças produzidas são apenas textos ilustrados. O resultado é inapelavelmente frouxo.


Vamos aos prejuízos. Há, desde logo, um problema de credibilidade resultante do trabalho mal executado o que, em regime de concorrência, pode levar à perda de audiência. Depois, em termos estritamente financeiros, esse trabalho mal executado sai por um preço exorbitante e, como atrás se disse, repercute em cadeia em toda a estrutura operacional dos departamentos de Informação. Exagero? Vejamos a seguinte hipótese.


Um jovem jornalista sai para o terreno com uma equipa de E.N.G. e não sabe como pedir imagens ao operador. Muito menos tem a noção do que possa ser um argumento ou um guião, logo, não imagina sequer como vai contar a sua história. Desconhece o assunto. Grava uma entrevista de quinze ou vinte minutos, da qual apenas terá de aproveitar alguns segundos. Utiliza o microfone como bloco de apontamentos. Quando o jornalista regressa à estação leva uma cassete cujo conteúdo desconhece. Apercebe-se do facto de ter de seleccionar o seu minuto ou minuto e meio de imagens a partir de uma gravação interminável, na qual avulta uma enorme e despropositada entrevista. Perde imenso tempo a visionar o material ocupando uma máquina e, eventualmente, um operador de montagem. Por fim, lá decide qual a parte da entrevista a destacar, redige um texto e debita-o em banda áudio. Depois começa a cobrir o texto de imagens, procurando fazer coincidir palavras e imagens, esforço vão, pois inevitavelmente faltar-lhe-ão imagens, o senhor fulano de tal não aparece, nem o outro envolvido no caso e assim por diante. Supõe estar a fazer uma montagem quando, na verdade, perante a impotência do editor de imagem faz uma colagem de planos com o tempo de corte à palavra, portanto, à revelia da gramática das imagens.


Procedimentos deste género estão tão vulgarizados que chegam a parecer razoáveis. Não o são. Muito pelo contrário, repetidos no dia a dia conduzem ao bloquear da criatividade, à institucionalização da rotina de mal fazer, à descrença de quantos são obrigados a conviver com esta engrenagem, uma equipa cujos jogadores chutam cada um para seu lado com manifesto prejuízo de espectáculo. Os equipamentos são indevidamente rentabilizados, os custos sobem, perde-se a paciência, o ambiente deteriora-se. Perde--se muito dinheiro. E quando se permite que as coisas cheguem a este ponto, multiplicam-se as soluções administrativas, prevalece a lógica tentacular dos burocratas e o produto informativo só pode ser de baixa ou muito baixa qualidade.


A informação na Televisão não pode ser isso.


Complemento da dedicatória de José Rodrigues para A Caixa Negra, 1993.

A MENSAGEM


Estas considerações remetem para a codificação da mensagem televisiva. Esta, tal como acontece com as mensagens de quaisquer outros media, só faz sentido em função de receptor, o qual protagoniza um duplo processo de assimilação dos estímulos informativos: opera, por um lado, uma acção cognoscitiva baseada na percepção, no sentido de descodificar a mensagem; simultaneamente, é agente de uma participação emocional, de carácter eminentemente psíquico, caracterizada pelos aspectos interactivos da emoção e da atenção. Ora acontece frequentemente a emoção prevalecer sobre a atenção. Barroso García considera ser essa uma das causas da chamada descodificação aberrante. Mas há outras, como sejam o desconhecimento do código por parte do receptor, a incorrecta articulação da mensagem, a eventual polissemia e ambiguidade das imagens e o contexto cultural da audiência. O mesmo autor adverte:


"Com mais frequência do que poderíamos imaginar e desejar, a Televisão converte-se num excelente meio de não informação — há um número suficiente de trabalhos experimentais a respeito da exígua percentagem da informação emitida que é captada pelo espectador e sobre a incapacidade persuasiva do meio. Dando estimativas globais como referência, pode calcular-se que numa situação de recepção favorável apenas 30-35 por cento da informação emitida é efectivamente retida, enquanto em situações desfavoráveis a percentagem baixa até 10-8 por cento, em consequência tanto das circunstâncias ambientais, como das características da personalidade e atributos socio-culturais do receptor."(16)


Estas afirmações poderão ser controversas, mas não são, de modo algum, gratuitas. Controversas porque a eficácia persuasiva do medium não pode medir-se apenas em função da mensagem singular. Passa pela técnica da repetição de palavras--chave aliada a um envolvimento sensorial, uma espécie de ressonância, como lhe chama Tony Schwartz(17) decorrente do próprio modo de operar do medium num determinado contexto cultural. Mas o ponto de vista de García é pertinente quando chama a atenção para o facto do telespectador ser apenas medianamente atento, visto a sua atenção se dispersar pelo ruído ambiente proveniente das mais diversas fontes. O que quer dizer que o repórter é obrigado a reflectir sobre o modo de contrariar essa tendência para a dispersão, ou seja, tem de codificar correctamente a sua mensagem, sob pena de contribuir para a perda de interesse por parte da audiência. Até porque enfrenta ainda alguns


EFEITOS PARADOXAIS


Deparamos com imagens em toda a parte: nos cartazes de anúncios publicitários, na propaganda eleitoral, no cinema, nas artes plásticas, no teatro, na televisão, nos múltiplos sinais indicadores de uma regulação social que passa, por exemplo, pelos semáforos e placas de trânsito, etc. É a civilização da imagem. A realidade aparece-nos, pois, globalmente reproduzida pelo sentido da visão aliado, frequentemente, ao sentido da audição. Contudo, apesar da multiplicidade de signos icónicos e sonoros a cuja organização correspondem códigos e linguagens específicos o facto, como assinala McLuhan (18), é que a sociedade parece olhar o mundo pelo retrovisor. Prevalece a linearidade de cinco séculos de Gutenberg. Há na vida social como que um desfasamento gramatical. A Televisão, por exemplo, sendo um medium audiovisual, confronta--se com estruturas mentais organizadas nos termos das civilizações da escrita linear. Por isso, é mais fácil ao telespectador descodificar a mensagem contida no texto escrito (lido) ou falado, do que decifrar o conjunto de signos visuais inscritos na composição e articulação dos planos. Dito de outra maneira, melhor ou pior o telespectador conhece a gramática das palavras, mas desconhece a gramática das imagens. Desta relativa incapacidade do telespectador ler Televisão resulta um primeiro efeito paradoxal: sendo o impacto da sensorialidade imediato, prevalece, ainda assim, uma maior disponibilidade interiorizada, porque se trata de algo de cultural, para descodificar os textos escritos.


Fonte: Anonymous ART of Revolution.

Eco abordou o problema com perspicácia:


"A comunicação de uma palavra põe em actividade, na minha consciência, todo um campo semântico que corresponde ao conjunto das diferentes acepções do termo (com as conotações afectivas que cada uma das acepções comporta); o processo de compreensão exacta realiza-se porque, à luz do contexto, o meu cérebro, por assim dizer, inspecciona o campo semântico e individualiza a acepção pretendida excluindo as outras (ou mantendo-as em fundo). A imagem, por sua vez, apanha-me precisamente na maneira inversa: concreta e não geral como o termo linguístico, comunica-me todo o conjunto de emoções e significados ligados a ela, obriga-me a captar instantaneamente um todo indiviso de significados e de sentimentos, sem poder isolar aquilo de que preciso."(19)


Estamos, assim, perante dois tipos de saber:


"(...) um saber lógico que produz efeitos comportamentais (à ordem 'dá-me o livro' eu distingo o significado exacto da frase e o meu saber determina o comportamento consequente), e a visão de efeitos comportamentais em acto (a cena representada) que se tornam causas de um meu saber alógico, complexo, entretecido de reacções fisiológicas (tal como aconteceria se, por via verbal, me fossem comunicados não termos referenciais, mas exclamações de efeito imperativo, como 'alto!', 'basta!', 'atenção!' e assim por diante."(20)


Ver resulta, portanto, de um outro efeito paradoxal, na medida em que consiste numa operação de descodificação tanto mais simples, quanto mais a Televisão "mente", ou seja, quanto mais profunda for a ilusão da realidade criada.


O que nos leva ao problema da linguagem.

(Continua)


Notas remissivas


CAPÍTULO II


1. COSTELLA, António

Comunicação - Do grito ao Satélite, Editora Mantiqueira, São Paulo, 1984

2. Ibidem

3. RIZZINI, Carlos

O Jornalismo antes da Tipografia, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977

4. Ibidem

5. BAPTISTA, J. e VALDEMAR, A.

Repórteres e Reportagens de Primeira Página, Conselho de Imprensa, Lisboa, 1990. Prado Coelho é diversas vezes citado nesta obra. Todavia, não é feita referência bibliográfica ao seu Dicionário de Literatura, uma obra que tem conhecido diversas edições.

6. Ibidem

7. Ibidem

Fernando Pessoa é citado a partir das suas páginas de Estética, Teoria Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.

8. GAILLARD, Philippe

O Jornalismo, Publicações Europa-América, Lisboa, 1974

9. MORIN, Edgar

L'Espirit du Temps, Essai sur la culture de masse , Grasset, Paris, 1962

10. Ibidem

11. SCHAEFFER, Pierre

Les Machines à Communiquer, Éditions du Seuil, Paris, 1970

12. ROSSI, Clóvis

O que é o Jornalismo, Brasiliense, São Paulo, 1980

13. Ibidem

14. O percurso de Rather na CBS, de facto, está longe de ter sido pacífico. De resto, ele

tem a fama de ser uma pessoa controversa no seu relacionamento com o pessoal da estação e o seu nome surge publicamente, com alguma frequência, ligado a episódios que fazem duvidar da sua estabilidade emocional. No entanto, todos lhe reconhecem a sua excelência como repórter. Como outros da sua geração passou pelo baptismo de fogo jornalístico dos anos sessenta e, como costuma dizer-se, esteve em todas: lutas pelos direitos cívicos dos negros americanos, assassínio dos Kennedy e Martin Luther King, uma temporada no Vietname. Tornou-se especialmente notado quando correspondente da CBS na Casa Branca onde ousou afrontar o presidente Nixon, respondendo-lhe à letra. Nixon, a uma pergunta de Rather respondeu-lhe de forma insultuosa com outra pergunta do género: "O senhor está a pretender fazer algum número de circo ?" Ao que Rather contrapôs: "Eu não, presidente, porquê, o senhor está?" Particularmente detestado pelos republicanos após este incidente e de outro mais tarde, com o presidente Reagan, Rather, aliás, um conservador, foi especialmente visado em 1985 quando políticos ligados à presidência lançaram uma campanha para comprar a CBS cuja consigna era: "Comprem vinte acções da CBS e tornem-se patrões de Rather."

15. TEODORO, Gontijo

Jornalismo na TV, Editora Tecnoprint, S.A., Rio de Janeiro, 1980

16. GARCIA, Jaime Barroso

Tratamiento de la Information en Television, Instituo Oficial de Radio Y Television/Ente Publico RTVE, Madrid, 1987

17. SCHWARTZ, Tony

Mídia: O Segundo Deus, Summus Editorial, São Paulo, 1985

18. McLUHAN, Marshall

A Galáxia de Gutenberg, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977

19. ECO, Humberto

Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa, 1991

20. Ibidem

Apocalípticos e Integrados foi publicado pela primeira vez em Itália em 1964. Desde então conheceu várias actualizações e outras tantas edições. Na parte respeitante aos Apontamentos sobre Televisão, Eco afirma: "A percepção do mundo circundante é fundamental para a formação de um indivíduo e para a orientação da sua conduta; ora, esta percepção do mundo (esta soma de experiências) prepara-se para se tornar hipertrófica, maciça, superior às possibilidades de assimilação; e, inicialmente idêntica para todos os habitantes do globo. Por outro lado, este acréscimo de experiência ocorre segundo modalidades qualitativamente novas: por via sensorial e não conceptual; não enriquecendo a imaginação e a sensibilidade segundo as modalidades da "catarse" estética (a qual exige consciência da ficção, racionalização do evento representado e o seu julgamento), mas impondo-se com a evidência da realidade indiscutível; e — o que é mais perturbante — invertendo as proporções que regulavam a relação quantitativa entre informações acerca dos eventos passados e informações acerca dos eventos simultaneamente presentes."

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Jorge Campos

arquivo

        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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C A T E G O R I A S

Ensaios, conferências, comunicações académicas, notas e artigos de opinião sobre Cultura. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes  quando se justificar.

Iluminação Camera

 

Ensaios, conferências, comunicações académicas, textos de opinião. notas e folhas de sala publicados ao longo de anos. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes quando se justificar.

Estático

Arquivo. Princípios, descrição, reflexões e balanço da Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura, da qual fui o principal responsável. O lema: Pontes para o Futuro.

televisão sillouhette

Atualidade, política, artigos de opinião, textos satíricos.

Notas, textos de opinião e de reflexão sobre os media, designadamente o serviço público de televisão, publicados ao longo dos anos. Textos  de crítica da atualidade.

Notas pessoais sobre acontecimentos históricos. Memória. Presente. Futuro.

Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

Todo o conteúdo © Jorge Campos

excepto o devidamente especificado.

     Criado por Isabel Campos 

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