Quem tenha visto e sentido o rosto do Fürher em O Triunfo da Vontade nunca o esquecerá. Há-de persegui-lo nos dias, nos sonhos, na vontade, como uma chama silenciosa, queimando no interior da alma.
Joseph Goebbels
Este texto é sobre Leni Riefenstahl. Assume-se como algo especulativo posto que se permite incursões na esfera privada da cineasta de Hitler para suscitar questões da esfera pública, designadamente, no campo da estética. Na verdade, transita em torno da sexualidade. Como teremos ocasião de verificar, não se trata de uma abordagem nova. De diferentes maneiras já outros a empreenderam. Regra geral, ou fazendo a reabilitação de um génio – caso das famosas cartas de Jean Cocteau – ou desconstruindo uma mentira – como sucede de modo contundente em Fascinating Fascism de Susan Sontag. Depois, evidentemente, há o testemunho pessoal de Riefenstahl onde sobram confissões e justificações mais ou menos oblíquas, mas nunca desinteressadas, à volta da sua vida privada e até da sua intimidade. Uma coisa, porém, ela não esconde nas suas Memórias, o fascínio pelo Fürher: “Foi como se tivesse sido iluminada por um relâmpago” (Bach, 2007)”.
Privou com ele e a ele teve acesso até ao fim, mesmo quando a guerra já era dada por perdida. Privou, igualmente, com a elite do III Reich, embora sempre tenha alegado nada saber de política e menos ainda das atrocidades do nazismo. Este sentido de negação é fascinante. E inquietante. O nosso tempo, de forma mais ou menos explícita, recupera uma simbologia cujo conteúdo latente sugere a possibilidade de lidar confortavelmente com a banalidade do mal ou, simplesmente, ignorando-a ou dela ficando refém, como um vício.
Essa banalidade está presente em filmes como Os Malditos (1969) de Luchino Visconti ou O Porteiro da Noite (1974) de Liliana Cavani. Ambos tomam a esfera privada como ponto de partida para uma abordagem do nazismo enquanto lugar de uma paranóia construída em função de valores desviantes, contudo, socialmente aceites. Portanto, uma paranóia normativa. Mais recentemente, o cineasta russo Alexander Sokurov recriou a intimidade de Hiltler em Moloch (1999), um dos filmes da sua Tetralogia do Poder, na qual cabem, igualmente, Lenine em Taurus (2001), o Imperador Hirohito do Japão em O Sol (2005), bem como Fausto (2011), baseado na obra homónima de Goethe, um retrato aterrador de relações de poder e do sentido da vida de quem persegue a imortalidade. As figuras, simultaneamente messiânicas e irrisórias, de Sokurov têm um denominador comum: venderam a alma ao diabo.
Em Moloch, Hitler é um ser hipocondríaco, impotente e patético, incapaz de lidar com o mundo a desmoronar-se à sua volta. No início do filme Eva Braun surge nua a exibir o corpo nas ameias e varandas de Berghof, a casa e quartel-general do Fürher em Obersaizberg, nos Alpes bávaros. Ela sabe que a guarda pessoal do ditador colocada nas montanhas em redor a observa com potentes binóculos através de uma neblina a fazer lembrar os Nibelungos (1924) de Fritz Lang. Dá-se a quem não a pode ter e cuja missão é velar pela segurança do homem que não satisfaz o seu desejo. Ele está prestes a chegar na companhia do casal Goebbels, Joseph e Magda, do seu braço direito Martin Boorman e ainda do inevitável secretário amanuense cuja missão é anotar tudo quanto o Hitler possa dizer, de modo a que nada se perca da eloquente clarividência que lhe é atribuída.
Noutra cena, Magda Goebbels confidencia a Eva Braun o fracasso do seu casamento com o Ministro da Propaganda e gaba a sorte da amiga por ser amante de um génio. Amar um génio, responde Eva Braun, é como estar perto da Lua ou do Sol. Ou seja, longe. Hitler absorvido com o seu passatempo favorito, ver e rever as actualidades cinematográficas (Deutsche Wochenschau), não se apercebe da conversa. Boorman tinha advertido para não se falar na frente Leste. Mas é esse o tema dos filmes, cuja qualidade Hitler deplora. Terminada a sessão, Eva Braun sugere-lhe ironicamente que mande os responsáveis para Auschwitz. Auschwitz, pergunta ele, o que é Auschwitz?
É o mesmo tipo de resposta tantas vezes dada pela cineasta do III Reich Leni Riefenstahl quando confrontada com as suas responsabilidades. Aliás, também ela frequentou Berghof – um lugar recuperado e decorado pelo próprio Hitler – por onde passaram convidados como Mussolini, Aga Khan, Lloyd George, o Duque e a Duquesa de Windsor e até um eufórico Neville Chamberlain, o primeiro-ministro britânico que deixou a Alemanha convencido de poder anunciar à Inglaterra e ao mundo que não haveria a guerra cujo início seria dias depois. Por lá passaram, também, intocáveis como Speer, Himmler, von Ribbentrop, Wolff e Hydrich, todos eles presenças regulares. De quando em vez, a casa enchia-se também de artistas considerados símbolos maiores da “grande arte de expressão alemã” como Arno Breker, o escultor dos corpos perfeitos.
Até agora, o texto tem convocado elementos cujo interesse decorre da importância atribuída à esfera privada para efeito de uma leitura da História e dos seus protagonistas a partir do trabalho de criação. E o cinema, como se sabe, é um poderoso meio de reflexão sobre o mundo. Nas páginas seguintes, porém, encontrar-se-á uma combinação de registos factuais com outros de natureza mais opinativa, através dos quais se pretende desenhar o contexto no qual Leni Riefenstahl emergiu como estrela de primeira grandeza. Finalmente, tratando-se de lidar com o mito, bem como com os dois filmes que perpetuam o culto a ele associado, optou-se por esbater fronteiras – o real e o ficcional – de modo a alargar o campo das possibilidades de interpretação e perspectivar uma conclusão em aberto. No fundo, trata-se de proceder como faz o cinema documental quando se propõe dar a ver um real imaginado.
Propaganda, a sedução do génio
Tal como noutros países totalitários, a Alemanha recorreu à concentração e combinação de media para ampliar o efeito de persuasão das mensagens. Se a importância atribuída à imprensa foi relativa, ainda que não negligenciada, foi na rádio e no cinema onde essencialmente incidiu o esforço da propaganda nazi. Hitler fazia questão de ter opinião própria sobre tudo e acreditava que a vitória do nacional-socialismo passava pela conjugação do cinema, da rádio e do automóvel. O automóvel não será para aqui chamado, apesar da popularidade do “carocha” da Volkswagen e da imensidão das suas tropas motorizadas. A rádio foi eficaz a ponto de ter obrigado os Estados Unidos a criarem, em 1938, o Institute for Propaganda Analysis e, depois, A Voz da América, como forma de descobrir o antídoto e dar resposta ao bombardeamento informativo germânico. O cinema, a par de filmes medíocres e de outros mais ou menos interessantes – entre 1933 e 1944, foram produzidos mais de mil, na sua maioria comédias, filmes de aventuras, melodramas, policiais e musicais – fez numerosas actualidades cinematográficas e deu a conhecer ao mundo o fenómeno Leni Riefenstahl.
De um modo geral, os homens mais próximos de Hitler eram fanáticos a quem, hoje, salvo raras excepções, não se reconhece estatura intelectual. Joseph Goebbels, o ministro da propaganda, era uma excepção. Albert Speer, outra. Ambos tinham noção da importância do cinema. Goebbels acreditava que os filmes, para serem eficazes, deviam combinar propaganda e um elevado grau de exigência artística. Advertia para as consequências de trabalhos formalmente descuidados e subscrevia pontos de vista semelhantes aos do cineasta soviético Dziga Vertov quando advogava, por exemplo, a necessidade do cinema cortar as amarras que pudessem ligá-lo a outras artes, como o teatro, de modo a afirmar-se como linguagem universal. Entendia, por outro lado, que
“manter uma qualidade artística e técnica ao mesmo tempo que se diverte e educa o público não implica cair num esteticista vazio nem encenar mundos fictícios que nos afastem da realidade. O cinema há-de ser uma arte popular na melhor acepção da palavra, e através dele representar as autênticas vivências do povo, as suas alegrias e as suas dores, tudo aquilo que o possa comover” (España, 2000).
A Albert Speer estavam cometidas outras tarefas, em particular a de desenvolver o projecto urbanístico e arquitectónico de Berlim enquanto futura capital do Império de Mil Anos de Hitler. A sua passagem pelo cinema fica ligada às monumentais encenações de massas para os filmes de Riefenstahl, ainda que a cineasta tenha posteriormente reclamado o exclusivo da criação quer de O Triunfo da Vontade (1935) quer de Olimpíada (1939). Estes filmes, apesar dos intuitos proclamados pelo Ministro da Propaganda, são os únicos produzidos pelo III Reich que se impuseram ao tempo e continuam a ser sistematicamente citados e alvo da atenção do público cinéfilo. Para tanto, independentemente do mérito intrínseco que se lhes possa atribuir, muito contribuiu a mitologia que em torno deles foi sendo construída pela cineasta ao longo de uma vida centenária em permanente conflito com o mundo e consigo própria.
Leni Riefenstahl - Helene Bertha Amalie Riefenstahl (1902-2003) - vinha de uma família abastada da classe média, ao que parece com preocupações culturais. Mas, nas suas Memórias, sugere um ambiente familiar repressivo dominado por um pai opressor face a uma mãe submissa, situação que a teria levado à rebeldia e a desenvolver a energia e a força de vontade indispensáveis para vencer numa sociedade organizada segundo regras masculinas. Conheceu bem a Berlim dos anos 20, culturalmente fulgurante e economicamente na bancarrota, e tornou-se uma bailarina relativamente conhecida, mas não tão conhecida quanto quis fazer crer quando se comparava, por exemplo, a Isadora Duncan. Segundo ela, teve de abandonar o palco devido a um acidente quando dançava num teatro, em Praga. Terá sido a primeira das sucessivas adversidades que haveriam de marcar a sua vida e que, certamente, contribuíram para a criação do mito da feminista indómita – de resto, alimentado por ela própria – que a tudo resiste e tudo consegue ultrapassar. Esse mito ganhou espaço ao ponto de mulheres do mundo do cinema como Agnès Varda, Mai Zetterling e Shirley Clarke, insuspeitas de simpatia pelo nazismo, lhe darem crédito.
Em Leni Riefenstahl - The Seduction of Genius, Rainer Rother traça o retrato de uma mulher de beleza invulgar que associava o culto do corpo a uma vontade de ferro não só de vencer, mas também de sobreviver sempre que foi caso disso. Na verdade, se algo de fascinante existe nesta personagem é a forma como ela se foi reinventando, numa relação oblíqua daquilo que nela foi da esfera pública e da esfera privada. Numa idade já muito avançada, ela afirmou que a sua relação com o III Reich tinha sido como fazer um pacto com o diabo. Mas, quer na sua autobiografia, quer em obras que lhe são dedicados, como a supracitada de Rother, a ideia que fica é que ela jogou o jogo da sedução com o diabo.
Não lhe terá sido difícil atrair a atenção de Arnold Frank, um dos cineastas mais conhecidos da época, especialista nos chamados filmes de montanha. Amante do desporto, atlética, temerária, parecia predestinada a transformar-se na heroína natural desses filmes. Assim aconteceu, mas não sem antes ter disputado sem sucesso a Marlene Dietrich o papel principal em O Anjo Azul de Joseph von Sternberg junto de quem se insinuara. Com Franck e com o operador de câmara Hans Schneeberger aprendeu a fazer cinema e, em 1931, realizou o seu primeiro filme A Luz Azul (Das blaue Licht), para o qual contou com a colaboração do teórico do cinema comunista de origem húngara Bela Balázs, cujo nome viria posteriormente a ser apagado dos créditos. Das Blaue Licht é um melodrama sobre uma guardadora de rebanhos com estranhos poderes, Junta, interpretada pela própria realizadora, que se apaixona por um pintor de Viena de passagem pela montanha e tem de enfrentar o desprezo e a maledicência dos habitantes da sua aldeia. O filme estreou em 1932 e agradou particularmente a Hitler que, pouco depois, seria chanceler da Alemanha.
Propaganda, a solução final
A República de Weimar deixara um legado de grandes filmes, quer no período do cinema mudo, designadamente, com a experiência do Expressionismo, quer após o advento do som. Mas esse legado, que passava, entre outros, por Caligari (1919) de Robert Wiene, A Princesa das Ostras (1919) de Ernst Lubitsch, Dr. Mabuse (1922) e Metrópolis (1927) de Fritz Lang, Nosferatu (1922), A Última Gargalhada (1924) e Fausto (1926) de F. W. Murnau, e A Ópera dos Três Vinténs (1931) de G. W. Pabstt, em breve daria lugar a outro tipo de produções.
Numa primeira fase, Goebbels defendeu que os filmes não deviam ser imediatamente reconhecidos como propaganda e, de acordo com a lei do cinema de 1934, que introduziu a censura, tinham de ser “política e artisticamente relevantes” (Barsam, 1992). Nesse mesmo ano, 14 mil pessoas estavam ligadas à indústria cinematográfica e, no ano seguinte, o estado investiu 40 milhões de marcos na produção teatral e cinematográfica, uma soma exorbitante para a época. Entretanto, numerosos intelectuais, nomeadamente, a maioria dos mais qualificados pensadores da Escola de Frankfurt, deixaram o país. Grande parte dos cineastas, técnicos e actores mais conhecidos seguiu o mesmo caminho. Entre outros, Fritz Lang Ernst Lubitsch, Joseph von Sternberg, G. W. Pabst (voltaria à Alemanha mais tarde alegando motivos familiares), Erich Pommer, Robert Siodomak e Peter Lorre.
Apesar da tentativa de criar uma imagem positiva do Reich no exterior, tal não aconteceu. Pelo contrário, a UFA, a principal produtora alemã – que durante anos colocara as suas fitas com facilidade no mercado europeu, oferecendo versões em várias línguas – viu as suas exportações reduzidas, chegando a um ponto crítico nos anos de 1936/37. A Alemanha respondeu ao boicote com intensa actividade diplomática limitando, simultaneamente, a importação de filmes estrangeiros, designadamente, americanos. Mas soube tirar partido da situação. Em The Collaboration - Hollywood’s Pact with Hitler, Ben Urwand apresenta provas de como os grandes estúdios acederam a branquear o nazismo em troca de quotas de exibição no mercado germânico. Ironicamente, os produtores americanos eram, na sua maioria, judeus.
Em 1938, Goebbels enveredou por uma espécie de solução final para o cinema. Criou a Academia do Filme destinada a preparar novos realizadores e técnicos e acelerou o processo de concentração que atingiu o seu ponto mais alto nos anos de 1940/41. Com a guerra chegara o momento de pôr em prática a fórmula de Hitler que preferia a “mentira directa” (Barsam, 1992) à propaganda dissimulada. Para alargar internamente a base de apoio do nacional-socialismo e aterrorizar os espectadores estrangeiros com a exibição de imagens do poderio militar alemão, os nazis radicalizaram a sua mais importante arma política, as actualidades cinematográficas (Deutsche Wochenschau), cuja passagem antes dos filmes de fundo era obrigatória em todas as salas, sendo interdita a entrada aos retardatários.
Quando comparadas com os blocos de newsreels dos americanos e ingleses as diferenças são evidentes “pela sua muito maior extensão (cerca de 40 minutos), por uma montagem sofisticada, pela utilização de música por forma a obter efeitos emocionais e pela preferência dada às imagens visuais em detrimento do comentário falado” (Welch, 1987). Por outro lado, dispunham de uma estrutura narrativa dramatizada, de modo a que todos os acontecimentos surgissem como sendo parte de uma mesma história na qual convergiam a Camaradagem, o Heroísmo, o Partido, o Sangue e a Terra, o Exército e a Guerra e, acima de tudo e de todos, o Führer.
Vistos hoje, estes filmes de actualidades são uma espécie de museu do terror justamente porque se fica com a ideia que foi possível conviver naturalmente com o mal. Nunca se apurou até que ponto Riefenstahl participou neles. Mas não restam dúvidas de duas coisas. A primeira, ela acompanhou as equipas de cinema que fizeram a cobertura da invasão da Polónia em 1939. A segunda, foi-lhe reiteradamente pedida opinião ao mais alto nível sobre essa matéria. De resto, ao contrário do que pôs a correr, não fez apenas dois filmes por encomenda do partido. Fez cinco. Todos inequivocamente nazis. E um deles, realizado em 1933, Dia da Liberdade: O Nosso Exército (Tag der Freiheit: Unsere Wehrmacht) era já como que uma antecipação da glória da Guerra.
Nuit et Brouillard (1955) de Alan Resnais, um dos mais famosos documentários sobre os campos de concentração, com texto do romancista e poeta Jean Cayrol, ele próprio um sobrevivente do extermínio, termina com imagens do julgamento de Nuremberga, durante o qual diversos acusados rejeitam qualquer responsabilidade alegando nada saber ou que se tinham limitado a cumprir ordens. Resnais fecha o filme com uma pergunta: “Se ninguém é responsável, quem é responsável?” Quando a guerra terminou, também Leni Riefenstahl foi levada a julgamento. Manifestou-se surpresa com a acusação – era conhecida como a cineasta de Hitler, mas nem disso sabia – e disse não fazer ideia da existência de campos de concentração, apesar de os figurantes do seu último filme Tiefland – rodado entre 1940 e 1944 – serem ciganos romenos seleccionados de entre os prisioneiros de um deles. Muitos anos mais tarde diria ao cineasta Ray Müller, autor do documentário The Wonderful Horrible Life of Leni Riefenstahl (2000), que lamentava o envolvimento com o III Reich, mas reiterou que sempre fora movida exclusivamente pela beleza e pelo amor à arte.
O fascínio de Hitler por Leni Riefenstahl remonta a 1932. O interesse de Leni Riefenstahl por Hitler, também. Na suas Memórias, ela relata o efeito hipnótico do futuro ditador sobre as massas e sobre ela própria quando, “por curiosidade” (Riefenstahl, 2000), o foi ver pela primeira vez num comício no Palácio dos Desportos, em Berlim. Diz ter ficado espantada quando lhe respondeu a uma carta na qual dizia que gostaria de o conhecer, tendo ele agendado um encontro para Wilhelmshaven onde, num passeio à beira mar, lhe terá manifestado profunda admiração pelo seu desempenho como Junta, a protagonista de Das Blaue Licht, para, de seguida, a abraçar – “olhava-me excitado” (Riefenstahl, 2000) –, deixando-a “perplexa” (ibidem). Várias passagens das Memórias são igualmente dedicadas aos avanços de Goebbels que, tal como no caso de Hitler, segundo ela, foram sempre rejeitados. “Deve ter percebido que eu não simpatizava com ele e isso ainda o excitava mais” (Riefenstahl, 2000). Sobre um dos seus primeiros amantes, Hans Schneeberger, escreveu: “… era sete anos mais velho do que eu, mas deixava-se levar de bom grado: ele era o elemento passivo, eu o activo” (Riefenstahl, 2000). Curiosas declarações. Ao longo das 600 páginas da sua autobiografia faz passar a ideia que teve de lidar com um universo masculino corruptor em nome de um ideal estético alheio à fealdade do mundo.
A intimidade e a esfera privada não teriam qualquer relevância não fosse dar-se o caso de haver uma relação estreita com a esfera pública na génese e afirmação de uma obra cinematográfica cuja matriz não diverge substancialmente dos princípios da “grande arte de expressão alemã” que se afirmou por oposição àquilo a que Hitler chamou “arte degenerada”. Para os nazis “arte degenerada” era basicamente a arte moderna, sobretudo as obras vanguardistas da pintura e da escultura de carácter abstracto, surrealista ou expressionista. Kandinsky, Chagall, Picasso, Max Ernst e Paul Klee, por exemplo, foram banidos. Quando, em 1937, Goebbels organizou, em Munique, uma exposição “degenerada” tinha em mente fazer a demonstração da perfídia dos seus autores – judeus bolcheviques, segundo ele –, cujas mentes doentias davam corpo a representações do homem e da natureza que envenenavam a sociedade. A “grande arte de expressão alemã”, pelo contrário, correspondia à idealização da raça pura, legitimada pela herança da Idade Clássica, como fim supremo do nacional-socialismo. Riefenstahl disse nunca ter estado de acordo com esta política. Mas no ano seguinte à exposição de Munique fez Olimpíada.
Os filmes malditos: Riefenstahl ao espelho
“Em 1934, a noção que se tinha das coisas nada tinha a ver com o julgamento entretanto feito pela História” – afirma Riefenstahl no documentário de Ray Müller já mencionada. Nessa altura, diz e ela, “90 por cento do povo alemão era a favor de Hitler”. Convidada a realizar um filme sobre o partido, em 1933, teria desejado rejeitar a proposta, sugerindo até Walter Ruttman como sendo a pessoa mais indicada para levar a cabo a empreitada. Ruttman, que trocara as convicções comunistas pelo nazismo, era um dos poucos realizadores de talento que tinham ficado na Alemanha. Mas, a insistência de Hitler acabou por demovê-la visto que, segundo escreveu, seria um obra diferente e não a propaganda habitual das actualidades cinematográficas. Surgiu assim A Vitória da Fé (Der Sieg des Glaubens) sobre o V Congresso do NSDAP, que decorreu em Nuremberga de 30 de Agosto a 3 de Setembro de 1933. Apesar de ter sido visto por 22 milhões de pessoas, o filme foi subitamente retirado da circulação e esteve dado como perdido durante 70 anos. A cineasta alegou falta de qualidade. Pelo menos foi essa a justificação dada para fazer no ano seguinte O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens) sobre o VI Congresso do Partido.
Muito mais do que a obra de uma cineasta de génio, O Triunfo da Vontade é uma litania do fascismo, a deificação do Fürher através de um meticuloso dispositivo cinematográfico que subconscientemente propõe o Fürher como objecto de desejo. Hitler tinha a noção do carácter hipnótico da imagem e acreditava na necessidade de estetizar a política. Teve lições de representação por forma a melhorar o desempenho público e sabia que num lapso de tempo muito curto, quase instantâneo, a imagem pode proporcionar uma visão do ser humano que a palavra escrita apenas consegue fazer passar através de um período longo de leitura. Não acreditava nem na racionalidade nem na lógica. Preferia estimular emoções e afectos em torno de símbolos poderosos. Por exemplo, a suástica, segundo Wilhelm Reich, era originariamente um símbolo sexual representativo da cópula e só mais tarde viria a ser associada à roda do moleiro, um ícone do trabalho (in Grant e Sloniowski, 1998). Na sua análise da psicologia de massas do fascismo, o mesmo autor constata, por outro lado, a necessidade do líder encarnar a mitologia da nação, pois, só assim, poderia personificá-la e, desse modo, obter a adesão necessária à crença.
Rodado na ressaca da célebre “noite das facas longas”, em Junho de 1934, quando Hitler mandou assassinar Ernst Röhm, o chefe das SA, O Triunfo da Vontade reflecte o intuito de apaziguar forças em litígio no interior do nacional-socialismo. Isso é claro em diversas passagens, em particular, no discurso feito perante os camisas castanhas das SA alinhados em parada. Do ponto de vista criativo e simbólico, A Vitória da Fé não é assim tão diferente de O Triunfo da Vontade. Bem pelo contrário. Então, porque foi retirado de circulação? Pela simples razão de que Röhm, entretanto assassinado, aparecia praticamente em pé de igualdade com Hitler e a História do III Reich já não passava por ele. Poderia Riefenstahl ignorar os acontecimentos? Ela que contou com tudo quanto quis para a realização de O Triunfo da Vontade? Que dispôs de condições logísticas semelhantes às das grandes produções de Hollywood?
A análise de conteúdo dos filmes de Leni Riefenstahl – conteúdo manifesto e conteúdo latente – permite revelar não só o mecanismo das representações do nacional-socialismo, mas também a razão pela qual ética e estética se confundem, podendo inclusive suscitar o problema da deslocação da intimidade da autora para a fantasmagoria da tela. A cada passo, adivinha-se a intensidade do relâmpago que a iluminava na presença de Hitler. Em O Triunfo da Vontade ela encena um grande espectáculo ritual, convocando uma imagética carregada de símbolos religiosos associados a outros do campo da sexualidade. À crença juntam-se os interditos e o desejo reprimido numa combinação de signos pensada para subjugar o público, alimentando o seu fascínio e as suas fantasias.
As alusões ao Novo Testamento e ao Livro das Revelações são recorrentes. O filme começa com imagens de um avião rompendo as nuvens e sobrevoando Nuremberga, a cidade de passado mitológico desde o alvorecer da Idade Média que conheceu a glória do Renascimento e que, em 1934, era o símbolo da nova alvorada do “espírito alemão”. Nas legendas iniciais lê-se “dezasseis anos após a crucificação da Alemanha” e “dezanove meses após a ressurreição”. A primeira é uma forma de aludir às sanções impostas pelo Tratado de Versalhes após a derrota na I Guerra Mundial. A segunda, uma referência à chegada dos nazis ao poder. Hitler é o enviado do céu para resgatar o seu povo. Esse povo, porém, é dado a ver de duas maneiras. Numa é uma massa difusa, o que acontece quando Riefenstahl coloca Hitler em plano próximo no centro do ecrã de modo a desfocar o fundo. Na outra, são grandes planos de rostos extasiados, sobretudo de mulheres e crianças, filmados em picado e olhando para cima, para o lugar onde se encontra o Fürher. Tão próximo e, contudo, inacessível na sua grandeza. Que melhores imagens de um povo à procura da identidade face à figura totémica que aponta o caminho da terra prometida?
O indivíduo é apenas a peça de uma máquina e o instrumento de um desígnio inquestionável. Tudo o mais são símbolos. Pulsão e desejo reprimido. Desejo de se rever no chefe e de ouvir a sua palavra redentora. Pulsão do destino colectivo numa atmosfera adensada pela música de ressonância wagneriana de Herbert Windt. O comício final é concebido como um acto litúrgico. Hitler aparece à multidão de fiéis rodeado dos seus apóstolos. Rudolph Hess proclama que o Partido é Hitler, tal como Hitler é a Alemanha e a Alemanha é Hitler. O silogismo é trôpego. Mas a multidão explode. Hitler vai falar. Faz-se um silêncio profundo. Hitler olha longamente o seu povo. Finalmente, fala. É o clímax colectivo dos crentes. Em Fascinating Fascism, Susan Sontag escreveu:
“Em contraste com a castidade assexuada da arte oficial comunista, a arte nazi é ao mesmo tempo pruriente – no sentido de despertar um desejo sexual descontrolado (nota do autor) – e idealizada. Uma utopia estética (a identidade enquanto dado biológico) implica um ideal erótico (a sexualidade convertida no magnetismo dos líderes e no júbilo dos fiéis). O ideal fascista é transformar a energia sexual em força “espiritual” para bem da comunidade. Mas, sendo tentação, a carga erótica é tanto mais sublime quanto mais heroicamente for reprimida (Sontag, 1975)”.
Joachim Fest, um ex-oficial da Werhmacht, especialista na História do III Reich e autor do livro no qual se inspirou o filme de Oliver Hirschbiegel A Queda (2004) sobre os últimos dias de Hitler no seu bunker, em Berlim, lembra que os seus comícios eram peculiarmente obscenos (Bach, 2007). Riefenstahl operou a metamorfose dessa obscenidade na coreografia operática de uma cerimónia litúrgica. A irmã de Nietzsche, recorda Fest, via em Hitlter mais um evangelista do que um líder político. Para Goebbels, Leni Riefenstahl era “a única grande estrela que nos compreende (Rother, 2002). Na realidade, o que hoje se questiona é se o poder hipnótico do Fürher sobre as pessoas não será, em boa medida, o resultado da imagem estetizada que a sua cineasta dele criou em O Triunfo da Vontade. Ao contrário do que sempre afirmou, ela encenou tudo. A maioria dos discursos foi ensaiada e repetida. Em nome da arte?
Olimpíada, o filme seguinte sobre os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, é igualmente um objecto predominantemente sensorial. Beneficiando da experiência adquirida, a cineasta explora e refina procedimentos anteriores na composição da imagem, na imprevisibilidade dos ângulos de vista, na exploração do limite das possibilidades criativas em função dos meios técnicos existentes e, sobretudo, no modo de olhar o corpo humano. Não transporta consigo a marca da infâmia que continua a perseguir O Triunfo da Vontade. Neste último, a retórica da propaganda nazi é explícita e sempre presente. Olimpíada, por seu turno, afirmar-se-ia mais como cinema em busca da dimensão poética. Será assim?
A génese do filme está ligada a relatos contraditórios e Riefenstahl contribuiu para que assim fosse. Disse, primeiro, que o filme correspondia a um pedido pessoal de Hitler e, mais tarde, que o convite teria partido de Carl Diem, o chairman do Comité Olímpico alemão. Em rigor, uma coisa não invalida a outra. Certo é que logo após a chegada ao poder, em 1933, Hitler, com o intuito de passar para o mundo uma imagem positiva da nova Alemanha, empenhou-se pessoalmente para que os Jogos fossem um êxito. Desagradado com o projecto previsto para o estádio, já em construção, mandou chamar Albert Speer. Do dia para a noite Speer procedeu a alterações, ampliando-o substancialmente – a lotação subiu para 100 mil espectadores – e introduziu elementos que permitiam reforçar a identificação do edifício com os padrões neoclássicos. Seria a primeira grande obra de arquitectura paradigmática do nazismo. Também foi construído um imenso complexo desportivo para as diferentes competições, designadamente uma piscina para as provas de natação com 18 mil lugares e uma aldeia olímpica até então sem paralelo. Enfim, ninguém teria dúvidas sobre a importância atribuída pelo III Reich a este evento, o qual, em diversas ocasiões, criou um clima de tensão entre as autoridades alemãs e o Comité Olímpico Internacional (Downing, 1992).
Riefenstahl, já com o estatuto de estrela maior do cinema do III Reich, não podia ignorar este enquadramento. De resto, só uma confiança incondicional lhe poderia ter permitido total controle sobre o projecto. Apesar das alegadas interferências de Goebbels – descrito como um homem baixinho de rosto enxuto e olhos penetrantes ((Riefenstahl, 2000), louco por possuí-la a ponto de lhe dizer “por si faço qualquer sacrifício que possa imaginar” ((Riefenstahl, 2000) – ela contou com meios nunca antes disponíveis. Que Olimpíada é um feito cinematográfico está fora de questão: colocação de rails para os travellings, utilização do zeppelin Hindenburg e de um avião da Força Aérea para filmar sobre o estádio, câmaras miniaturizadas, operadores de câmara ao ombro – o que então raramente se via – gigantescas teleobjectivas de 600mm, câmaras operadas automaticamente, imagens subaquáticas para as provas de mergulho e natação, tudo ao serviço de uma ideia pensada ao pormenor. Até as equipas de newsreels ficaram sob as suas ordens, de modo a não colocarem entraves às soluções técnicas por ela engendradas.
Entre os seus colaboradores contava-se Willy Zielke. Influenciado pelos construtivistas e por artistas do movimento Bauhaus como Lazslo Moholy-Nagy e Albert Renger-Patzsch. Zielke fez Das Stahltier (1935) – The Steel Beast, em inglês – um documentário comemorativo do centenário dos caminhos de ferro. Segundo Barsam, “este terá sido, talvez, o maior tributo alguma vez prestado pelo cinema ao mundo das máquinas” (Barsam, 1992), no qual o comboio se transforma numa criatura viva, apocalíptica e redentora, transportando consigo a morte, a mudança e o progresso (ibidem). Mas o filme desagradou profundamente a Goebbels e foi banido por alegadamente causar graves danos à reputação germânica. Só viria a ser exibido 20 anos mais tarde. Zielke foi internado num asilo psiquiátrico. Ao recuperá-lo, a cineasta estaria certamente a pensar no genial fotógrafo e operador de câmara que ele era e nas suas extraordinárias fotografias de nus, as quais, por sinal, não se coadunavam com aquilo que era, por exemplo, a estética nazi de escultores do regime como Arno Breker e Joseph Thorak. As imagens originais do prólogo de Olimpíada são, portanto, de Zielke, mas a sua nazificação é obra de Riefenstahl.
Olimpíada, em rigor, são dois filmes: O Festival do Povo (Fest der Völker) e O Festival da Beleza (Fest der Schönheit). A primeira parte abre com o prólogo de 20 minutos filmado por Zielke cuja mensagem tem conteúdo simbólico idêntico ao da abertura de O Triunfo da Vontade. A viagem da chama olímpica a partir da Grécia até Berlim foi introduzida por Carl Diem, o alemão do Comité Olímpico, e servia na perfeição os propósitos de propaganda do III Reich. Nunca antes se verificara nos jogos modernos. Mussolini e os fascistas italianos já se tinham apoderado do passado e recuperado o fascio (feixe) – símbolo de poder dos magistrados do antigo império romano – para legitimar a nova Roma Imperial. Os nazis quiseram recuperar a essência do mundo clássico. O Prólogo, fundamental para a estrutura dramática da narrativa, evoca, numa atmosfera wagneriana, o percurso mítico que, segundo o imaginário nazi, tem origem no universo primitivo, ganha novas raízes no classicismo e emerge pujante na Alemanha nacional-socialista. A chama olímpica é transportada até Berlim por atletas esculturais cuja nudez sem vestígio de esforço exalta o culto do corpo. Esse culto é explícito no encadeamento de imagens da estatuária da Grécia antiga com as imagens de pessoas reais cuja estampa física sugere uma origem divina. No final do percurso surge um mapa da Alemanha e sobre ele é sobreposta uma gigantesca suástica. A leitura é óbvia: a tocha da civilização do mundo clássico tem no nacional-socialismo o seu destino natural. Quando o último atleta entra com a chama no Estádio Olímpico de Berlim, apinhado de um público entusiasta, lá está Hitler, na tribuna. É ele o eleito a quem cabe dar corpo à mitologia e cumprir o desígnio superior de redimir o povo e a raça: close up.
À semelhança do que acontecera em O Triunfo da Vontade, o filme foi encenado. Por exemplo, nas competições de canoagem muitas imagens foram feitas durante os treinos, visto que em prova os operadores de câmara não poderiam acompanhar os remadores. O som foi quase todo feito em estúdio e as vozes que se ouvem nos relatos das competições são de alguns dos mais conhecidos locutores da rádio alemã. A linguagem é racista e bélica. O comentador da maratona: “As forças finlandesas estão a combater para atingir a frente. Três corredores, um País, uma vontade” (Rother, 2002). O comentador da prova de natação dos 200 metros crawl: “Os nadadores mais rápidos da Europa e da América lutam contra a frente japonesa” (Rother, 2002). O comentador da prova de atletismo dos 800 metros: “Dois corredores negros lado a lado com os representantes mais fortes da raça branca (ibidem)”. Na montagem, que levou dois anos a concluir, há verdadeiros achados como acontece com os saltos para a água onde a cineasta introduziu subtis inversões do movimento dos atletas de modo a fazê-los pairar como pássaros e a suavizar o contacto com a água. Belíssimo, sem dúvida. Revelador de um talento genial. Mas, em todo o caso, Rifenstahl a olhar-se ao espelho, porventura revelando na tela o mais íntimo e secreto de si mesma.
É improvável que alguma vez a intimidade com Hitler a tenha levado a ser sua amante ainda que, já octogenária, tenha admitido que se ele lhe tivesses pedido, certamente não deixaria de lhe fazer a vontade. De resto, os seus amantes, regra geral, obedeciam a padrões físicos facilmente identificados com ela própria enquanto Junta em Das Blaue Licht e nada tinham a ver com a figura do Fürher. Eram belos, atléticos, esculturais. Fisicamente predestinados. Anatol Dobrianky, por exemplo, um dos estafetas do Prólogo de Olímpiada, recrutado em Delfos durante o casting de corpos perfeitos, exerceu sobre ela uma tal atracção que se dispôs a pagar aos pais do rapaz 200 marcos para o levar consigo para Berlim. Foi o que fez. Pô-lo numa escola de actores onde não vingou. Anatoly acabou por aderir ao nazismo e, ao que se julga, desapareceu na fogueira da guerra. Durante os jogos, em Berlim, os seus colaboradores divertiam-se a vê-la lidar com os atletas. De forma vulgar e deselegante chamavam-lhe “a fenda glacial”. Ela sofreu com isso. Mas não se inibiu de confessar que se tinha sentido trespassada na troca de olhares com o vencedor do decatlo, o americano Glenn Morris, durante a cerimónia de entrega das medalhas: “desceu os degraus do pódio, tomou-me nos braços, rasgou-me a blusa e beijou-me os seios mesmo no meio do estádio, diante de cem mil espectadores” (Bach, 2002).
A banalidade do mal e o vício dele: conclusão
Em Fascinating Fascism, Susan Sontag recupera uma entrevista da cineasta aos Cahiers du Cinéma na qual é colocada perante a questão de saber se a atenção dada à forma, quer em O Triunfo da Vontade quer em Olimpíada, tem a ver com algo de especificamente alemão. Ela responde:
“Apenas posso dizer que sou espontaneamente atraída por tudo quanto é belo. Sim: beleza, harmonia. Talvez esse cuidado com a composição, este tributo à forma seja muito alemão. Mas eu própria não estou muito segura disso. Há qualquer coisa que me é sugerida pelo inconsciente, não vem da razão... Que mais posso dizer? Tudo quanto seja estritamente realista, mediano, quotidiano, não me interessa... Sou fascinada por aquilo que é belo, forte, saudável, pelo que está vivo. Procuro a harmonia. Quando ela se concretiza, fico feliz (Sontag, 1975)”.
Mas a beleza e harmonia que Riefenstahl reclama para os seus filmes é algo cuja origem se encontra na génese do ideário fascista: a identificação com o primitivo e a busca de uma pureza inicial limpa de qualquer vestígio de imperfeição. Daí à legitimação da hegemonia dos fortes sobre os fracos, dos vencedores sobre os vencidos, dos puros sobre os impuros, é um pequeno passo. Se vencer é o destino dos eleitos, justifica-se o extermínio dos perdedores. Glorificar a guerra e os seus símbolos valida a excepcionalidade do ser superio “belo, forte e saudável”. Exaltar a submissão ao líder resulta de ser dele o exclusivo da palavra. Quando viu e ouviu Hitler discursar pela primeira vez, no comício do Palácio dos Desportos de Berlim, em 1932, Leni Riefenstahl afirmou:
“Eu fiquei com uma visão apocalíptica que nunca fui capaz de esquecer. Parecia que a face da terra estava a expandir-se à minha frente (...) como um hemisfério que subitamente se divide a meio, vomitando um enorme jacto de água tão poderoso que toca o céu e abala a terra. Senti-me completamente paralisada (Bach, 2007,p. 137)”.
Paralisada, sim, a ponto de identificar no Fürher uma visão estética do mundo insusceptível de ser abalada pela ordem negra do quotidiano, como se os episódios do dia a dia não merecessem consideração face à monumentalidade da tarefa movida pela utopia do belo. Visceralmente nazi, também ela se revia no culto da submissão ao líder. Nas suas mãos o cinema foi mais um instrumento ao serviço dos rituais litúrgicos indispensáveis à construção de uma realidade virtual coreografada por forma a sugerir a espessura de um real tangível. Místico e forte. Erotizado. Provavelmente, o espelho da sua relação consigo mesma e com os homens. Certamente, o espelho da sua relação pessoal com Hitler. O fascínio. O relâmpago. Nas suas Memórias é evidente que situações e desabafos de terceiros não são mais do que projecções de si mesma. No Moloch de Sokurov, o diálogo entre Magda Goebbels e Eva Braun é, realmente, inspirado nessa obra que quis deixar para memória futura. Durante uma visita à casa do Ministro da Propaganda, em Berlim, Magda fala-lhe da sua vida íntima. A única razão que a teria levado a casar com Goebbels, escreve Riefenstahl, tinha sido a possibilidade de ver Hitler assiduamente. Não suportava estar longe dele. Sentia-se hipnotizada. Incapaz de resistir.
Tal como a personagem feminina (Charlotte Rampling) de O Porteiro da Noite de Liliana Cavani, uma ex-prisioneira dos campos de concentração feita escrava sexual de um oficial das SS que reencontra, em Viena de Áustria, dez anos mais tarde, e a quem volta a procurar para se prestar aos mesmos rituais de submissão e humilhação e, desse modo, reencontrar uma morte anterior, alegórica, da qual não podia ser resgatada. Na verdade, a volúpia da morte. Essa mesma volúpia ambígua, poderosa e destruidora suspensa dos uniformes negros das forças SS em parada em O Triunfo da Vontade. O glamour da dominação. Fetiches. Espelhos: Eva Braun a exibir o corpo nu em Berghof, no filme de Sokurov, não é senão a evocação da memória da personagem de Junta em Das Blaue Licht, a heroína da montanha preferida de Hitler. E em Os Malditos de Visconti, Frederich Bruckman (Dirk Bogarde), do clã dos von Essenbeck, família que controla a siderurgia na Alemanha – ferro e aço, aquilo de que os guerreiros do século XX precisam para os seus jogos mortais –, reaparece na pele do ex-oficial das SS de O Porteiro da Noite. Também ele não pode deixar de sucumbir ao deleite de submeter e matar.
Durante o período nazi, diria Visconti – como sempre fascinado pelo potencial dramático da decadência da vida familiar – ocorreram massacres e assassínios que ficaram impunes. O mal tomou conta da Alemanha. No seu filme, cujo início se situa na fase final da República de Weimar, explora as relações dos von Essenbeck – na vida real a família Krupp – com o poder nazi emergente. Bruckman, o director das fábricas, é um homem ambicioso que destrói os outros sentindo piedade de si mesmo. Em nome do interesse do seu império industrial, a família convive com todo o tipo de taras dentro de casa e fora dela: o incêndio do Reischstag, a “noite das facas longas”. Nada é impossível neste país, diz a baronesa Sofia (Ingrid Thulin), amante de Bruckman e mãe de Martin von Essenbeck (Helmut Berger), com quem tem uma relação incestuosa. Martin, que imita Marlene Dietrich em Lili Marleen (1932) de Josef von Sternberg, adere às tropas SS e mata a mãe e o amante depois de os sujeitar a uma humilhante cerimónia de casamento. Tal como o médico do Fausto de Sokurov, também os von Essenbeck venderam alma ao diabo. No nazismo, diz Visconti, tudo é trágico. Operático.
Nos filmes malditos de Leni Riefenstahl, apesar de ela ter privado com a tragédia, nada é trágico, tudo é operático. O mal, tal como o cinema tantas vezes o deu a ver e do qual ela diz nunca ter tido conhecimento, está ausente das suas imagens. A sua dramaturgia faz-se de representações grandiosas, em tensão, no contexto de relações hierarquizadas e de valores pré-estabelecidos. No topo da pirâmide humana, omnipresente, omnisciente, está o líder. Os figurantes, porém, são já a criação idealizada pelo criador. Seres admiráveis. Na maneira como correm, saltam, mergulham, desfilam, prestam vassalagem. A tela é o lugar de revelação dessa identificação mágica do criador com as suas criaturas. É, justamente, por isso, que as imagens de Leni Riefenstahl são as imagens mais aterradoras alguma vez produzidas sobre o nazismo. E o embuste consiste em esconder natureza do nazismo sob a máscara de um ideal: a vida enquanto arte.
BIBLIOGRAFIA
Bach, Steven – LENI - A Vida e Obra de Leni Riefenstahl, Casa das Letras, Lisboa, 2007.
Barsam, Richard M. – Non-Fiction Film, a Critical History, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1992.
Downing, Taylor – Olympia, British Film Institute, London, 1992.
España, Rafael de – El cine de Goebbels, Editorial Ariel S.A., Barcelona, 2000.
Grant, Barry Keith and Sloniowski, Jeannette, ed. – Documenting the Documentary - Close Readings of Documentary Film and Video, Wayne State University Press, Detroit, 1998.
Riefenstahl, Leni – Memorias, Evergreen, Taschen, Espanha, 2000.
Reich, Wilhelm – The Mass Psychology of Fascism, Noonday, New York, 1970.
Rother, Rainer – Leni Riefenstahl - The Seduction of Genius, Continuum, London-New York,2002.
Sontag, Susan – Fascinating Fascism, The New York Review of Books, New York, 1975.
Urwand, Ben – The Collaboration - Hollywood’s Pact with Hitler,
Welch, David – Propaganda and the German Cinema 1933-1945, Oxford University Press, New York 1987.
Winston, Brian – Claiming the Real (the documentary film revisited), British Film Institute (BFI Publishing), Londres, 1995.
FILMOGRAFIA
A Linha Geral (1929) de Sergei Eisenstein
A Queda (2004) de Oliver Hirschbiegel
A Vida Maravilhosa e Horrível de Leni Riefensthal (2000) de Ray Müller
Fausto (2011) de Alexander Sokurov
Lili Marleen (1932) de Josef von Sternberg
Moloch (1999) de Alexander Sokurov
Noite e Nevoeiro (1957) de Alain Resnais
Olimpíada (1938) de Leni Riefenstahl
O Porteiro da Noite (1974) de Liliana Cavani
O Triunfo da Fé (1933) de Leni Riefenstahl
O Triunfo da Vontade (1934) de Leni Riefenstahl
O Sol (2005) de Alexander Sokurov
Os Malditos (1969) de Luchino Visconti
Os Nibelungos (1924) de Fritz Lang
Taurus (2001) de Alexander Sokurov
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