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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR


Imagem: AP
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Mentir constantemente não tem por objetivo fazer com que as pessoas acreditem na mentira. Tem, sim, o propósito de fazer com que não acreditem em nada. Quem não consegue distinguir entre verdade e mentira não distingue o bem do mal. Quem fica privado de pensar, sem disso ter consciência, fica refém da mentira. Com pessoas assim faz-se o que bem se entender. O que acabo de escrever foi recuperado, não literalmente, de Hannah Arendt a propósito do seu discurso sobre a banalidade do mal. O que se segue são declinações sobre modos da mentira. O ponto de partida é um conjunto de episódios e reflexões em torno da guerra e do poder das imagens. O ponto de chegada é a cobertura noticiosa das guerras da Ucrânia e no Médio Oriente.

 

As notícias são representações. São também construções que tanto passam pelo efeito de uma agenda de interesses, quanto pela natureza do medium e da sua linguagem. Podem as notícias ser mentira? Podem. Há até conhecimento de guerras que começaram com mentiras publicadas em jornais. William Randolph Hearst, proprietário do New York Journal e um dos criadores da chamada yellow press, foi, pelo menos em parte, responsável pela guerra hispano-americana. Conta-se a seguinte história. Quando os seus enviados a Havana lhe comunicaram que iriam regressar a Nova Iorque visto estar tudo calmo, não havendo indício de perturbações, respondeu com um telegrama do seguinte teor: “Please remain. You furnish the pictures and I’ll furnish the war.”

 


 William Randolph Hearst: “You furnish the pictures and I’ll furnish the war.” Imagem: sinalAberto
 William Randolph Hearst: “You furnish the pictures and I’ll furnish the war.” Imagem: sinalAberto

Estava-se no século XIX e a fotografia ainda não chegara à imprensa. Mas um dos enviados de Hearst, um ilustrador famoso de nome Frederic Remington, desenhou as imagens pedidas, de extrema violência, sem qualquer relação com a realidade. Foram publicadas ao mesmo tempo que títulos garrafais da primeira página anunciavam o caos. O sensacionalismo colocou a guerra no centro dos comentários. Comentou-se o que não existia. A guerra estalou. O episódio, nunca inteiramente confirmado nem totalmente desmentido, entrou na história do jornalismo. Ou na lenda, da qual os jornalistas nunca prescindiram.

 

1. Retrospetiva: o Golfo e o Vietname 

 

A minha primeira experiência de cobertura televisiva de uma guerra remonta ao princípio de agosto de 1990 quando as tropas do Iraque, então sob o regime de Saddam Hussein, invadiram o Kuwait. Nunca estive no Kuwait, tão pouco, no Iraque. O que fiz foi estar dentro de um estúdio da RTP, no Porto, a fazer a tradução simultânea da emissão da CNN, que passou a ocupar a maior parte do tempo de antena. Nessa altura, a televisão por cabo e satélite não tinha, nem de perto nem de longe, a expansão que a tecnologia digital viria a proporcionar. Foi também essa primeira Guerra do Golfe que catapultou o então muito jovem José Rodrigues dos Santos para a fama. Foi ele, estando de serviço, quem, apanhado pelo início da operação militar dos Estados Unidos e aliados, geriu a situação em direto com surpreendente eficiência. A maioria das imagens em tempo real tinham origem na estação americana. Um verdadeiro enxame de comentadores invadiu a pantalha. Foi assim até 28 de fevereiro de 1991, data do final do conflito. Os Estados Unidos derrotaram as tropas de Saddam Hussein e José Rodrigues dos Santos passou a ter lugar cativo na apresentação do Telejornal. Quem também veio para ficar, se bem me lembro chegando a levar para estúdio miniaturas de vários tipos de armas, foi Nuno Rogeiro. Nessa altura, ainda não havia televisão privada em Portugal.

 

A segunda Guerra do Golfo começou, em 20 de março de 2003. E começou com uma mentira. Os Estados Unidos, à frente de uma coligação internacional, invadiram o Iraque alegando que Saddam Hussein escondia armas de destruição massiva, as quais seriam uma ameaça para o “mundo livre”. Chamou-se à intervenção americana Operation Iraqi Freedom posto que se tratava de libertar os iraquianos de um déspota sanguinário e de instalar a democracia. Afinal, ao contrário das alegadas provas apresentadas no Conselho de Segurança da ONU pelo secretário de Estado Colin Powell, as armas de destruição massiva não existiam. Quanto à democracia iraquiana, os resultados estão à vista. O petróleo passou para as mãos de companhias americanas, o país, berço de uma das mais antigas civilizações à face da Terra, ficou reduzido a escombros e as estimativas da perda de vidas de civis iraquianos apontam para um número a rondar o meio milhão. 

 


O general Colin Powell no Conselho de Segurança da ONU a fazer prova da existência de armas de destruição massiva no Iraque. Na verdade, as armas não existam. O episódio ficaria para a posteridade como O Momento Colin Powell. Imagem: Academy of Achievment
O general Colin Powell no Conselho de Segurança da ONU a fazer prova da existência de armas de destruição massiva no Iraque. Na verdade, as armas não existam. O episódio ficaria para a posteridade como O Momento Colin Powell. Imagem: Academy of Achievment

A segunda Guerra do Golfo, tal como a primeira, foi transmitida em direto na televisão. Mas, agora, dada a expansão dos canais de notícias, a uma escala e com uma sofisticação sem precedentes. Em primeiro lugar, os jornalistas receberam treino para acompanhar tropas em zona de combate. Na verdade, na prática, o “embedded journalism”, uma ideia desenvolvida pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, permitia controlar a atividade dos repórteres, designadamente quanto à permissão de filmar e fotografar. Os critérios de selecção dos participantes, em função do seu perfil, foram negociados com as entidades patronais. Em segundo lugar, do ponto de vista iconográfico, a guerra foi apresentada como um jogo de PlayStation. Produzidas e cedidas às televisões pelas autoridades militares, as imagens eram, as mais das vezes, dignas da Guerra das Estrelas de George Lucas. Em terceiro lugar, à dimensão espetacular juntava-se uma componente humanitária. Por exemplo, os novos caças e bombardeiros americanos de última geração apenas atingiriam alvos militares, poupando as populações civis. Chamou-se a isso “guerra cirúrgica”. Finalmente, a justiça da expedição, o seu carácter libertador, explicava-se pelo dever moral de derrotar um inimigo que não só oprimia o seu povo, mas era, igualmente, uma ameaça para a humanidade. Em suma, mais do que informar, a cobertura televisiva fez-se no sentido de condicionar, de modo a garantir o indispensável respaldo da opinião pública às decisões militares.

 

A última guerra em que os correspondentes puderam movimentar-se com relativo à vontade foi a do Vietname. Dessa liberdade de movimentos resultou a necessidade de assumir riscos que, por vezes, custaram vidas. Surgiram, então, na imprensa, extraordinárias peças nas quais os jornalistas, para transmitirem as experiências vividas, lançaram mão de técnicas narrativas dos géneros literários dando origem aquilo que viria a ser conhecido como New Journalism. Ainda assim, a maioria da cobertura noticiosa não se afastava significativamente das posições oficiais. Nas televisões - durante algum tempo, fizeram uma espécie de acordo tácito patriótico no sentido de evitar levar o sangue e a morte para o ecrã - houve uma altura em que o impacto do New Journalism, bem como de reportagens mais ousadas, obrigaram a procurar dar a ver outras coisas. O ponto mais célebre dessa viragem foi protagonizado pelo anchorman do boletim de notícias The CBS Evening News, Walter Cronkite, não só um dos homens com maior notoriedade nos Estados Unidos, mas também um daqueles em quem os americanos depositavam maior confiança. À semelhança da maioria dos ícones do jornalismo televisivo à época, era um anticomunista convicto.

 

Em 1967, havia a ideia de que a América estava a inverter o rumo dos acontecimentos e que podia ganhar a guerra. O comandante em chefe no Vietname, general William Westmoreland, afirmara estar a ter sucesso na guerra psicológica de “hearts and minds” e que, no campo de batalha, “the enemy´s hopes are bankrupt”. Seguiu-se a famosa Ofensiva do Tet. Em janeiro de 1968, contradizendo o ponto de vista oficial, a guerrilha fez dezenas de ataques de surpresa a cidades do Vietname do Sul, incluindo Saigão. A própria embaixada americana foi invadida por um grupo de 19 guerrilheiros, que viriam a ser abatidos. As imagens de combates nas ruas da capital do Vietname do Sul chocaram a opinião pública americana. Cronkite foi enviado para observar in loco a situação. De regresso a casa, em 27 de fevereiro, a CBS News pôs no ar, durante uma hora, Report from Vietnam: Who, What, When, Where, Why?

 

O programa tornou-se um clássico do jornalismo contemporâneo. Procedendo com as cautelas dos media corporativos no que respeita ao equilíbrio e ao exercício do contraditório, interrogava-se, no entanto, sobre quem, na verdade, estava a ganhar a guerra. Não se estaria num impasse, num beco sem saída? No final, a concluir, Cronkite pronunciou as palavras que devastaram a Casa Branca e entraram para a História:

 

“It seems now more certainly than ever that the bloody experience of Vietnam is to end in a stalemate. It is increasingly clear to this repórter that the old rational way out then will be to negotiate, not as victors, but as an honorable people who lived up to their pledge to defend democracy, and did the best they could”.

 

Para os padrões da época, Cronkite ultrapassara uma linha vermelha. O seu jornal, bem como a generalidade dos programas da televisão comercial, tinha forte presença de anunciantes. Na CBS, aliás, havia um histórico de pressões sobre os conteúdos. O episódio mais relevante remonta ao tempo da caça às bruxas e, a prazo, acabaria por contribuir para o afastamento de Edward R. Murrow, seguramente, o jornalista americano mais importante do seu tempo. Murrow ousara pôr a nu os processos utilizados nos interrogatórios do senador Joseph McCarthy. Quer os anunciantes quer os republicanos nunca lhe perdoaram. (Informação detalhada sobre Murrow neste blogue, aqui )

 

Cronkite, conhecido nas famílias como “uncle Walter”, tal a frequência com que entrava em suas casas, ao reportar sobre a guerra do Vietname cometeu uma heresia. Trouxe à superfície as dúvidas latentes sobre o desfecho da guerra entrando no domínio da opinião. É atribuído ao presidente Lyndon B. Johnson o seguinte desabafo: “If I’ve lost Cronkite, I’ve lost Middle America”. Em parte, assim foi. Mas o episódio também contribuiu para alimentar o mito da imprensa livre e dos seus paladinos.

 

Walter Cronkite em reportagem no Vietname. Muitos anos mais tarde, diria: “I covered the Vietnam War. I remember the lies that were told, the lives that were lost - and the shock when, twenty years after the war ended, former Defense Secretary Robert S. McNamara admitted he knew it was a mistake all along.” Imagem: The Philadelphia Inquirer
Walter Cronkite em reportagem no Vietname. Muitos anos mais tarde, diria: “I covered the Vietnam War. I remember the lies that were told, the lives that were lost - and the shock when, twenty years after the war ended, former Defense Secretary Robert S. McNamara admitted he knew it was a mistake all along.” Imagem: The Philadelphia Inquirer

A televisão dos anos 60, 70 e parte dos anos 80 do século passado é obviamente diferente da de hoje. A segmentação impôs-se e a informação circula em numerosas plataformas. O episódio Cronkite não teria hoje o impacto que então teve. De resto, no novo contexto, a existência de um Cronkite seria de todo improvável. À época, porém, o poder da televisão era determinante para a formação da opinião pública. Quer isto dizer que a televisão passou a ser irrelevante? Não, longe disso. Até porque os canais especializados de notícias, que hoje nenhum país dispensa, veiculando diversos pontos de vista, são de importância estratégica. Promovem diferentes construções da realidade. Utilizam múltiplas plataformas. Em suma, fazem propaganda. E podem ser vistos em qualquer parte do mundo, salvo em situações de censura como acontece hoje com a russa RT.

 

Há ainda uma outra questão essencial ao entendimento do ecossistema mediático: a natureza dos media, no que particularmente nos interessa, da televisão. Eminentemente sensorial, convocando a emoção em prejuízo da razão, favorecendo o entretenimento, a televisão fez das notícias espetáculo e dos seus protagonistas atores. A corrida para as presidenciais americanas de 2024 entre Trump e Harris é disso um exemplo paradigmático. Não houve debate, apesar das tentativas de Harris. Houve sound bite, insultos, piadas de mau gosto e, da parte de Trump, até verdadeiros números de stand up comedy  Por alguma razão, o termo gossip (má língua) se tornou recorrente na análise do texto televisivo, bem como infotainment, o híbrido que associa informação e espetáculo. Na verdade, mais espetáculo do que informação.        

 

2. Da natureza do medium: significação e massagem

 

Quando, em 1980, Ted Turner criou a CNN, tinha consciência de estar a dar um salto em frente no capítulo das comunicações. Em rigor, sendo ele um homem de negócios, a sua ideia inicial era a de fazer um canal de entretenimento a operar 24 horas por dia. Percebeu, no entanto, que podia ganhar dinheiro juntando o melhor de dois mundos, ou seja, proporcionar espetáculo ininterrupto através da construção da realidade operada através das notícias. Vejamos.

 

As notícias são representações resultantes da mediação da linguagem. O mesmo sucede com os demais géneros jornalísticos como, por exemplo, a reportagem ou a entrevista. Em qualquer caso, obedecem sempre a uma agenda subordinada à influência retórica e discursiva de instâncias de decisão, bem como a pressões de vária ordem, sejam elas institucionais, profissionais, culturais ou ideológicas. A agenda é restritiva. Alegando critérios jornalísticos, tanto inclui quanto exclui. Havendo inclusão, a fábrica de notícias - newsmaking - entra em laboração segundo rotinas que levam a que as coisas sejam feitas de uma determinada maneira e não de outra. É assim em muitas dezenas de canais espalhados pelo mundo, regra geral em língua inglesa, cuja única diferença substantiva - não sendo coisa pouca - é o ponto de vista. Dito de outro modo, a matriz é comum, inspirada na CNN, os códigos são semelhantes, o enfoque é que depende do referencial cultural e geoestratégico. Quanto ao que a agenda exclui, não vindo a ser notícia, simplesmente, não existe. Como é óbvio, a disseminação de canais de informação à escala global revela até que ponto a televisão é insubstituível no campo da disputa ideológica.

 

Por envolver a produção de conteúdos, importa sublinhar a importância de dois elementos, por vezes, negligenciados na análise. São eles o processo de significação e a natureza do medium. Quanto ao primeiro ponto, cabe perguntar: qual o papel da imagem na codificação nos diferentes géneros jornalísticos. Faça-se a seguinte experiência. Veja-se a reportagem de um telejornal sem som. Do alinhamento de planos resulta percetível a ausência de articulação sintática das imagens. Evidentemente, passa alguma informação, por exemplo, a identificação de lugares, situações e de alguns protagonistas. Mas o texto, no seu conjunto, é precário, posto que as imagens são mostradas de forma avulsa. Veja-se, de novo, a reportagem com som. É dado o primado à palavra, cabendo à imagem o papel subsidiário de ilustração. Ora, o que define a linguagem como sistema semiótico é a circunstância de ser constituída por signos, mas não de signos isolados. E sendo a televisão um medium audiovisual, os diversos subsistemas de comunicação teriam de convergir no sentido de uma síntese gramatical coerente, o que não acontece. Ao espectador, habituado a que assim seja, nem sequer lhe ocorre fazer perguntas. Todavia, o processo tem consequências. Vai ao encontro, e este é o segundo ponto, de dois dos famosos aforismos de McLuhan: the medium is the message (o meio é a mensagem) e the medium is massage (o meio é massagem). Ambos ajudam a compreender a natureza da televisão.

 

Marshall McLuahan, a par dos seus famosos aforismos, ao pensar os media como extensões dos sentidos do homem, introduziu a ideia do efeito antropológico das tecnologias da comunicação. Em 1970, antecipou o que seria a guerra do futuro: “World War III is a guerrilla informatition war with no division betweeen military and civilian participation.” in Marshall McLuhan (1970), Culture is Our Business. Com efeito, a opinião moldada pelos media é indispensável como respaldo da guerra. Imagem: MM, Yousuf Karsh
Marshall McLuahan, a par dos seus famosos aforismos, ao pensar os media como extensões dos sentidos do homem, introduziu a ideia do efeito antropológico das tecnologias da comunicação. Em 1970, antecipou o que seria a guerra do futuro: “World War III is a guerrilla informatition war with no division betweeen military and civilian participation.” in Marshall McLuhan (1970), Culture is Our Business. Com efeito, a opinião moldada pelos media é indispensável como respaldo da guerra. Imagem: MM, Yousuf Karsh

Atentemos no dispositivo semiótico do telejornal. Todo ele procede da criação de uma atmosfera de entropia, na qual os protagonistas se multiplicam em desempenhos e se opera a metamorfose do espaço do estúdio em metáfora do mundo. Superfícies arrojadas, cores quentes, silhuetas humanas ativas em sucessivas escalas da profundidade de campo, múltiplos ecrãs supostamente ligados às várias partidas do mundo e a figura totémica do apresentador sobre quem o plano médio faz incidir as atenções e do qual se espera venha introduzir ordem discursiva no caos do mundo. O telejornal tem um alinhamento que decorre de uma agenda. Tem notícias e opinião. Contempla diversos géneros jornalísticos. A reportagem é uma das peças desta engrenagem. A par dos diretos e das entrevistas, coabita com notas de rodapé, separadores, anúncios publicitários, promessas do inesperado tangível ou anúncios do que se verá mais à frente. Vamos supor que a guerra na Ucrânia é um dos temas. É chamado um repórter no terreno.

 

A reportagem é previsível: texto off, entrevista, repórter em campo. Na maioria dos casos, a mediação jornalística é mínima. Insere-se na perspetiva do go between. O jornalista, mesmo sem nada de substantivo para dizer, tendo alguma notoriedade, torna-se uma espécie de oráculo de quem se espera a última palavra. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, com informações a passar em rodapé, habitando um espaço saturado de sinais incoerentes, a reportagem tende a tratar os assuntos como faits divers, sem especial preocupação de organização da ordem dos signos ou da sintagmática. Mesmo tratando-se do que se trata, a necessidade de alcançar o máximo de audiência obriga o jornalismo, em maior ou temor grau, a servir dois donos, “info” e “tainment”: infotainment.

 


Hadas Grinberg, repórter criminal da televisão pública israelita Kan News, foi uma das primeiras pessoas a quem foi facultado o acesso às valas do alegado massacre de Bucha, na Ucrânia. A forma como se apresentou perante as câmaras, porém, gerou uma vaga de protestos. A jornalista justificou a indumentária por ser a mais quente do seu guarda-roupa. Segundo disse, “If it was a man, then no one would talk about the color of his coat or his nails or his hair.” Citado a partir de Women in the War Zone da autoria de Jennifer Maas. Publicado na Variety de 5 de maio de 2022. Imagem: Variety
Hadas Grinberg, repórter criminal da televisão pública israelita Kan News, foi uma das primeiras pessoas a quem foi facultado o acesso às valas do alegado massacre de Bucha, na Ucrânia. A forma como se apresentou perante as câmaras, porém, gerou uma vaga de protestos. A jornalista justificou a indumentária por ser a mais quente do seu guarda-roupa. Segundo disse, “If it was a man, then no one would talk about the color of his coat or his nails or his hair.” Citado a partir de Women in the War Zone da autoria de Jennifer Maas. Publicado na Variety de 5 de maio de 2022. Imagem: Variety

Se o recurso ao entretenimento existe, não quer dizer, no entanto, que seja levado à prática de modo idêntico em todas as estações. Tão pouco daí se poderá concluir que os formatos híbridos sejam necessariamente negativos. Nos canais especializados, nos quais todos os shows de notícias se assemelham, há, ainda assim, diferenças que permitem distingui-los consoante o nível de adesão a determinados princípios. Admite-se, por exemplo, que as notícias possam ser apresentadas dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama. Admite-se, igualmente, a necessidade de expor os assuntos de forma acessível e compreensível, dentro dos limites do tempo disponível. Tendo isto presente, é relativamente simples identificar desvios que tanto podem conduzir ao sensacionalismo quanto à propaganda mascarada de informação. Sobra, no entanto, a questão essencial: a quem pertence o medium, quem o paga? Da resposta depende o entendimento do ponto de vista. Ninguém investe em meios de comunicação para ler, ver e ouvir o que não quer. 

 

Voltemos à televisão e à guerra. As guerras de agora. Ponto prévio. A invasão do território ucraniano pelas tropas da Federação Russa, em fevereiro de 2022, constituiu uma violação grosseira do direito internacional. Em função disso, construiu-se uma narrativa mediática, rapidamente interiorizada, em torno da ideia do agressor e do agredido. Do contexto histórico-cultural, bem mais complexo, raramente se falou. Algo se semelhante ocorreu, depois, na Palestina. Dito isto, o que se segue serve ao caso da informação produzida em Portugal, embora, com ligeiras declinações, seja extensivo à generalidade da cobertura noticiosa no ocidente ou ocidente alargado, como agora se diz. 

 


 Vala comum de palestianos vítimas dos bombardeamentos de Israel trazidos do al-Shifa Hospital na cidade de Gaza para Khan Younis, no sul da faixa, onde, segundo a Al Jazeera, seriam incinerados a 22 de novembro de 2023. Imagem: Reuters/Mohammed Salem
 Vala comum de palestianos vítimas dos bombardeamentos de Israel trazidos do al-Shifa Hospital na cidade de Gaza para Khan Younis, no sul da faixa, onde, segundo a Al Jazeera, seriam incinerados a 22 de novembro de 2023. Imagem: Reuters/Mohammed Salem

 

3. A notícia é tanto mais notícia quanto mais é comentada: descrição

 

Os meios de comunicação não são todos tratados do mesmo modo pelos beligerantes. No caso da Ucrânia, por razões óbvias, os mais influentes, sejam eles considerados jornais ou canais de referência, beneficiam de descriminação positiva. Dada a posição que ocupam na paisagem mediática global, deles se espera informação que possa fazer a diferença no contexto do xadrez político e geoestratégico. Essa informação, as mais das vezes, é criteriosamente plantada, como se diz na gíria jornalística. Destina-se ao patamar mais elevado da guerra da comunicação, indissociável da guerra no terreno, sem a qual não é possível ganhar a opinião pública. Nada é inocente. E, qualquer que seja a importância relativa atribuída aos diferentes media, trata-se sempre, como diz Chomsky, de fabricar os consensos indispensáveis à salvaguarda e reforço das ilusões necessárias. Passemos à prática em quatro momentos.

 

Primeiro, em cenário de guerra o repórter, regra geral, não vai onde quer. É enquadrado por militares e elementos dos serviços de informações. Pode propor a visita a um local ou uma deslocação segundo um determinado itinerário. Mas só vai aonde o levam e só se desloca por onde outros decidem. Tal como na segunda guerra do Golfo, quando o levam a algum lado ou é porque se pretende mostrar alguma coisa ou que alguma coisa em particular seja dita ou ambas as coisas. Por exemplo, mostrar e falar de um massacre alegadamente perpetrado pelo inimigo. Portanto, a agenda político-militar não só contagia, mas também condiciona a agenda informativa e o fluxo mediático. 

 

Segundo, as fontes, nem sempre identificadas, ou são oficiais ou oficiosas. Vi um repórter de uma televisão privada portuguesa, acabado de chegar a Lviv, dar uma notícia ao meio dia, cujo conteúdo, às oito da noite, no mesmo canal, constava como sendo de um comunicado do Pentágono. No início da guerra, as imagens de vagas de pessoas em fuga causaram uma comoção brutal. É compreensível. Dadas as circunstâncias, os testemunhos dos cidadãos acabariam, também eles, por ser condicionados, o que, dado o horror, é natural. O instante dispensou o contexto, a emoção deu lugar à indignação. A televisão punha em marcha o rolo compressor do condicionamento, sem contraditório, salvo numa ou outra referência episódica, e sem alternativa, devido à censura imposta pelas autoridades aos canais russos.

 

Terceiro, a pretexto da necessidade de dar informação tão completa quanto possível, do dever de tudo explicar e esclarecer, observa-se o princípio segundo o qual a notícia deve ser comentada. As explicações e os esclarecimentos exigem, naturalmente, conhecimento especializado. Por isso, uma vaga de comentadores tomou conta das pantalhas. Peritos militares, especialistas de segurança, entendidos em geoestratégia, traquejados em relações internacionais, versados em anti-terrorismo, sábios de várias disciplinas saídos da Academia, diplomatas consumados, ativistas russos anti-Putin, ativistas ucranianos pró-Zelensky, enfim, uma galeria infindável de notáveis convergiu no propósito comum de fazer frente à ameaça russa. Pelo meio, o casting das televisões selecionou um número restrito de vozes mais ou menos dissonantes, duas ou três oriundas das Forças Armadas com currículo em missões da NATO, outras tantas vindas da academia, todas com muito menor exposição do que as alinhadas com o pensamento dominante. As vozes minoritárias legitimam o sistema, fazendo passar a ideia da existência de uma informação plural. Sabe-se: a notícia é tanto mais notícia quanto mais é comentada.

 

Noam Chomsky: “The spectrum of discussion reflects what a propaganda model would predict: …the implicit message: thus far, and no further.” in Noam Chomsky, Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies. Imagem: Broadview
Noam Chomsky: “The spectrum of discussion reflects what a propaganda model would predict: …the implicit message: thus far, and no further.” in Noam Chomsky, Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies. Imagem: Broadview

Quarto, a repetição sistemática de um ponto de vista cria as condições necessárias à prossecução dos objetivos delineados. Consumada a perceção da malignidade do inimigo, ratificada pelos especialistas, rapidamente, a guerra passou a ser uma causa comum, uma questão moral. Apareceram inúmeras bandeiras da Ucrânia nas redes sociais, ocupando, frequentemente, o lugar das fotos de perfil. Os russos, segundo as informações veiculadas pelos media, praticavam crimes contra a humanidade, raptavam crianças, massacravam populações. Abriram-se as portas à russofobia. Nem Tolstoi, nem Tchaikovsky, nem o Bolshoi escaparam ao index. Os artistas russos foram impedidos de atuar. Os desportistas foram banidos das competições internacionais. O Tribunal Penal Internacional emitiu uma ordem de prisão contra Putin.

 

Nada de semelhante aconteceu em relação ao genocídio do povo palestiniano ao qual as televisões chamam conflito Israel-Hamas. Os artistas do estado de Israel estiveram no Festival da Eurovisão, os seus atletas participaram nos Jogos Olímpicos de Paris e as suas equipas de futebol disputam as provas europeias da UEFA. O Tribunal Penal Internacional não emitiu nenhum mandato de captura contra Netanyahu. Logo após o ataque terrorista do Hamas de 7 de Outubro, Von der Leyen e Metsola voaram para Telavive em sinal de solidariedade. Fizeram-se fotografar junto ao muro de Gaza com coletes à prova de bala. Posteriormente, perante a evidência chocante do massacre cometido pela tropa israelita, manifestaram preocupação. Tal como Joe Biden, ao mesmo tempo que enviava milhares de milhões de ajuda militar e colocava porta-aviões no Mediterrâneo.

 

Nas televisões, os comentadores da guerra na Ucrânia foram convocados para analisar a situação no Médio Oriente. A mesma agenda. Os mesmos procedimentos. Os mesmos propósitos. Agora, no entanto, com uma missão de dificuldade acrescida. Estações de televisão do mundo árabe, com jornalistas destacados na faixa de Gaza, começaram a mostrar o inominável. Na Al Jazeera, eu vi, em direto, um repórter devidamente identificado a ser perseguido por um tanque israelita. Desde o dia 7 de Outubro já foram mortos 180 trabalhadores dos media, a maioria dos quais jornalistas. Israel proibiu a Al Jazeera a pretexto de ser uma televisão ao serviço de grupos terroristas. Mas foi graças à Al Jazeera que o mundo ficou a conhecer a existência do genocídio, da limpeza étnica que não poupa velhos, mulheres e crianças. Ainda assim, a esmagadora maioria dos comentadores mantém-se fiel à ordem internacional “tal como nós a conhecemos”, expressão recorrente na boca de um oficial general omnipresente na CNN. Vale por dizer, a ordem americana. Há efeitos colaterais? Há. Mas, infelizmente, nestas situações, comentava o general, há sempre efeitos colaterais.

 


Palestiniano observa a destruição em Khan Younis, no sul da faixa de Gaza. Enquanto a ONU considera iniludíveis os sinais de genocídio, Estados Unidos e União Europeia dizem lamentar,  mas enviam, em simultâneo, milhares de milhões em armamento para Israel. Nas televisões, apesar da crueza das imagens e do horror do sofrimento das pessoas, há quem justifique o massacre em nome do direito à defesa. Foto: CNN
Palestiniano observa a destruição em Khan Younis, no sul da faixa de Gaza. Enquanto a ONU considera iniludíveis os sinais de genocídio, Estados Unidos e União Europeia dizem lamentar,  mas enviam, em simultâneo, milhares de milhões em armamento para Israel. Nas televisões, apesar da crueza das imagens e do horror do sofrimento das pessoas, há quem justifique o massacre em nome do direito à defesa. Foto: CNN

4. Da banalização da guerra à vertigem armamentista

 

Dizia Churchill que a primeira vítima da guerra é a verdade. Em relação quer à Ucrânia quer ao Médio Oriente as televisões não se preocupam grandemente com a mentira. Se a informação tem origem em fonte considerada fidedigna, utilizam-na, muitas vezes sem verificação. O problema é que as fontes são parte interessada. Assim sendo, em ambos os casos, Ucrânia e Médio Oriente, a construção da realidade acaba por ser levada a cabo em função de uma agenda sintonizada com os objetivos de um dos lados, sabemos qual, sem cuidar dos critérios e mediação jornalísticos. Daí a propaganda ocupar o lugar da Informação é um pequeno passo. O jornalismo escondeu-se. Salvo quando um ou outro profissional mais consciente e experiente, também os há, foi capaz de contar estórias em que a maioria não estaria disponível para reparar.

 

É claro que o ecossistema mediático sofreu uma alteração profunda. Se, por um lado, a segmentação televisiva deu origem à disseminação de canais de notícias em competição à escala global, por outro, a revolução digital trouxe uma infinidade de plataformas cujos conteúdos tanto competem entre si quanto com os dos media tradicionais, designadamente a televisão. Quer isto dizer que há hoje a possibilidade, com maior ou menor dificuldade, de encontrar informação em media alternativos. Mas, para isso, é necessária literacia mediática. Saber ler mensagens em função do modo de operar de cada medium. Dominar as articulações que envolvem não só a gramática da língua, mas também a gramática das imagens e dos sons. Perceber o conjunto das interações que conduzem às notícias e à opinião. Ter noção das pressões exercidas sobre os meios de comunicação. Em suma, estar na posse das ferramentas que permitem distinguir o trigo do joio, a informação da propaganda. Portugal, em termos de literacia mediática, é dos países mais atrasados da Europa. Ocupa um dos últimos três lugares da tabela. É também um dos países que menos jornais lê, onde os jornalistas são mais mal pagos e onde se vê mais televisão. Em contrapartida, nem sempre pelas melhores razões, bem pelo contrário, a frequência das redes sociais cresceu em flecha.

 

Numa altura em que as opiniões públicas vão ganhando consciência da complexidade da guerra na Ucrânia e, talvez por isso, vão divergindo das respetivas lideranças empenhadas numa vertigem armamentista sem precedentes, Portugal é o País onde, apesar de tudo, se vão mantendo os índices mais elevados de apoio à guerra. Embora revelando cansaço, deixando perceber a intromissão da dúvida, eventualmente, até de algum ceticismo, as televisões não se afastaram desse propósito. Passam sem filtro declarações incendiárias de gente como o secretário-geral da NATO Mark Rutte, que no governo do seu país fez uma aliança com a extrema-direita, da ministra da defesa alemã Annalena Baerbock, por sinal dos Verdes, que quer mísseis de longo alcance para atingir a Rússia, ou da estoniana Kaja Kallas, comissária para a Política Externa e Segurança, que, há não muito tempo, sugeriu uma intervenção militar direta em solo russo. Declarações deste tipo são facilmente corroboradas pela maioria dos comentadores. Algo de semelhante acontece em relação ao Médio Oriente. Apesar do repúdio generalizado face às barbaridades praticadas pelo exército do estado de Israel a mando de um fanático como Netanyahu, a linha geral não se afasta da pauta oficial de Von der Leyen, Metsola, Borrell e Michel. Lamentam os excessos e fazem chegar armamento aos infratores. Se é preocupante a duplicidade de critérios dos responsáveis europeus, o seguidismo da maioria dos meios de comunicação, em particular das televisões, não o é menos.

 


Ursula von der Leyen foi a Bucha ver, horrorizada, “o rosto cruel do exército de Putin”. Após o 7 de Outubro, acompanhada de elementos do IDF, visitou o local da chacina do Hamas e solidarizou-se com Netanyahu. É dela a célebre frase “Israel made the desert bloom.” Ficou horrorizada em Bucha, mas evitou o horror de Gaza. Regra geral, é esse o posicionamento  dos media ocidentais. Imagem: EU Debates | eudebates.tv
Ursula von der Leyen foi a Bucha ver, horrorizada, “o rosto cruel do exército de Putin”. Após o 7 de Outubro, acompanhada de elementos do IDF, visitou o local da chacina do Hamas e solidarizou-se com Netanyahu. É dela a célebre frase “Israel made the desert bloom.” Ficou horrorizada em Bucha, mas evitou o horror de Gaza. Regra geral, é esse o posicionamento  dos media ocidentais. Imagem: EU Debates | eudebates.tv

 

Finalmente, em modo provocatório, regressando ao início do texto. A televisão é ainda um meio hegemónico. Para que as suas mensagens produzam efeitos é necessária a repetição. Do mesmo modo, a redundância. Uma e outra, associadas ao comentário, têm por fim induzir a interiorização de uma linha de pensamento dominante. As regras do híbrido infotainment favorecem a possibilidade de mostrar a guerra em modo de espetáculo, banalizando-a. A banalidade, por sua vez, conduz ao torpor, passividade e aceitação por parte de muitos que deixaram de pensar. O refúgio desses é a crença e a indignação. Mais, quem fica privado de pensar, sem disso ter consciência, fica refém da mentira.

 

Felizmente, nada disto é linear. Há também a certeza de haver pessoas de quem não se faz o que bem se entende, que fazem perguntas e procuram confirmar notícias, comentários e informações. Entretanto, parece ter-se iniciado uma nova fase. Pela guerra, em nome da defesa da Europa contra “a ameaça russa”, eis a corrida ao armamento. Naturalmente, a massagem continua.

 

12 de Outubro 2024

 

Jorge Campos

 

P.S. Este texto foi publicado na revista Ecossocialismo no último quadrimestre de 2024. Foi escrito ainda antes de Netanyahu ser acusado de genocídio. De outubro até esta parte, o destino da guerra na Ucrânia parece inclinar-se cada vez mais para o lado da Federação Russa. Tem ganho consistência a necessidade de entabular negociações com vista a alcançar a paz. Não sei que paz será. Também não sei se do lado do jornalismo de televisão corporativo, tendo em conta a distorção das boas práticas, por exemplo, a confusão entre informação e opinião, haverá algumas baixas por motivos de consciência. Havendo, não seria nada de inédito. Ícones do jornalismo da televisão americana como Edwards R. Murrow, Walter Cronkite e Dan Rather, todos da CBS, em épocas diferentes, por diferentes razões, vieram a público dar a entender que batiam com a porta por não quererem continuar a enganar as pessoas. Não me parece que tal venha a acontecer. E em Portugal ainda menos.

 

 

 

 

 

 

 

    

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Não sei bem o que possa ser o jornalismo cultural, agora. Em tempos, os principais jornais portugueses tiveram excelentes páginas culturais. No Porto, por exemplo, o Primeiro de Janeiro publicou o suplemento das Artes e das Letras e O Comércio do Porto o Cultura e Arte. São meros exemplos. Houve mais. De um modo geral, todos tiveram entre os seus colaboradores alguns dos mais destacados escritores de uma época durante a qual a Literatura foi hegemónica. Posteriormente, o foco diversificou-se. A atenção também passou a incidir sobre outras artes. Consequência da inexorabilidade do tempo, jornais foram morrendo, caso dos dois mencionados, mas outros foram aparecendo, observando, as mais da vezes, a tendência de aproximação ao cada vez mais apetecível mercado dos bens simbólicos. Notar: ainda há suplementos culturais com matérias relevantes, fazendo prova, embora cada vez mais raramente, da presença de profissionais especializados em áreas culturais. Assinala-se a resiliência de um sobrevivente de qualidade, o Jornal de Letras. Quanto à televisão, a pública faz o que pode, as outras, também, embora nunca de forma desinteressada. Com a rádio sucede o mesmo. 

 

Esta paisagem não se esgota, porém, na visão um tanto arcaica plasmada no parágrafo anterior. Pelo contrário, também nela é forçoso assinalar o grande tumulto resultante do mundo digital emergente com a sua miríade de plataformas, no qual coexistem, por um lado, o espetáculo grotesco do vale tudo, fake news e pós-verdade e, por outro, objectos culturais fascinantes, pensamento elaborado, propostas arrojadas e possibilidades de conhecimento praticamente ilimitadas. Na verdade, há de tudo. Mas, para já, o grotesco, de resto, igualmente presente nos media tradicionais, parece levar vantagem. Isto é parte do problema. Não se trata apenas de conteúdos, trata-se, igualmente, de consequências em profundidade, de ordem antropológica, que resultam da utilização generalizada dos meios digitais. Eles alteram o modo de pensar e de agir, condicionam a utilização do tempo, promovem alterações na linguagem e impõem linguagens novas. Disseminados em rede, tanto abrem janelas de liberdade quanto espaço a processos de vigilância que nem as distopias mais radicais conseguiram prever. McLuhan falava dos media enquanto extensão dos sentidos do homem. Assim parece ser. Acrescente-se: este mundo novo tem impacto brutal no jornalismo, especializado ou não, e já maioritariamente on line,

 

Dito isto, suponho ter resumido o que seria expectável ouvir num encontro deste género. Poderia, evidentemente, desenvolver de seguida cada um dos tópicos, mas não é esse o meu propósito. O jornalismo, seja qual for o designativo que se lhe queira associar, ou é jornalismo ou é outra coisa. E este parece ser mais o tempo da outra coisa. Esse é o meu ponto. Farei por isso uma digressão à volta de questões que suscitam perplexidade e interrogações. Antes, porém, de me aventurar no estado da arte, devo fazer uma declaração de interesse. 

 

Há mais de vinte anos comuniquei aos meus alunos a intenção de “mudar de ramo” - foi esta a expressão que utilizei - porque me sentia desconfortável não só com a ideia de continuar a lidar com algo cujo futuro me parecia comprometido, mas, também, e sobretudo, por não querer falhar, por falta de convicção, junto de quem bem merecia sonhar. O jornalismo parecia-me cada vez mais uma atividade metafórica. Decidira, por isso, fazer outras coisas. Não por não gostar da utopia do jornalismo, tão pouco por capitulação, posto que continuaria a intervir publicamente, mas por estar cansado, necessitado de novos desafios. O que se segue é uma espécie de regresso ao passado, back to the basics, onde retomo questões clássicas, as quais, a meu ver, continuam atuais. Os jovens futuros jornalistas precisam de saber que não há jornalismo sem memória, critérios e pensamento. Também não há jornalismo sem cultura. Por isso, ao invés de falar em jornalismo cultural, opto por dar prioridade ao jornalismo enquanto atividade cultural. E, por razões óbvias, tendo um quarto de século de experiência de televisão, falarei, sobretudo, dela.   

 


 A televisão moldou os hábitos das famílias a partir da segunda metade do século XX. Walter Cronkite, ícone da CBS Evening News, alertou: “The democratic system is challenged by the failure in television because our evening news programmes have gone for an attempt to entertain as much as to inform in the desperate fight for ratings.” Hoje, prevalece o mundo digital em rede. Foto: ABC

1. As notícias são como são: mosaico, dialéctica, constrangimentos 

 

Começo, então, por um quadro de referências em torno daquilo que é a matéria prima do jornalismo, a notícia. A fabricação das notícias obedece a constrangimentos tanto de ordem institucional quanto narrativa. No plano institucional há os dispositivos organizacionais, com as suas hierarquias, às quais compete zelar pela observância das normas destinadas a impor uma determinada ordem jornalística. No plano narrativo, trata-se de disponibilizar um conjunto de técnicas habitualmente associadas aos diferentes géneros jornalísticos, as quais permitem encarar a codificação numa perspectiva previsível, embora alguns géneros autorizem uma maior liberdade criativa do que outros. Em qualquer dos casos, estão presentes mecanismos de controle que não se exercem apenas através de processos de gatekeeping, antes correspondem a uma lógica determinista sem a qual se acredita que a própria produção de notícias seria inviabilizada. Esse é o campo do newsmaking. Por isso, as notícias são como são

 

Michael Schudson aponta três ordens de razão para que assim seja: a acção pessoal, a acção social e a acção cultural. No primeiro caso, as notícias são encaradas com um produto das pessoas e das suas intenções; no segundo, resultam das organizações e dos seus constrangimentos; no terceiro, são um produto dos contextos culturais e dos seus limites. Assim, as notícias resultam de um conjunto de interações: do repórter, director e editor; dos constrangimentos inerentes à organização das redações; da necessidade de manter os vínculos com as fontes; do interesse dos leitores e das audiências; das poderosas convenções culturais dentro das quais, frequentemente, os jornalistas operam sem delas terem consciência. Tendo noção dos conflitos existentes entre eles próprios e as chefias pelo controlo das peças, muitas vezes, não estariam inteiramente conscientes do controlo exercido quer no âmbito da organização social, quer do mosaico cultural. Para que tal se verificasse, seria necessário ir à origem dos constrangimentos, de todos eles. Isso permitiria criar um sobressalto cognitivo do lado dos profissionais, bem como um cepticismo saudável junto público no sentido de o levar a exigir maior variedade e qualidade no tratamento das notícias.

 

Apesar de um número crescente de episódios parecer desmenti-lo, é razoável supor que os departamentos de informação continuam a reger-se basicamente pelo chamado valor notícia, tal como foi elucidado por Galtung e Ruge, em 1965. Aludindo à significatividade, os autores argumentaram haver relação entre a cobertura noticiosa e a importância dos acontecimentos. Parece óbvio, embora a natureza dessa relação seja bem mais complexa. É igualmente necessário que os jornalistas disponham de ferramentas, técnicas e teóricas, bem como de um código ético, cujo domínio lhes permita lidar quotidianamente com as pressões e constrangimentos. Sendo certo que ninguém hoje reclama uma objectividade noticiosa absoluta, a verdade é que a confiança do público, apesar de abalada, continua a depender da observância de determinadas normas. Elas existem. Portanto, em princípio, é possível escrutinar os acontecimentos de modo a dar deles uma versão plural, credível, verosímil e, portanto, objectiva.

 


Michael Schudson Foto: Columbia University  

Michael Schudson: “Objectivity, (…), means that a person's statements about the world can be trusted if they are submitted to established rules deemed legitimate by a professional community. Facts here are not aspects of the world, but consensually validated statements about it.” - in Discovering The News: A Social History Of American Newspapers.

Do normativo constam, igualmente, procedimentos clássicos como verificar os factos, confirmar a idoneidade das fontes, distinguir informação de opinião e apresentar de forma equilibrada pontos de vista divergentes respeitantes a uma mesma matéria. Apesar desta ideologia da objectividade continuar bastante arreigada sendo, de algum modo, referência, a verdade é que os reguladores do fluxo noticioso evitam, cada vez mais, fazer-lhe menção explícita. Preferem falar, por exemplo, de imparcialidade e razoabilidade, certamente menos problemáticos e mais consensuais em termos do dia a dia condicionado quer por agendas interessadas, resvalando para a publicidade e propaganda, quer pela contaminação do entretenimento, uma tendência que, sendo transversal à generalidade dos meios tradicionais, salta à vista na televisão.

 

Neste último caso, multiplicaram-se os formatos patrocinados de índole informativa, bastante diversificados, alguns dos quais dispensam o protocolo da informação. Regra geral, obedecem à chamada ideologia da programação, na expressão de Dominique Mehl, a qual, atenta à pressão dos anunciantes, não só pensa os programas em função dos comportamentos e gostos do público, mas também exige, por vezes, a presença e a participação desse mesmo público num registo de convivialidade. Iminentemente sensorial, a televisão precisa dessa ilusão de partilha tanto mais presente quanto mais estiver respaldada no mito e nos estereótipos. A eficácia retórica, no mundo mediático, exige a presença do denominador comum da cultura em sentido lato e restrito. Em sentido lato, o uso de uma mesma língua será o caso mais óbvio. Em sentido restrito, por exemplo, a intersecção com diferentes vertentes culturais. A título de meramente ilustrativo, vejamos o cruzamento, por um lado, com a Antropologia, por outro, com a Análise Literária.

 

A Antropologia dispõe de um arsenal teórico cujas categorias cognitivas permitem perceber uma sociedade se relaciona com o mundo e, designadamente, com o mito acima mencionado, elemento fulcral da coesão comunitária. Regra geral, quem intervém na elaboração das narrativas jornalísticas não tem noção dessa presença, dissimulada atrás da máscara a que convencionou chamar-se senso comum. Há adquiridos, porventura, em função de uma ordem superior, que não se discutem. Mas basta analisar a forma como os jornalistas abordam as suas matérias ou colocam as suas perguntas para entender o seu quadro de referências, presente em latência.

 

Quanto à Análise Literária, na perspetiva de John G. Cawelti, toda a literatura se encontra entre dois pólos, o mimético, que nos confronta com o mundo tal como o conhecemos e o formalista, que corresponde à elaboração narrativa de um mundo sem a desordem, ambiguidade, incerteza e limitações do mundo da nossa experiência. O mundo assim construído, tanto é o espaço da ficção quanto da notícia. Por associação de ideias, Northrop Frye na sua teoria dos géneros literários, ao interrogar-se sobre se a notícia é romance, tragédia, comédia ou sátira, avança algumas hipóteses. Se os protagonistas se erguem do mundo frustrado da experiência para um ideal mais alto e um mundo desejável, esse será o domínio da comédia. Será do romance quando tudo se passa num mundo altamente desejável. Da tragédia quando a notícia resvala para o desapontamento e assume proporções dramáticas. E assim por diante.

 

Estas questões - poder-se-iam acrescentar tantas mais - permitem alargar o campo de interpelação dos procedimentos jornalísticos. São como peças de um puzzle que encaixam dialecticamente. O jornalismo não é uma ilha isolada. O puzzle, por certo consequente de convenções e constrangimentos, procede daquilo a que se chama a construção da realidade.

 

2. A construção da realidade: metamorfose, mentira e propaganda

 

Quer isto dizer que a realidade, em si mesma, não existe. Só existe enquanto construção. O real, sim, existe. Porém, é percepcionado diferentemente consoante a interpretação que dele se faz e como, a partir dela, é organizado. Nessa avaliação far-se-á sentir, certamente, o peso do senso comum. Seja como for, a interpretação e organização do real só são possíveis através do recurso à linguagem. É à linguagem que cabe operar a metamorfose do real em realidade. Assim sendo, os jornalistas, tendo embora o foco num ponto de partida comum, darão origem a narrativas distintas. A construção da realidade é plural. Tratando-se de jornalismo, porém, o processo de construção só fica completo se associado aos critérios jornalísticos. São eles que garantem fiabilidade e conferem credibilidade.   

 


 Northrop Frye: “There is only one way to degrade mankind permanently and that is to destroy language.” Foto: The Toronto School Initiative

 

Na imprensa, a notícia escrita nunca é mimesis posto que, a par dos procedimentos jornalísticos, está sempre sujeita a uma intervenção mais ou menos próxima quer das formas literárias quer, agora, dos conteúdos veiculados através das plataformas digitais, cuja inventariação, tamanha é a diversidade, é praticamente impossível. Poder-se-ia dizer o mesmo em relação aos programas informativos de rádio e televisão. Na gíria mediática, compete-lhes contar estórias. As estórias obedecem a determinadas convenções narrativas. Sendo o mundo da televisão particularmente poroso, no sentido em que absorve diversas estratégias discursivas, a busca de formatos de sucesso dá origem a inesperadas alterações, só estabilizadas a partir do momento em que é atingido um duplo objetivo. Por um lado, garantir audiências capazes de proporcionar receitas publicitárias. Por outro, assegurar a eficácia persuasiva no terreno da regulação e dominação simbólicas. São aspectos complementares. A ilusão de um universo desinteressado de notícias enquanto espelho do mundo acabou há muito.

 

A metamorfose da paleo-televisão, ainda analógica, com o seu contrato de comunicação plasmado na delimitação dos géneros e numa divisão específica dos públicos, em neo-televisão, já em plena migração para o digital, com a sua perspetiva participativa e de segmentação, teve, desde logo, reflexos no modo de encarar o jornalismo. Abriram-se as portas ao infotainment. Em nome do público, os produtores de informação das network americanas adoptaram procedimentos semelhantes aos dos produtores de Hollywood. As notícias, mesmo se procurando preservar critérios jornalísticos, passaram a ser vistas como News Show. Não por acaso, esta tendência impôs-se  com o neoliberalismo, em consonância com as políticas de privatização e desregulação das telecomunicações da era Reagan-Thatcher.

 

Desde então, a televisão comercial opera em função da seguinte equação: se, pela sua natureza, o medium apela mais à emoção e menos à razão, o enfoque editorial deve incidir mais na esfera privada do que na esfera pública; portanto, é necessária a fulanização das notícias em torno, por exemplo, de celebridades; logo, o habitat das notícias é mais no campo do espetacular e menos do esclarecimento. Os géneros jornalísticos refletem tais pressupostos. Vejamos. A reportagem televisiva, centrada no repórter, tornou-se essencialmente performativa. Ao repórter exige-se que seja um ator. Tendo notoriedade, a sua figura sobrepõe-se à matéria informativa, se a houver, porque, verdade se diga, muitas vezes, não tem nada para dizer. No quadro da atual guerra na Ucrânia, chega a ser confrangedor como na maioria dos casos o jornalista se limita a reproduzir versões oficiais. Vai aonde o levam, filma o que lhe mostram, utiliza os argumentos convenientes, divaga em torno do politicamente correcto. Não é nada de novo. Por altura da guerra do Golfo, Richard Hardwood, editor do Washington Post, suscitou a questão e fustigou algumas das vedetas destacadas para a cobertura, entre as quais Dan Rather, Tom Brokaw e Sam Donaldson. Os seus conhecimentos jornalísticos e académicos sobre o Médio Oriente, escreveu Hardwood, “são modestos ou nulos”. Contudo, acrescentou, é em torno deles que as networks montam as suas operações especiais uma vez que atraem  público numeroso e, por conseguinte, publicidade e receitas.

 

Outra consequência da adopção dos formatos do entretenimento é o risco das notícias resvalarem para o fait divers. As redes sociais vieram agravá-lo. Daí à produção de fake news é - foi - um pequeno passo. Veja-se, a propósito, o documentário Outfoxed: Rupert Murdoch’s War on Journalism, de 2004, no qual Robert Greenwald desmonta as múltiplas faces da americana Fox News, na qual, a mentira era recorrente. Hoje, é habitual. E deixou de ser um exclusivo da Fox. Fake news, aliás, não são uma invenção recente. A sua origem é longínqua. Reportando apenas a episódios mais recentes, vale a pena lembrar duas guerras cujo início esteve ligado à mentira.

 

A primeira, a guerra hispano-americana travada em Cuba no final do século XIX. William Randolph Hearst, proprietário do New York Journal e um dos criadores da chamada yellow press, fez deslocar a Havana dois dos seus empregados, o jornalista Richard Davis e o ilustrador Frederic Remington, este último famoso pelos seus quadros do oeste americano. Os dois homens levavam a incumbência de reportar a insurreição dos cubanos contra o domínio colonial espanhol. Pelo meio havia rumores sobre a presença de um navio americano pronto a intervir ao largo da capital cubana. Ao fim de uma semana, Remingtom sugeriu o regresso a Nova Iorque, posto que os rumores eram infundados, a ilha estava calma e não havia sinais de guerra iminente. Hearst respondeu através de um telegrama: “Please remain. You furnish the pictures and I’ll furnish the war.” Assim foi. Remington fez diversas ilustrações sensacionalistas, entre as quais do navio a arder. A partir daí, o falso criou as condições para a guerra.

 


William Randolph Hearst, a inspiração de Orson Welles para Citizen Kane (1941) e criador da yellow press : “Don't be afraid to make a mistake, your readers might like it.” Fonte: WOUB Public Media

Tal como aconteceu mais tarde, já no século XXI, com a guerra no Golfo, cujo pretexto foi a alegada existência de armas de destruição massiva no Iraque. Podemos imaginar Hearst, de novo, agora declinado pela Administração americana: “You furnish me the proof and I’ll furnish the war”. Como se sabe, nunca houve prova, ou melhor, houve uma prova forjada esgrimida nas Nações Unidas pelo ex-secretário de estado americano Colin Powell. As armas nunca existiram. Porém, a mentira, propalada não pelas redes sociais, mas pela generalidade dos media corporativos, justificaram mais uma guerra feita à revelia das convenções internacionais. No documentário do jornalista Danny Schechter, Weapons of Mass Deception, realizado em 2004, é abordado o processo mediático levado a cabo para condicionar a opinião pública. Uma das vertentes do filme diz respeito respeita à construção da realidade e envolve os procedimentos jornalísticos. A CNN, por causa da guerra no Iraque, passou a fazer emissões diferentes para os Estados Unidos e para o resto do mundo, ou seja, mais “patrióticas” para consumo interno, mais “objetivas” para consumo externo. Um dos seus responsáveis editoriais justificou a decisão falando de pequenas alterações levadas a cabo em nome do respeito pelo público. Churchill tinha razão: em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade.

 

3. Fábrica de consensos: as ilusões necessárias

 

A história do jornalismo esteve sempre ligada à equação da verdade e da mentira. Durante muito tempo, podendo embora assumir diferentes enfoques editoriais, o jornalismo teve a seu favor a ideia segundo a qual determinados requisitos, elementarmente descritos na primeira parte deste texto, eram cumpridos. Não o sendo, ou seria mau jornalismo ou não seria sequer jornalismo. É um excelente princípio. De tal modo que o modelo ocidental, baseado numa imprensa livre indissociável do funcionamento do mercado, apesar de questionado por diversas vezes, nunca foi verdadeiramente posto em causa. Contudo, as coisas carecem de revisão.

 

No plano teórico, a crítica radical de Noam Chomsky, designadamente em Manufacturing Consent; The Political Economy of the Mass Media (1988), abriu uma brecha no edifício do pensamento dominante. Através de múltiplos exemplos, designadamente o da cobertura feita pelo New York Times sobre a situação em Timor-Leste, demonstrou a relação estreita do jornal, por um lado, com os patrocinadores e, por outro, com os interesses defendidos pela Administração americana, da qual a Indonésia, ocupante da antiga colónia portuguesa, era um aliado. Juntamente com Edward S. Herman, co-autor do livro, Chomsky definiu o papel dos media no quadro daquilo a que chamou modelo de propaganda: “The mass media serve as a system for communicating messages to the general populace. It is their function to inculcate individuals with values, beliefs, and codes of behavior that will integrate them into the institutional structures of the larger society. In a world of concentrated wealth and major conflicts of class interest, to fulfill this role requires systematic propaganda.”

 

Posteriormente, em Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies (1989), Chomsky desenvolveu a reflexão sobre o efeito de agenda-setting. A agenda não se limita a determinar o que deve ser ou não notícia, selecionando ou excluindo acontecimentos. Ao fazê-lo identifica os tópicos que devem merecer atenção na esfera pública. Se o que não consta da agenda, simplesmente, não existe, o que consta, em função dos códigos utilizados, impõe uma maneira de interpretar. Ou seja, a agenda diz-nos tanto sobre o que devemos saber, quanto sobre o modo como devemos pensar. Como corolário, Chomsky acrescenta: “Within the reigning social order, the general public must remain an object of manipulation, not a participant in thought, debate, and decision.”

 


 Noam Chomsky Fonte: The Intercept


 

A asserção é contundente. Todavia, o percurso percorrido pelos media tradicionais parece corroborá-la. Com efeito, no chamado mundo livre a liberdade de imprensa confronta-se com mecanismos censórios, mais ou menos dissimulados, desde logo com raiz na questão essencial da propriedade: quem está no controle? Ninguém é proprietário de media para ler, ouvir e ler o que não quer. Controlar a comunicação social representa negócio e poder. Esse poder deve ser exercido de modo a não erodir as ilusões necessárias quanto à bondade do sistema. A conjuntura, porém, é desfavorável a esse desígnio. Razões de ordem geoestratégica como que obrigam a tomar partido, mas fazê-lo oblitera os critérios jornalísticos, levando as notícias para o domínio da propaganda. O trabalho dos jornalistas, e não apenas nos canais especializados de televisão, resume-se, muitas vezes, a ser o de go-between, enquanto aos comentadores é cometida a tarefa de fabricar os consensos necessários à formação da opinião pública que há-de respaldar as decisões políticas. No caso da guerra na Ucrânia, entra pelos olhos dentro. No Médio Oriente, também. Dito isto, o que só por si daria farta discussão, não quero deixar de anotar que noutros espaços que não o do chamado mundo ocidental, o condicionamento, com diferentes contornos e enquadramentos, é semelhante. Até por isso, quem se reclama do exclusivo da democracia em contraponto com a autocracia, não deveria proibir canais de televisão. Já nem falo do martírio imposto a Julian Assange.

 

Dito isto, prometo voltar, ainda que abreviadamente, ao tópico do jornalismo cultural, mas não sem antes abordar sumariamente a questão das redes sociais. Poucos como Manuel Castells terão saudado com maior ênfase a explosão da Internet. Disse ele, com razão, que a rede tomou conta da vida quotidiana obrigando a reexaminar todo o transitado da sociedade industrial. De rompante, a tecnologia digital impôs-se nas empresas, na política, no trabalho, na cultura, em suma em todas as áreas de atividade humana. Castells vê na educação o elemento decisivo para tirar partido desse mundo novo. Tem razão, ainda que, apesar de intocadas as possibilidades, o aparecimento dos novos media trouxesse inquietações até então desconhecidas.

 

A esse respeito, o documentário de Jeff Orlowski The Social Dilemma (2020)  é esclarecedor. Lidar com as redes sociais não é um problema menor. Nelas coexistem, de forma latente, utopia e distopia. A utopia do acesso à razão e ao conhecimento sem limites. A distopia da irracionalidade imposta por modelos de negócios cuja busca do lucro não enjeita, antes exige, a par da manipulação, a mentira e a disseminação da ignorância. São aterradores os testemunhos de executivos do Facebook, Instagram, Google e outras plataformas quanto ao mundo novo dos algoritmos. A produção deliberada de fake news é altamente lucrativa. Não falta quem daí tire vantagem seja qual for o domínio, designadamente no campo político. Mais, para funcionar o sistema tem de criar uma espécie de junkies, incapazes de viver sem estarem conectados à rede, uma vez que, só assim, dependentes e dormentes, podem ser vendidos como produto aos anunciantes.

 

4. Salvar o Jornalismo? Cultura.

 

Castells distingue três modalidades de comunicação. Interpessoal, de massas e aquilo a que ele chama auto-comunicação de massas, a qual é interactiva e possibilita a circulação de mensagens à escala planetária em tempo real. Esta última é uma consequência da Internet. No que nos ocupa, importa ter em conta o seguinte. As três modalidades não se excluem, pelo contrário coexistem. Sempre foi assim. A História da Comunicação é cumulativa e evolutiva, um novo medium não substitui os anteriores. Todavia, é elementar reconhecer que o impacto da Internet e das plataformas digitais no jornalismo é brutal. Desde logo, por razões óbvias, no plano tecnológico. Depois, na estrutura organizacional das empresas. Por último, na equação do contexto cultural, onde emergem novas relações de poder, seja de ordem política, seja em termos de mercado.

 

Uma primeira constatação remete, com efeito, para a acelerada perda de anunciantes dos meios tradicionais, da qual resultou uma verdadeira hecatombe no papel com extinção de numerosos títulos da imprensa. O fenómeno é global. As empresas que resistiram, tiveram de adaptar-se ao digital, levar a cabo despedimentos, renovar o pessoal e investir no jornalismo em linha. Algumas dessas experiências foram positivas. Também há notícia de novas publicações digitais, diversificadas, com excelentes resultados. Quem foi bem sucedido, porém, regra geral, não prescindiu de fazer a transição observando os princípios do jornalismo. De facto, só eles garantem a fiabilidade e a credibilidade, salvaguardando a leitura plural propícia ao debate das ideias. É preciso reconhecer, no entanto, que na paisagem mediática abundam armadilhas e tentações. Reside nela um paradoxo: com o espaço da comunicação saturado veio a rarefação do simbólico e uma crescente desrealização do real. Identifico, de passagem, duas ou três razões para isso.

 


Manuel Castells, parafraseando McLuhan, fala da Galáxia da Internet e diz que a rede é a mensagem, mas adverte: “Estamos num tempo sombrio da história, porque o nosso super-desenvolvimento tecnológico  está em contradição com o nosso subdesenvolvimento moral e político.” - in Jornal Opção de 2024/04/28 (entrevista a Euler de França Belém) Foto: Alchetron

A estonteante velocidade de circulação das informações, muitas vezes, impede os jornalistas, sobrecarregados de tarefas incompatíveis com a sua função mediadora, de assegurar o escrutínio que é a primeira condição da qualidade. Há, evidentemente, exceções. Por exemplo, quando os investimentos são avultados e a aposta é na excelência como garante da credibilidades. O bom jornalismo fica caro. Mas, não é essa a regra. Na maioria dos casos, prevalece a política dos multiskilled jobs que dispensam a especialização. No pressuposto de que os jornalistas têm de adaptar-se às novas maneiras de comunicar adquirindo novas competências, o que é verdade, abriu-se uma caixa de Pandora. Fala-se agora de jornalistas multimodais. Na prática, utilizando o jargão popular, vão a todas, competindo, inclusivamente, com as incontáveis plataformas que veiculam uma avalanche de conteúdos num ambiente de entropia sem precedentes. Na televisão, o infotainment assentou arraiais. Há até quem o considere uma nova categoria jornalística. Também se fala em jornalistas cidadãos, como se qualquer cidadão equipado com meios móveis estivesse habilitado a fazer jornalismo. Não tarda, haverá, quem sabe, jornalistas de realidades alternativas, porventura, especializados em pós-verdade. Se calhar, já há…

 

Constato, igualmente, o seguinte. Há hoje uma atrofia significativa quer no plano do uso da língua quer no da linguagem. A necessidade de dar resposta quase instantânea às questões da atualidade leva à redução significativa dos textos. São curtos, por vezes, telegráficos, de rápida apreensão. Aproximam-se da lógica da publicidade. Por vezes, recorrem, com prejuízo do estilo, a simplificações gramaticais e vocabulares idênticas às que encontramos nos usuários das redes socais. Escasseia o contexto o que é, também, sintoma de anemia da memória e, certamente, de uma relação frouxa com a Cultura. No âmbito da linguagem, o lastro benigno do cruzamento com outras disciplinas, por exemplo, a Literatura no caso da imprensa, e o Cinema no caso da televisão, parece ter-se esfumado. A reportagem televisiva, por exemplo, não articula as imagens sintacticamente como sucede no cinema. Ilustra os textos previamente gravados ou, como se diz na gíria, “pinta” os textos. Cola planos, enjeita a montagem. E a montagem, como se sabe, tem uma função semântica. Discursos e narrativas pobres, porque disruptivos no campo da significação, favorecem o reforço dos estereótipos. E se os estereótipos têm alguma utilidade em termos da economia do conhecimento, revelam-se contraproducentes quando se trata de exigir a racionalidade indispensável ao relacionamento com o mundo. Em suma, não creio exorbitar se disser que o panorama é preocupante. Em Portugal, por maioria de razão. Todos os números nos atiram para os últimos lugares dos países europeus em termos de literacia mediática e consumo da imprensa - os jornais em papel que subsistem, salvo um ou outro caso, têm tiragens ridículas.

 

Enfim, não gostaria de terminar sem uma palavra de apreço a quem se dedica ao jornalismo cultural, especializado. Enquanto ideia e prática, não é apenas uma trincheira de resistência. É, apesar de todos os constrangimentos e eventuais cedências, uma centelha que aponta caminhos no sentido de encarar o jornalismo  no seu conjunto como atividade cultural indispensável ao funcionamento da democracia. É esse o bom jornalismo. O jornalismo que requer a memória, respeita os critérios, estimula o pensamento, promove o debate e observa a ética e deontologia. O jornalismo que acolhe o novo e se adapta, respeitando-se e, portanto, fazendo-se respeitar. O jornalismo como Cultura. E a Cultura liberta, diz António Lobo Antunes, .

 

 António Lobo Antunes: “A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos." Foto: Paris Review  

Termino. O que aqui deixei foram breves reflexões do campo da crítica dos media. Para avançar é preciso olhar as coisas para além das máscaras. Pensar, expondo crenças e mitos. Agir dialecticamente. Se o fizermos - esta é a parte retórica na qual gostaria eu de acreditar - apesar dos constrangimentos, as notícias voltarão a ser mesmo notícias. Saberemos identificar o processo da sua construção através da linguagem que permite operar a metamorfose do real em realidade. Evitaremos o grotesco. Seremos capazes de distinguir o verdadeiro do falso, de fazer escolhas conscientes e informadas. Não confundiremos as notícias com a mentira e a propaganda. Teremos um magnífico mosaico de informação plural, com mais jornalistas especializados e menos comentadores, que nos permitirá exercitar o espírito crítico e fazer escolhas conscientes. E, acima de tudo, desvendaremos o segredo das fábricas de consensos que alimentam as ilusões necessárias.  

 

Jorge Campos

Porto, 16 de maio de 2024

 

Nota: Estes apontamentos serviram de base à minha intervenção no 2º Encontro de Jornalismo Cultural promovido pelo Centro de Formação de Jornalistas, na Fundação António José de Almeida, Porto, em 16 de maio de 2024.

 

 

 

 

 

 

 

 

Era eu deputado eleito pelo Bloco de Esquerda, em 2017, quando começou a debater-se na Assembleia da República o destino a dar ao Forte de Peniche. Edifício histórico, classificado como Monumento Nacional, o Forte fora transformado, durante o regime fascista, numa cadeia de alta segurança para presos políticos. 

 

Muitos dos mais destacados elementos da oposição democrática, de vários quadrantes, passaram por lá, sujeitos a todo o tipo de sevícias. Sendo os comunistas o alvo principal da ditadura, por serem os mais combativos e organizados, não surpreende terem sido deles as acções mais espectaculares que ali se verificaram. Foi o caso, em 1960, da célebre evasão de Álvaro Cunhal e de mais nove dos seus camaradas da direcção do PCP.

 

Em função do histórico do Forte de Peniche, e não apenas do passado ligado ao regime fascista, o  seu lugar no futuro não deveria suscitar grandes dúvidas. Teria de estar associado à Memória e à Resistência. Pura ilusão. Primeiro, foi o governo de António Costa, a dar o flanco. Em Setembro de 2016, sem o apoio dos partidos à sua esquerda, decidiu incluir o edifício na lista dos monumentos históricos a concessionar a privados no âmbito do programa Revive, aparentemente feito à medida do grupo Pestana. Tendo estalado a polémica, por pressão do BE e do PCP, mas também de elementos do próprio PS, o governo, ao cabo de dois meses, acabou por recuar na decisão.

 

Depois, a direita, na Assembleia da República e fora dela, tratou de mobilizar-se em sentido oposto. Primeiro, procurou arrastar o debate. Depois, deixou no ar a ideia bizarra de, em nome do progresso e do futuro, transformar o Forte num hotel de luxo, no qual, pasme-se, até poderia haver lugar para um cantinho evocativo da resistência.

 

Enquanto membro da Comissão de Cultura da Assembleia da República coube-me receber, bem como aos deputados dos restantes partidos, um grupo de peticionários favoráveis à ideia do hotel. Defendia o seu porta-voz a necessidade de deixar de viver no passado e de agarrar a modernidade com ambas as mãos. Portanto, seria indesculpável não utilizar o património edificado para desenvolver a região, tanto mais que seria essa a vontade da população. Dizia mais, que a Assembleia da República não deveria ser um entrave ao interesse nacional.

 

Qualquer país civilizado, depois de uma ditadura de 48 anos, seria incapaz de varrer a memória para debaixo do tapete. Entre nós, porém, aparece sempre alguém disponível para ceder património cultural a  troco de meia dúzia de tostões. Deve ser sina. Felizmente, os partidos que viabilizaram a solução política conhecida por Geringonça chegaram finalmente a um acordo. A solução só poderia ser aquela que viria a ser materializada: o Museu da Resistência e da Liberdade.

 

O que está no vídeo que aqui deixo é uma das intervenções que então fiz nesse sentido. Nela, faço referência a meu tio Carlos Costa, um dos evadidos de Peniche na fuga de Álvaro Cunhal.  

 



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Jorge Campos

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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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