O documentário político nos Estados Unidos tem uma longa e riquíssima tradição. A par dos registos mais convencionais muito marcados por opções jornalísticas, portanto, pouco interessantes do ponto de vista estético, houve sempre lugar para uma experimentação cujos resultados foram não raramente surpreendentes. Um exemplo paradigmático é a produção dos cineastas da esquerda radical associada a organizações como a Nykino e a Frontier Films, nos anos 30 e 40 do século passado. Não fizeram muitos filmes, bem pelo contrário. A tentativa de fazer newsreels contra a corrente, claramente identificados com o movimento comunista internacional, anti-fascistas e inequivocamente a favor da causa operária, como America Today, também não foi especialmente bem sucedida. Contudo, quer num caso quer no outro, afastando-se do cinema de género de Hollywood e dos rotineiros jornais cinematográficos mainstream, estes mavericks da esquerda não só expandiram os limites do documentário como deixaram um legado no qual é possível mapear boa parte do debate hoje em curso. Claro que antes deles já no movimento documentarista britânico se tinha verificado algo de semelhante. Com eles, porém, algo de novo foi acrescentado. Esse novo resulta das encruzilhadas do mosaico cultural americano e da pujança das suas narrativas.
Por esse universo perpassam: a iconografia criada pelos fotógrafos da Grande Depressão e do New Deal, de Walker Evans a Dorothea Lange e Walter Rosenblum; a folk music da época, branca e negra, em ambos os casos socialmente comprometida, de Woody Guthrie a Paul Robeson; a obra de uma plêiade de escritores na qual avultavam, por exemplo, Ernest Hemingway, John Steinbeck, Dashiell Hammett e Lillian Hellman - esta última implacavelmente perseguida durante a caça à bruxas; os filmes do movimento documentarista americano fundado por Pare Lorentz; as experiências vanguardistas do teatro de Nova Iorque. A lista não é exaustiva, mas é bastante para se ter uma ideia do mosaico no qual se inscreve a acção da Nykino motivada pelo combate ao fascismo, influenciada pelo Comintern, cuja tutela no plano cultural cabia ao milionário e agitador comunista Willi Münzenberg, e alinhada pela ala mais à esquerda do movimento operário dos Estados Unidos. Neste texto são abordados dois filmes produzidos pela Frontier Films. São eles Native Land e Black Legion.
Antecedentes
Se os filmes de Pare Lorentz produzidos no âmbito das actividades governamentais foram encarados com desconfiança por parte dos republicanos, os filmes dos documentaristas politicamente comprometidos com a esquerda radical foram simplesmente proscritos. A história deste movimento tem fundamentalmente dois episódios. O primeiro corresponde aos anos da Worker’s Film and Photo League situando-se entre 1930 e 1935, embora com antecedentes que remontam à segunda metade dos anos 20. O segundo identifica-se com a actividade da Nykino e da Frontier Films durante um período que principia no final de 1934 e vai pouco mais ou menos até à altura em que os Estados Unidos entraram na II Guerra Mundial.
As origens da Film and Photo League convergem com a actividade do Socorro Vermelho de Willi Münzenberg que, em 1926, à semelhança do que acontecera na Europa, começou a exibir na América os filmes dos cineastas soviéticos à margem dos circuitos comerciais. A influência desses filmes junto do grande público terá sido reduzida, mas junto das elites intelectuais e sindicais teve importância considerável a ponto de um grupo de fotógrafos e cineastas, enquadrado pela acção conjugada do Socorro Vermelho e do Partido Comunista Americano, ter passado a agir organizadamente.
Do grupo inicial da Worker’s Film and Photo League faziam parte homens como Samuel Brody, Leo Seltzer, Lewis Jacobs, Leo Hurwitz, Jay Leyda e Ralph Steiner, para citar apenas alguns, e no centro das suas preocupações estava a mobilização dos trabalhadores na luta contra o fascismo. Apesar da abertura de delegações numa vintena das principais cidades americanas, o grupo deparou sempre com dificuldades de distribuição quer do American Today–Newsreels, aonde num segmento de The World in Review se chegou a identificar Roosevelt com a extrema-direita – quer de outros filmes de carácter mais ou menos militante. Esse radicalismo, mas também, e fundamentalmente, divergências de ordem estética, daria origem a uma divisão crescente.
Em meados dos anos 30, a Film and Photo League chegara a um impasse. Manteve-se activa no campo da fotografia, mas perdido o apoio directo do Socorro Vermelho, entretanto ilegalizado por Hitler – Willi Münzenberg continuou as suas actividades a partir da capital francesa –, e com Estaline a definir novas prioridades para a propaganda, a capacidade de produção cinematográfica nos moldes seguidos até então foi severamente atingida. Animado por Leo Hurwitz principiou então um debate sobre o cinema de combate, o qual deveria assentar, basicamente, em três pontos. Em primeiro lugar, era tido como indispensável entrar nos circuitos comerciais de distribuição. Só assim seria possível chegar ao grande público e, desse modo, amplificar a mensagem política. Em segundo lugar, entendia-se que o documentário devia empreender novos caminhos mais exigentes no domínio da estética e linguagem cinematográfica, se necessário recorrendo a actores profissionais e a reconstruções. Finalmente, os documentários deviam estar para além do mero discurso informativo promovendo uma análise e interpretação dos acontecimentos tomando como referência o pensamento marxista.
A partir do início de 1936, a influência de Joris Ivens foi considerável. Acabado de chegar da União Soviética, numa altura em que tinham começado os processos de Moscovo, dos quais, aliás, não se demarcou, Ivens mantinha contactos com Münzenberg. Passara a olhar criticamente para os seus primeiros filmes filiados nas vanguardas, voltando-se para um tipo de abordagem mais próxima do realismo socialista. Também aqui, no entanto, importa não fazer leituras precipitadas sobre a nova corrente estética dominante na União Soviética, bem mais complexa do que a vulgata posteriormente criada deixa supor. Ivens, nesta altura, colocava no topo das preocupações o combate ao fascismo, sendo nisso seguramente acompanhado pelos seus amigos americanos. A sua influência, porém, não ficou por aí. Alargou-se à estética como, de resto, adiante se verá a propósito de Native Land (1942) de Leo Hurwitz e Paul Strand. (Nota do Autor: ver neste blogue Joris Ivens, Cineasta do Mundo: Antes da Guerra Fria).
Se a Nykino resultou da dissidência na Film and Photo League, a Frontier Films foi a sua expressão empresarial para efeito da obtenção de financiamentos. Um dos seus intuitos era produzir um jornal alternativo a March of Time, considerado demasiado institucional. America Today foi a solução encontrada. Outro, era produzir filmes sobre a ameaça do fascismo na Europa e do imperialismo japonês na Ásia, o que, na verdade, correspondia à agenda política do Komintern. Neste contexto, Roosevelt passou a ser considerado um aliado e a Nykino proclamou como prioridade a defesa da democracia. Entre os seus dirigentes e activistas contava com Paul Strand, Willard van Dyke, Sidney Meyers, Irving Lerner, Elia Kazan e Lewis Milestone. Paralelamente, um grupo de escritores, entre os quais se destacavam John dos Passos, Ernest Hemingway, Archibald MacLeish e Lillian Hellman criaram a Contemporary Film Historians, Inc., agrupando comunistas e compagnons de route, a qual viria a produzir filmes tão importantes quanto o foram, por exemplo, Spanish Earth (1937) de Joris Ivens, The City (1939) de Ralph Steiner e Willard Van Dyke e o citado Native Land de Paul Strand e Leo Hurwitz, cuja rodagem principiou em 1938, mas só concluído em 1942. Ver aqui
Native Land
Tivesse sido estreado antes do ataque japonês a Pearl Harbour em 7 de dezembro de 1941 e o seu impacto teria sido diferente. Porém, o filme, sendo exibido um pouco mais tarde, numa altura em que os Estados Unidos já tinham declarado guerra às forças do Eixo e se mobilizavam nesse sentido, acabou por passar relativamente despercebido. No entanto, o reconhecimento que falhou à época, tanto do ponto de vista político quanto no plano artístico, viria a ser consagrado pela posteridade.
Politicamente, o filme é uma denúncia da infiltração de agentes dos patrões no movimento operário, um libelo contra a violência da extrema-direita americana e um apelo à mobilização contra a Black Legion, uma organização supremacista branca que durante a Grande Depressão rivalizou com o Ku-Klux-Klan, sobretudo no Midwest. Mesmo sem ter alcançado grande projecção, Native Land não deixou indiferentes os visados, muitos deles alinhados com a ala mais radical do Partido Republicano ferozmente anti - New Deal. No tempo da caça à bruxas, os autores do filme entraram na lista negra do senador Joseph McCarthy. Alguns, como Elia Kazan, denunciaram os seus camaradas. McCarthy, inclusivamente, mandou destruir os negativos de Native Land, só redescoberto e exibido em 1974.
Desde então, passou a ser visto não apenas com uma referência do cinema político, mas também, esteticamente, como um caso exemplar da controvérsia sobre aquilo que eventualmente possa constituir o essencial da ideia do documentário. O filme obedece a uma lógica narrativa transversal, a qual, desde logo, procede da montagem dialéctica de Eisenstein. Com fotografia de Paul Strand, montagem de Leo Hurwitz, realização de ambos, música de Marc Blitzstein e um texto dito e cantado por Paul Robeson, Native Land explora quatro eixos temáticos: o mundo rural do Midwest, a grande cidade, a pequena comunidade do sul e a cidade industrial. Dentro desta matriz, segundo Russel Campbell, especialista do cinema americano de combate dos anos 30, desenvolvem-se “sequências de claros e escuros, avanços e recuos” em função da alternância de “registos que vão do documental nas situações de carácter geral ao drama encenado quando se trata da abordagem de casos específicos”. Na terminologia de Campbell, “documental” surge como qualificativo que designa registos mais próximos de newsreels, sendo “drama” as cenas e sequências tratadas de acordo com dispositivos do teatro. O autor fala ainda de “documentário encenado”, neste caso apontando às reconstruções de acontecimentos reais na linha de Joris Ivens.
Se, para efeito de análise, forem utilizadas as categorias da cadeia sintagmática de Christian Metz, dir-se-á que Native Land abre com sintagmas em chaveta que duram sete minutos, correspondentes a uma digressão sobre a conquista das liberdades cívicas na América e a necessidade de as defender. Tal como em The River (1938) de Pare Lorentz, prevalece aqui o texto de ressonância poética na voz poderosa de Paul Robeson, activista negro, extraordinário actor, que ousava cantar A Internacional em comícios de trabalhadores. Seguem-se cenas e sequências simples, ora utilizando material de newsreels, ora reconstruções com actores do Group Theatre de Nova Iorque, articuladas, umas e outras, através de novos sintagmas em chaveta, de modo a distinguir as imagens dramatizadas das imagens documentais. No conjunto, a estrutura dialéctica do filme, inscrita num contexto de contradições, conflitos e superações, funciona como exemplo de um sintagma paralelo. Esta opção, resulta, obviamente não apenas do debate então em curso sobre a legitimidade das reconstruções, mas também das experiências europeias de avant-garde, aliás patentes na primeira produção surrealista da Nykino A Pie in the Sky (1934), uma sátira ao papel da igreja na sociedade com realização conjunta de vários dos elementos do grupo, entre os quais Elia Kazan, Irving Lerner e Willard Van Dyke. Quanto a Joris Ivens, sendo ele um praticante do documentário social com passagem pelas vanguardas, facilmente se compreenderá até que ponto a sua influência se fez sentir. Bastaria, aliás, ver Power and the Land (1940) para o confirmar. (Nota do Autor: ler neste blogue em Cinema: Pare Lorentz, Cineasta de Roosevelt)
O argumento de Native Land é baseado em factos, os assassínios de um trabalhador rural no Michigan, em 1934, e de um dirigente sindical em Cleveland, em 1936, bem como em acções criminosas da Ku Klux Clan e de outras organizações da extrema-direita americana. Numa sequência baseada nas audições da Comissão do Senado faz-se a denúncia dos agentes infiltrados nas organizações de trabalhadores e do seu modo de operar. Pontuado por alusões aos direitos constitucionais, o filme procede à reconstituição de episódios do quotidiano, seja o processo de intimidação de um pequeno comerciante simpatizante dos sindicalistas – exemplo da tentativa de uma estética marxista que procurava ligar Brecht e Stanislavsky com o intuito de associar a informação ao envolvimento emocional –, seja a repressão de manifestações sindicais evocada em imagens factuais. As referências multiplicam-se. Por exemplo, no capítulo correspondente aos agentes infiltrados no mercado de trabalho, a primeira sequência, respeitante à agência de emprego, faz lembrar, por um lado, os filmes soviéticos e, em particular, O Homem da Câmara de Filmar e, por outro, Tempos Modernos (1935) de Charlie Chaplin. A sequência seguinte, sobre os agentes provocadores no movimento operário, é uma encenação em que funciona o dispositivo teatral. Mas, quando se entra no capítulo da organização e resistência a transição é feita através de imagens de newsreels, assumindo o texto dito por Robeson um cariz referencial - penso nas funções da linguagem de Roman Jakobson - para de seguida se metamorfosear numa retórica de denúncia da repressão sobre o movimento operário.
Em suma, o filme combina narrativas tão diversificadas quanto aquelas que cabem em newsreels – em grande parte da Worker’s Film and Photo League –, encenações dramatizadas, reconstruções documentais, fotografias, teatro, canto e, até, no cinema de animação, para culminar numa veemente interpelação à consciência do povo americano pela voz de Paul Robeson. Aliás, o texto - e o canto - é um elemento essencial do filme. Assume praticamente todas as funções no uso da linguagem, permitindo não só suturar significantes de menor significado, como são os sintagmas em chaveta, mas também expandir a significação do conjunto, designadamente no que respeita ao envolvimento emocional. Ou, como disse Leo Hurwitz, a alternância de registos discursivos "resultou na prática de anos de estudo e experimentação com o filme (…). Isso permitiu combinar a encenação e o documento, o lírico e o estatístico, o enquadramento social e as histórias baseadas em factos reais”, de modo a suscitar tanto uma resposta emotiva quanto uma abordagem racional dos problemas da comunidade e assim evitar cair na mera enunciação de dados avulsos sobre a violência, a injustiça e a chantagem.
Black Legion
Se Native Land é um filme de intervenção, no qual os recursos simbólicos são colocados ao serviço de uma causa, Black Legion (1936-37) é um paradigma do cinema informativo de combate da época que utiliza, no essencial, o mesmo tipo de linguagem. Na verdade, um comum espectador de televisão dos nossos dias seria incapaz de descortinar qualquer diferença narrativa – que não de conteúdo – entre, por exemplo, a cena da intimidação do pequeno comerciante simpatizante do movimento sindical em Native Land e a denúncia do fascismo em newsreels como Black Legion que tem a assinatura, entre outros, de Hurwitz, Willard Van Dyke e Henri Cartier-Bresson. Ver aqui.
Estruturado em três actos o filme principia com Also Sprach Zarathustra de Richard Wagner e imagens nocturnas de um ritual de iniciação de um membro da Black Legion à luz de archotes. A sequência integra um close-up das mãos do iniciador e do iniciado na transmissão da bala que simboliza tanto o dever de obediência quanto uma condenação à morte em caso de quebra do compromisso. Do ponto de vista estritamente visual é uma citação de Hands (1934), a curta metragem de Willard Van Dyke e Ralph Steiner sobre a circulação do dinheiro. À cerimónia da iniciação segue-se outra cena dramatizada com dois actores. Passa-se num gabinete e serve para denunciar a conivência oficial com acções fascistas de intimidação que podem chegar até ao assassínio de trabalhadores. O terceiro acto, de novo com a música de Wagner, é uma encenação do assassínio de um sindicalista por encapuçados de negro, os mesmos que aparecem no primeiro acto. Consumado o crime, uma voz vibrante em off sugere a identidade dos apoiantes do fascismo e das suas ligações a funcionários governamentais, agentes da polícia e proprietários de jornais. Como era da tradição na época, a última imagem, acompanhada da mesma voz vibrante, identifica The World Today, o cine-jornal da Nykino.
Este filme tem cerca de sete minutos, mas no respeitante à narrativa, pouco o diferencia da longa metragem com o mesmo nome que tem como protagonista Humphrey Bogart, feita algum tempo mais tarde. Na verdade, embora reportando sobre um caso verídico e sendo anunciado como newsreels, não há em Black Legion quaisquer vestígios de critérios jornalísticos ou qualquer preocupação de objectividade. Todo ele obedece a reconstruções e está mais próximo dos filmes de ficção do que do filme documentário. Não tem imagens factuais. A sua estrutura é muito curiosa, posto que articula procedimentos do cinema clássico americano, com predomínio de sintagmas narrativos, com uma estética inequivocamente avant-garde.
Conclusão
A Nykino e a Frontier Films não foram bem sucedidas no seu intuito de produzir newsreels. Aliás, para além de Black Legion, só se lhes conhece mais uma incursão no género. Contudo, o facto de não terem hesitado em combinar os códigos dominantes com a experimentação encerra em si mesmo uma lição recorrentemente identificada no documentário político americano até aos nossos dias, como testemunhou a cineasta Nina Rosenblum, filha do fotógrafo Walter Rosenblum, um dos homens da Fim and Photo League. Disse ela:
“(...) não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta. (...) Por isso, há que encontrar um estilo que chegue às pessoas e as faça querer ver, que lhes torne acessível uma realidade que todos devemos conhecer para nos conhecermos melhor a nós próprios, que nos permita sermos menos esquizofrénicos e cruéis, e mais humanos ”. (Nota do Autor: ler no segmento Cinema deste blogue a entrevista que fiz com Nina Rosenblum).
O que foi dito por Nina Rosenblum em 2001, portanto em circunstâncias muito diferentes do palco dos grandes debates sobre o filme documentário da segunda metade dos anos 30 e 40 do século passado, não diverge, no essencial, daquilo que então se considerava indispensável no sentido de induzir os efeitos pretendidos, ou seja, adequar a natureza da mensagem às expectativas quanto à percepção. Não por acaso, as opções da Nykino, sendo inspiradas pelo movimento comunista internacional, são contemporâneas da decisão da União Soviética de dar prioridade a “um cinema para milhões”. Para atingir as massas entendia-se necessária a clareza da mensagem utilizando, para o efeito, códigos facilmente compreensíveis. Daí a importância da ficção e das reconstruções. Daí a pertinência teórica de Vsevolod Pudovkin para os praticantes da Frontier Films. Daí a ficção do real, já nessa altura… mas, isso é outra história.