Lída Baavorá (2017) de Filip Renc, Netflix. Este é um daqueles filmes que todo o anticomunista, qualquer que seja o grau de crença instalado na cavidade craniana, vai adorar. Foi uma atriz checa que ficou conhecida para a posteridade como a amante de Goebbels. Fez carreira no seu país, foi convidada para os estúdios da UFA na Alemanha, trepou para contratos milionários à custa da desvairada paixão que o ministro da propaganda nutria por ela - uma paixão retribuída, de acordo com a sua autobiografia -, regressou ao país de origem compelida por Hitler em nome dos bons princípios das famílias nazis, foi contemporânea do carniceiro de Praga, Heydrich - uma das figuras mais sinistras do III Reich -, fez filmes na Espanha de Franco e na itália de Mussolini e, depois, é que foi o diabo... regressada a casa no pós-guerra deu com a Checoslováquia nas mãos dos comunistas. O filme, cuja destreza narrativa é apreciável, tem duas partes. Na primeira, Lída sobe na vida, apaixona-se por Goebbels, recusa Hollywood e atinge o pináculo da fama. Na segunda, é o downfall. No pós-guerra, acusada de colaboracionismo vai parar à prisão e só se salva in extremis quando já estava na fila do pátio da prisão onde os comunistas se entretinham a enforcar mulheres. Na primeira, os nazis são bastante ruins, mas apesar de tudo, humanos. Na segunda, os comunistas conseguem ser ainda piores do que os nazis, na verdade, nem sequer são bem pessoas. O filme omite qualquer referência a Heydrich, a Espanha e à Itália, porque a ideia é mesmo essa: o nazismo foi mau, mas o comunismo, ainda pior. Tal como Leni Riefenstahl, também Lida Baavorá escreveu uma autobiografia. Afinal, ambas foram vítimas. Só isso. De tão comprometidas estavam com a sua arte que nem se apercebiam do mundo em volta. Aliás, nunca souberam nada de política. Uma, Leni, admite ter feito um pacto com o diabo. Outra, Lida, admite ter sido amante do diabo. Acreditem ou não, mesmo tratando-se de uma fraude, o mundo é visto assim por boa parte das pessoas nos países da Europa Central. E, não haja ilusões, por cá também não faltam os seguidores da mentira, reforce ela as suas crenças.
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viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR
21 de nov. de 20206 min de leitura
Elvis Presley morreu em 16 de agosto de 1977. Continua a ser o maior ícone da cultura popular americana e um negócio altamente lucrativo. Acabam de sair em embalagem de luxo, por exemplo, as gravações de Elvis em Nashville. Baz Luhrmann, o cineasta australiano de Moulin Rouge, The Great Gatsby e outros blockbusters, ultima o seu Elvis com um dos jovens atores revelado por Tarantino, Austin Butler, no papel principal e Tom Hanks no do coronel Tom Parker, o famigerado agente acusado de ter metido Elvis numa gaiola, nunca mais lhe permitindo voar. Na HBO está disponível The Searcher, um documentário de 2018 com mais de três horas que procura resgatar o legado musical de Presley e refutar a vulgata tablóide criada à volta da sua vida. Da autoria de Thom Zimny, cineasta que trabalha com Bruce Springsteen, The Searcher tem a colaboração de Tom Petty na banda sonora, insiste na influência da música negra, recolhe imagens de arquivo inéditas e conta com a participação de celebridades como o próprio Springsteen. Sendo bem feito, não se afasta da mitologia instalada. O mesmo não sucede com The King, um documentário também de 2018 da autoria de Eugene Jarecki, um dos mais conceituados e controversos cineastas americanos da atualidade. Agora acessível na Netflix, é dele que quero falar.
Não é o tipo de filme do agrado dos chamados die hard fans. Esses vão detestá-lo. Até porque rejeita a narrativa repetida até à exaustão durante décadas, cujo guião é mais ou menos como segue. Elvis, o furacão nascido em Tupelo, Mississippi, é catapultado para a fama a partir do estúdio de Sam Philips, Sun Records, em Memphis, Tennessee. Na ressaca do macarthismo, escandaliza a América conservadora com a versão branca de música negra a que se chamou Rock’n Roll. Em 1958, embarca rumo a Bad Nauheim, na Alemanha, onde presta serviço militar. O rebelde de Memphis regressa dois anos mais tarde enfiado num uniforme militar, faz um concerto patriótico em Pearl Harbour, aparece de smoking no show de Frank Sinatra e vai hibernar para Hollywood onde faz filmes muito bem pagos, na sua maioria imprestáveis. Em 1968, no ocaso dos Beatles, acontece a ressurreição. Um Especial da NBC, trá-lo de volta na companhia da sua primeira banda. De couro negro colado ao corpo, ataca o Rock’n Roll pletórico de energia. O 68 Comeback Special faz a maior audiência da história da televisão. Elvis regressa aos concertos, grava dois álbuns excelentes nos estúdios da Stax e segue para a perdição de Las Vegas, última escala de uma viagem assombrada por fantasmas, sexo e drogas, prescritas ou não, porventura, o culminar da viagem do herói, certamente a tragédia indispensável à consumação do mito.
Tudo isto em The King é virado do avesso, escrutinado, eventualmente posto de pernas para o ar, uma vez que Jarecki nunca perde de vista o contexto. Sendo um crítico radical do establishment o resultado só poderia ser algo de muito diferente do habitual, embora, adianto, nem sempre inteiramente convincente, Discípulo do lendário Melvin Van Peebles, o pioneiro dos filmes de ação afro-americanos popularizados como blaxploitation, Jarecki é autor de filmes como Why We Fight (2005) e The House I Live In (2012), ambos premiados pelo Grand Jury do Festival de Sundance. Em Why We Fight - título tomado de empréstimo dos famosos documentários de propaganda anti-nazi da II Guerra Mundial de Frank Capra - desmonta as intervenções armadas dos Estados Unidos em vários pontos do globo, enquanto expõe quer o complexo militar-industrial quer os meandros do lucrativo negócio de armas a ele associado. Em The House I Live In analisa a mais longa de todas as guerras da América, a guerra contra as drogas, a qual fez da população prisional do país a maior do mundo. Tão pouco neste domínio vislumbrou soluções, até porque, infere-se, apesar da identificação do terrível drama social e humano, não é fácil resolver problemas onde abundam oportunidades de negócios. Ativista de organizações cívicas com presença regular nos mais importantes media nacionais, Jarecki, em suma, faz filmes sobre a América, procurando descodificá-la. É essa a sua motivação. The King não foge à regra.
Há muito Jarecki pensava fazer algo de sério sobre Elvis. Terá começado a trabalhar no projeto ainda antes da eleição de Trump, criando uma equipa de consultores da qual se destaca um dos mais conhecidos especialistas de Jazz e da música popular, Peter Guralnick, autor de duas obras fundamentais, The Last Train to Memphis e Careless Love. Seguindo meticulosamente os passos do ídolo e ouvindo inúmeras pessoas cujos percursos, por qualquer razão, com o dele se cruzaram, Guralnick acaba por fazer um retrato que, transcendendo a figura, mergulha no imaginário da cultura popular. Seria esse o ponto de partida de Jarecki. Com Trump na presidência, o enfoque sobre o que seria a crítica do American Dream, não deixando de o ser, infletiu para a abordagem do mito enquanto expressão e garante de um capitalismo feroz, devorador de corpos e almas, que tem na hegemonia cultural associada ao entertainment uma das ferramentas ideológicas mais eficazes da dominação global. Assim, a vertigem da ascensão, apogeu e queda do Rei é a metáfora da vertigem, apogeu e queda de uma América subitamente mergulhada na insanidade da mentira, dos factos alternativos e da pós-verdade. A América radicalizada de Trump é, na verdade, o pano de fundo do documentário.
O filme começa com o Rolls-Royce de Elvis na estrada. É um esplendoroso modelo de 1963 adquirido e restaurado para o filme. É também um símbolo da realeza. O automóvel viaja pela América, atravessa a mítica Route 66, costa a costa, circula nas grandes cidades como New York, Chicago, L.A. e Memphis. No luxuoso interior transporta os diversos protagonistas que são músicos, atores, brancos e negros, celebridades, amigos e conhecidos de Elvis, ativistas de black lives matters, gente comum, velhos e novos, todos eles com alguma coisa a dizer, ora bem ora mal, constituindo um mosaico complexo e multicolor de olhar e sentir que excede a singularidade do totem em torno do qual se organiza a narrativa para se inscrever no horizonte mais vasto do American Way of Life. Para Van Jones, antigo conselheiro de Barak Obama e atual comentador residente da CNN, Elvis usurpou a música negra e, ao contrário de outros artistas, jamais tomou posição, por exemplo, a propósito da guerra do Vietname, do movimento cívico ou de qualquer outra causa. Chuck D., sarcástico, diz: Elvis doesn´t mean a shit. Alec Baldwin, cujas imitações de Trump lhe valeram ainda maior notoriedade, vê Elvis, ambiguamente, como um colosso americano. Ethan Hawke, embora alinhando pelo mesmo diapasão, aponta à destruição do homem e do artista operada pelas engrenagens do show biz. Segundo Emmylou Harris, Elvis era um ser infeliz e solitário, bem poderia ter saído de uma tragédia grega. Alguém diz a frase chave: Elvis foi para a Alemanha como James Dean, voltou como John Wayne.
James Dean transporta consigo a aura de Rebel Without A Cause de Nicholas Ray. John Wayne é o símbolo do ultra-conservadorismo plasmado em Green Berets, um filme lamentável sobre a Guerra do Vietname. Um e outro são a cara e a coroa do road movie que é The King. E a viagem do Rolls-Royce prossegue na vastidão das estradas da América. Quando supostamente avaria, - tem o mesmo percalço duas vezes - sabemos tratar-se de um plot point necessário à inflexão da narrativa. Quando estaciona nas grandes cidades e se transforma em polo de atração, sabemos que Trump vai aparecer nos ecrãs da televisão de onde quer que o cineasta vá ao encontro das pessoas com quem quer falar. No mítico estúdio B da RCA, em Nashville, onde Elvis gravou a maioria dos seus grandes sucessos, emerge a lógica da esterilização do som, tecnicamente perfeito, mas destinado a polir qualquer vestígio de irreverência. E assim por diante até à fase da auto-destruição em Las Vegas, onde predomina a lógica do negócio de um jogo que encara os seres humanas como mercadoria, e ao terrível episódio do Especial da CBS, em 1977, onde, a troco de dinheiro, o coronel Tom Parker vendeu uma caricatura de Elvis anunciadora da morte, afinal, como pretende Jarecki, a morte de uma certa América. O fim de America, the Beautiful. Ao volante de um Rolls-Royce.
Vejam que vale a pena. Todavia, em minha opinião, sendo um bom documentário, The King não é um documentário exemplar. A ousadia das opções de Jarecki tê-lo-á levado a deixar algumas páginas em branco. Como costuma dizer-se, quando a ambição é grande corre-se o risco de dar passos maiores do que as pernas. Neste caso, talvez nem sempre o filme seja inteiramente convincente. Quanto ao mais, excelente edição, ritmo contagiante, imagens espetaculares, ótima banda sonora. E, já agora, uma pergunta que contém em si mesma um paradoxo: até que ponto esta desconstrução do mito não contribui para lhe conferir renovada vitalidade?
20/11/2020
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14 de nov. de 202017 min de leitura
Atualizado: 22 de out. de 2023
A pesquisa institucional sobre o documentário tem vindo a alargar o escopo dos seus interesses, ou retomando caminhos já prosseguidos, mas depois abandonados, ou encetando outros não confinados apenas ao universo do cinema. Este interesse renovado e transversal produz efeitos a vários níveis, seja aprofundando ou encarando sob novas perspectivas os aspectos mais conhecidos e amplamente tratados pelas teorias do cinema, seja investigando modalidades narrativas emergentes do campo dos media, de modo a estabelecer uma rede de relações na qual é ainda possível identificar questões apenas sumariamente agendadas ou precariamente resolvidas. Para tanto, reclama-se a função moderadora da historicidade, a qual permite avançar gradualmente na identificação dos diferentes modos de documentários, no pressuposto de que a lógica das imagens e a ordem do cinema, mesmo se encaradas numa perspectiva integrada de sistemas de significação, jamais poderão estar ausentes. Questionando as corruptelas da televisão e construindo argumentos sobre o mundo histórico o documentário, cuja diversidade permite veicular livremente visões do mundo ancoradas em compromissos de ordem ética, informativa e estética, surge, nesse contexto, como garantia do real imaginado em função do qual ganha corpo a possibilidade de organizar a memória prospectivamente.
Historicidade
Patrício Guzmán, autor de filmes como A Batalha do Chile (1973) e Salvador Allende (2004), disse um dia que o documentário é o álbum de família de um povo. Essa expressão, pela carga simbólica nela investida, justificaria só por si uma descriminação positiva: tomado à letra, o álbum de família promove a identidade de quem somos e, ao fazê-lo, estabelece pontes para uma visão actualizada da História. Numa época em que a lógica mediática reside no efémero, o documentário surge como um poderoso instrumento de preservação da memória ou, se preferirmos, como um lugar de reencontro dos homens com a sua condição e a sua circunstância. Todo o século XX pode, aliás, ser dado a conhecer através do documentário e todo o presente pode ser imaginado, reinterpretado ou simplesmente reconhecido através dele porque nele reside o potencial de utopia que, permitindo a revelação, gera conhecimento. Daí o interesse renovado em torno das suas múltiplas manifestações, sobretudo agora, quando devido a uma crise global cujo epicentro económico-financeiro está iniludivelmente ligado às indústrias da evasão, ganha força, no plano simbólico, a reclamação de um regresso ao real.
O entendimento deste regresso ao real – num contexto em que o discurso televisivo ideologicamente dominante vacila e se mostra, de um modo geral, incapaz de dar resposta aos problemas do nosso tempo – exige a presença da historicidade articulada com a abordagem sumária de uma antinomia central da teoria do documentário que é aquela que releva do campo da arte, por um lado, e da esfera da reportagem, por outro. Seguindo este método, o qual não dispensa algumas derivas tidas por esclarecedoras, o documentário será sempre entendido enquanto argumento sobre o mundo histórico. E, como tal, parafraseando Chris Marker, ficará claro que, hoje mais do que nunca, para ser um lugar habitável, o mundo precisa de ser imaginado.
Para se entender este postulado devemos salientar, em primeiro lugar, que o confronto com a historicidade, ou seja situar o documentário no seu tempo, permite elucidar o movimento pendular em torno da retórica e da poética uma vez que recolhendo subsídios de cada época nos é permitido desenhar um quadro dinâmico a partir do qual melhor possa entender-se a relação com a actualidade, território, aliás, comum à reportagem, o que está longe de ser uma questão menor. Com efeito, os paradigmas do mundo das notícias sempre contribuíram para redefinir o quadro de expectativas dos receptores na sua relação simbólica com o real. Invocando Jean Thévenot, André Bazin, por exemplo, ao referir-se à génese do documentário fala do “filme de grande reportagem” e acrescenta como elemento importante dos critérios de verosimilhança o facto de a partir do final da II Guerra Mundial, com a disseminação dos media, o público exigir acreditar no que vê, uma vez que “a sua confiança é controlada por outros meios de informação: a rádio, o livro e a imprensa (Bazin: 1992)”. Esse processo, evidentemente, acentuou-se com a chegada da televisão.
Em segundo lugar é necessário admitir que do ponto de vista teórico há sempre a possibilidade de abordar a antinomia arte/ reportagem em função de dois enfoques distintos. Falando de arte, falamos de Cinema. Falando de reportagem, falamos de Jornalismo. Porém, quando hoje se fala do documentário, a cada passo nos defrontamos com uma rede de relações que rompe com as tentativas de sistematização exclusivamente centradas num ou noutro enfoque. Vejamos a seguinte deriva. Se, por absurdo, o cinema tivesse acabado antes do advento do som, tudo seria mais simples uma vez que a arte do cinema tinha atingido a plenitude com a conquista de uma linguagem exclusivamente visual e, por extensão, com a afirmação de um pensamento puramente visual. Assim não sucedeu. A partir do advento do som, a palavra, no dizer de René Clair, ameaçou o cinema de se transformar num gramofone com imagens. Cedo algo de semelhante se verificou em newsreels como March of Time influenciando figuras tutelares do documentário como John Grierson que em diferentes ocasiões disse uma coisa e o seu contrário. Tanto falou no tratamento criativo da actualidade quanto afirmou que, desde o início, o movimento documentarista foi essencialmente anti-estético. Disse mais: a ideia de documentário, tal como ele tinha sido levado a pensá-la, não era o produto de nenhuma escola de cinema, mas do pensamento da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago nos anos 20 do século passado. Por aqui logo se entende o valor instrumental da historicidade, pelo que todo o documentarista deveria ter noção quer da História do documentário quer do debate teórico dela indissociável.
Como se sabe, o uso da palavra documentário para qualificar um determinado tipo de filme é atribuído a John Grierson que, em 1926, se referiu a Moana (1926) de Robert Flaherty como tendo valor documental. Havendo indícios de Edward S. Curtis ter aludido ao filme documentário muito antes, por volta de 1915, quando fez The Land of the War Canoes (1914), o qual, aliás, antecipa muitos dos procedimentos posteriores de Flaherty em Nanook of the North (1922), a verdade é que foi a famosa expressão tratamento criativo da actualidade utilizada por Grierson, em 1927, que daí em diante enquadrou os primeiros debates sobre o documentário.
O cinema documental, contudo, é anterior a essa formulação e aparece amiúde associado a intuitos informativos e de propaganda como no caso de Dziga Vertov, o responsável pelos jornais cinematográficos soviéticos após a revolução bolchevique. As suas teses do Cine-Olho deram corpo a narrativas que associam o registo da actualidade a uma experimentação da qual alguns números de Kino-Pravda constituem exemplos. Mas, Kino-Pravda o que é? Cinema? Jornalismo? Na verdade, o Cine-Olho é tanto uma teoria como uma prática e assenta no pressuposto de que o cinema permite ver “outra coisa”, ou seja, é encarado como uma possibilidade de intervenção sobre o real de modo a interromper a naturalidade do fluxo das suas aparências e a revelar-lhe os movimentos de fundo. Kino-Pravda, sendo um jornal, obedecia a esses mesmos propósitos. O Homem da Câmara de Filmar (1929) é o pináculo dessa utopia radical.
E o que é Nanook of the North? Enquanto filme histórico-naturalista oferece ao espectador a ilusão de estar perante os acontecimentos narrados, os quais passam a habitar o seu imaginário como prova de verdade. Construído a partir de proposições lógicas, Nanook induz uma leitura única da história que conta, a qual resulta, naturalmente, de um ponto de vista correspondente à representação individual de um modo de ver. Flaherty, o mais improvável dos repórteres, visto que nele tudo é encenação, ainda assim faz “reportagem”, na medida em que reportar é dar conta de algo ou de alguém, neste caso da vida de Nanook, enquanto símbolo da vida dos esquimós,
Metamorfoses do real – Arte e Reportagem
Em qualquer dos casos coloca-se, naturalmente, o problema da narrativa. Toda a narrativa é construção, e toda a construção é encenação. O documentário, exigindo a organização dos seus signos, é uma construção. Tratar-se-á, ainda assim, de uma construção diferente daquela que serve a reportagem e, sobretudo a ficção, com a qual, aliás, o documentário divide áreas de luz e sombra. Por exemplo, o documentário também dispõe de cenários. Serão cenários naturais dispensando, portanto, a complexidade de elaboração associada ao cinema de estúdio, mas nem por isso deixam de ser cenários e de cumprir uma função enquanto tal. O documentário, em princípio, prescinde de actores profissionais recolhendo da autenticidade das suas personagens uma das suas razões de ser. Mas, tudo se complica quando nos interrogamos sobre o que é o actor e nos deparamos com comportamentos da vida real, os quais, devido à presença de uma câmara, adquirem evidências ou promovem ocultações que de outro modo não se manifestariam. Os exemplos poderiam prosseguir porventura indeterminadamente – um sinal da vitalidade do documentário de cinema.
Seguindo esta linha de argumentação, num discurso habitualmente conotado com expressões como verdade, realidade e objectividade todos os paradoxos são possíveis. Da fase da pesquisa à ética da rodagem, da técnica da entrevista à estética da montagem, qualquer que seja o domínio sob observação, é sempre inevitável deparar com um conjunto complexo de operações a partir do qual se opera a metamorfose do real em realidade.
Sucede algo de semelhante no campo do jornalismo. Se por real entendermos a vida em estado bruto, digamos assim, tal qual se passa à nossa volta, por realidade entenderemos um particular entendimento desse real em função dos códigos interpretativos pertencentes a uma determinada linguagem. É, pois, a linguagem que permite operar essa metamorfose. E é nesse sentido, também, que os acontecimentos deixam de pertencer ao domínio do real para entrarem no domínio da realidade, a partir do momento, portanto, em que se transformam em notícias. As notícias, pertencendo ao universo dos signos e dos valores simbólicos, contribuem para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Como tal, essa imagem é uma realidade construída e não, como pretendem os defensores da objectividade pura, nem um espelho do mundo, nem uma janela para o mundo. Diz Gomis que “nem o espelho nem a janela, enquanto metáforas, têm em linha de conta a mediação da linguagem que é fundamental para o entendimento dos meios de comunicação (Gomis: 1991)”. Explicar como funciona o jornalismo será, então, explicar como se forma o presente de uma sociedade.
Esse presente interpretado em nome dos critérios jornalísticos é, todavia, difuso e comporta construções informativas a vários níveis. Num primeiro momento, as notícias cumprem uma função de actualização de conhecimentos de modo a dotar os destinatários de informações úteis ao seu relacionamento imediato com o mundo. Esse conhecimento, porém, só ganha uma ressonância prospectiva a partir do momento em que se amplia e dá lugar à reflexão e à interpretação através do recurso a outros géneros jornalísticos. É o caso, por exemplo, do comentário, o qual, mais do que a notícia permite configurar a dinâmica da actualidade, projectando-a para além do presente imediato. Na verdade, o presente é o que se comenta e as notícias são tanto mais notícias quanto mais perduram, ou seja, quanto mais são comentadas.
Também o documentário interpreta e comenta o real. Quando Paul Rotha afirma que ele deve reflectir sobre os problemas do presente, no fundo, está a dizer isso mesmo. Poder-se-ia, portanto, suscitar a questão de saber até que ponto é legítimo ao documentário recorrer no todo ou em parte à ordem reguladora prescrita pelo jornalismo. Grierson, ao fazer a distinção de duas categorias de filmes vinculados ao real, a superior e a inferior, de algum modo parece rejeitar essa possibilidade. Para ele o documentário é exclusivo da primeira categoria visto que os filmes incluídos na categoria inferior “não dramatizam, limitando-se à mera descrição ou exposição de factos”. Contudo, o mesmo Grierson que aqui se coloca do lado da poética não enjeitou ser consultor em Londres de March of Time e produziu, durante a guerra, no Canadá, World in Action, um jornal de actualidades cinematográficas. Aliás, parte da produção do movimento documentarista britânico foi essencialmente jornalística e tal aconteceu tanto por razões de ordem tecnológica quanto de ordem política e de propaganda.
Será então indiferente que as coisas se passem de uma maneira ou de outra? Muito pelo contrário. Vivendo em permanente confronto com a historicidade o documentário pode ser encarado como uma série de transformações. À semelhança das notícias contribui para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Tal como o comentário e a crónica adquire um valor monumental para o futuro mas, na medida em que pode ser utilizado recorrentemente e autoriza leituras das quais não se ausenta, antes se afirma, o prazer do texto, eleva-se a um outro patamar requerente da imaginação criadora indissociável da capacidade de construir argumentos sobre o mundo histórico e, como tal, exigindo a singularidade do ponto de vista. São esses os documentários que permitem ler o mundo justamente porque nos dão a ver um real imaginado. Podemos concordar ou discordar. Mas sabemos ao que vamos porque no contrato celebrado entre autor e destinatário há uma cláusula de segurança segundo a qual a verdade transportada para o ecrã é a verdade do autor. A nossa será outra, ou não. Assim é o documentário de cinema: Être et Avoir de Philibert, Nuit et Brouillard de Resnais, Basic Training de Wiseman, Le Joli Mais de Marker, Vacances du Cinéaste de Van Der Keuken, Cabra Marcado para Morrer de Coutinho, Les Plages de Agnés de Varda, Phillips Radio de Joris Ivens, Porto da Minha Infância de Oliveira, Diary for Timothy de Jennings e tantos, tantos outros, todos eles portadores de um olhar fundador simultaneamente agente de mudança criativa e garante de uma memória sem a qual o homem prescinde do entendimento do presente e mergulha na deriva de um quotidiano sem futuro.
Televisão
O corpo a corpo com o real inscreve-se, no entanto, num campo discursivo mais vasto sobre o qual é igualmente necessário reflectir posto que resulta de múltiplas declinações. Voltemos então à televisão e à controvérsia em seu redor. Há quem, como Mander, discuta a possibilidade de haver vida inteligente na televisão, como há quem, como Popper e Condry, a considere como uma ameaça para a democracia. Há inúmeros textos relevando os aspectos manipulatórios do discurso televisivo, estabelecendo-se, nomeadamente, uma antinomia entre a razão e a emoção, sendo esta última encarada como indutora de fenómenos de hipnose, entorpecimento e fascinação. Muitos desses textos partem até de premissas e querelas aparentemente desligadas da matéria que nos ocupa, mas acabam por condicionar a sua abordagem. Por exemplo, o contraditório eventualmente existente entre a Imprensa e a Televisão. A racionalidade estaria no lugar da palavra escrita e do pensamento lógico a ela associado; a emoção, a sensação e a irracionalidade no lugar das imagens electrónicas.
Terrível anátema, prognóstico sombrio: a sociedade da imagem, alertaram os pessimistas, incorre no risco de promover um novo totalitarismo. McLuhan desvalorizou a questão sublinhando a incompatibilidade do pensamento linear da Galáxia de Gutenberg com a nova ordem sensorial da Galáxia de Marconi: é como olhar o mundo pelo retrovisor, disse ele. Em contrapartida, Umberto Eco, reflectindo sobre a cultura de massas, advertiu que o futuro da democracia passava pela capacidade de transformar a linguagem da imagem num estímulo à reflexão e não num convite à hipnose. Uma controvérsia de contornos semelhantes ocorre muitas vezes quando se opõe cinema e televisão: a razão, a revelação, a arte, do lado do cinema; a confusão, a vulgaridade, o lixo, do lado da televisão. Quem não se lembra do célebre aforismo de Godard: o cinema é a memória, a televisão o esquecimento. Perguntar-se-á: mas que cinema e que televisão? Não iremos por aí, mas vamos por partes.
A televisão teve um impacto indiscutível sobre o documentário a ponto de no Reino Unido estudos académicos terem identificado dezenas de tipos de “documentários de televisão”, cujo denominador comum seria a existência de um qualquer vínculo ao real. A favor desta proliferação surgiram argumentos relevando a bondade de soluções que teriam permitido encontrar um ponto de equilíbrio face à controvérsia da identificação das narrativas, de modo a promover, dentro de parâmetros aceitáveis, a convivência e transversalidade dos diferentes modos de significar. Contra esta leitura optimista e, porventura, não inteiramente desinteressada, poder-se-ia invocar o facto de muitas dessas abordagens pouco ou nada terem em comum com a tradição do filme documentário, nem sequer da tradição do melhor documentário jornalístico de televisão, resultando simplesmente de meras estratégias casuísticas dos operadores competindo por audiências.
Em todo o caso, parece evidente que a televisão, pelo seu imediatismo e alegadamente devido à sua natureza, encontrou no jornalismo a expressão aparentemente mais ajustada ao seu modo peculiar de dar a ver o mundo. Por essa razão, as rotinas produtivas da informação televisiva, em particular da reportagem, afirmaram-se de um modo gradual como elementos legitimadores de um efeito de apropriação do filme documentário, impondo formatos, condicionando o tempo e o modo de dizer e remetendo para a palavra o lugar central de instância reguladora do sentido. Prevalecendo o enunciado do texto sobre a lógica das imagens, abriu-se espaço ao oposto do olhar documentário fundado sobre o primado do sistema de significação da imagem cinematográfica.
Explicitar e compreender este tipo de contaminação exige uma nota adicional e um ou outro comentário. Por via de regra, a reportagem é previsível: texto off, entrevista, repórter em campo assinalando a sua “presença no local”. Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal e insere-se numa perspectiva de go between, embora este jornalista mensageiro, tendo capacidade de representação, possa alcançar notoriedade e tornar-se uma espécie de oráculo seja do que for como, ironicamente, demonstrou Alain Woodrow. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informações variadas passando ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende a tratar os assuntos, por mais sérios que sejam, como fait divers. E fá-lo sem especial preocupação de ordem sígnica ou sintagmática. De acordo com Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência num medium popular como a televisão obriga o jornalismo a servir dois donos: “info” and “tainment”.
Naturalmente, mesmo na televisão comercial generalista, há gradações no modo como se encara este fenómeno. A fórmula existe mas não quer dizer que seja igualmente aplicada em todas as estações. Tão pouco se pode concluir que os formatos híbridos da televisão sejam necessariamente negativos do ponto de vista do alargamento da esfera pública. E quanto aos canais especializados de notícias, de que a CNN foi pioneira, há até um conjunto de prescrições que a globalização veio legitimar e que basicamente consiste em apresentar as notícias dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama, expor os assuntos de forma acessível e compreensível, mas sem exceder a duração de 30 minutos e, tendo embora consciência de que todos os shows de notícias se assemelham, procurar introduzir marcas de diferenciação.
Só que essas diferenças são ténues e dificilmente haverá abertura para sobressaltos criativos eventualmente perturbadores da percepção dos destinatários habituais. A fonte da confusão muito disseminada entre reportagem e documentário passa exactamente por aí, porque se criou um dispositivo estereotipado e rarefeito de representar o mundo através de uma linguagem relativamente arbitrária, ancorada num hibridismo formal oportunista que reclama para si, como elemento de legitimação, a objectividade jornalística. Por isso, para os pragmáticos programadores de televisão os documentários com autoria são quase sempre considerados disfuncionais e, como tal, o melhor é produzir algo de vagamente semelhante sob a responsabilidade de produtores supostamente especialistas no conhecimento e gosto do público ou de jornalistas com notoriedade, também eles, supostamente especialistas em garantir audiências. Ou seja, os documentários devem encarados como programas.
Provavelmente, caso essa tendência dos programadores fosse contrariada, abrir-se-ia o caminho a uma maior e mais interessante variedade de leituras sobre o mundo histórico o que, no caso da televisão de serviço público poderia corresponder a uma nova hipótese legitimadora: a diversificação, permitindo o acesso do público a representações do real à margem dos estereótipos informativos dominantes, seria um passo em frente no domínio do conhecimento dos mecanismos da construção da realidade com benefício para o exercício da cidadania. Tal, porém, com excepção de experiências interessantes na televisão segmentada, dificilmente acontecerá. A televisão não serve para oferecer programas ao público, mas para oferecer público aos anunciantes. Quem o disse foi Berlusconi.
Por estas e outras razões, os documentários de televisão – ao contrário do filme documentário sobre o qual há trabalho teórico relevante – continuam a ser objectos mal identificados, ambíguos e até, eventualmente, suspeitos. É difícil estabelecer-lhes os contornos e problemático atribuir-lhes um estatuto de credibilidade em nome da regularidade de uma produção que faz da audiência o seu referencial estruturador. No estádio actual do seu relacionamento com o real o actual modelo de televisão parece, pois, ter chegado a um ponto limite: o mundo é cada vez mais a televisão e a televisão a espuma dos dias.
Dizia o jornalista e documentarista Danny Schechter sobre os serviços informativos das principais networks americanas: the more you see, the less you know. Outros, como Chomsky, simplesmente compararam os grandes conglomerados de media a gigantescas centrais de propaganda. E para James McEnteer o efeito Fox News sobre as grandes corporações produtoras de notícias de televisão na cobertura da guerra do Iraque acabou por desacreditar o sistema no seu conjunto e abrir as portas para uma entrada em cena com um vigor sem precedentes do documentário político. Depois de fazer referência às somas astronómicas conseguidas na bilheteira pelos filmes de Michael Moore Bowling for Columbine e Fahrenheit 9/11 – este último fez 120 milhões de dólares, só nos Estados Unidos, durante o primeiro mês de exibição –, McEnteer lembra que oito dos dez documentários mais rentáveis de sempre nos Estados Unidos foram realizados a partir do ano 2002, e avança a seguinte explicação:
“Há na América uma grande necessidade de compreender o que, na realidade, está a acontecer. Estes filmes vêm dar resposta a essa necessidade. E essa necessidade é tanto mais sentida quanto maior se tornou a concentração da propriedade dos media noticiosos, com as consequências daí decorrentes em termos corporativos e de trivialização das notícias com o afunilamento do espectro informativo. Em vez de inovação e investigação, há repetição e imitação (McEnteer: 2006)”.
Um argumento sobre o mundo histórico
Na sua vertente mais elaborada, ou seja a da filiação cinematográfica, o documentário assenta no reconhecimento de um conjunto de valores de referência cujas premissas podem ser assim resumidas de acordo com o pensamento de Miriam Bratu Hansen:
“O cinema foi o mais singular e expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade foram reflectidos, rejeitados ou negados, transformados ou negociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise pela qual a modernidade se deu a ver, tansformando-se, ao mesmo tempo, num verdadeiro discurso social, através do qual uma grande variedade de grupos humanos se procurou ajustar ao impacto traumático da modernização (Grilo: 2006)”.
Os mecanismos de significação e de construção da narrativa obedecem, naturalmente, a um movimento pendular que oscila em busca da forma mais justa, sendo por isso objecto de constantes mudanças de rumo ditadas quer pela contingência e pelos imprevistos da Esta formulação remete para o álbum de família de Patrício Guzmán. Obviamente, ao filme documentário também não são estranhas as noções de verdade e objectividade, uma e outra fazendo parte do contrato que se estabelece não apenas com o espectador, mas também no complexo processo de negociação envolvendo o cineasta, as suas personagens e uma multiplicidade de instituições. Neste caso, porém, ao exprimir o seu ponto de vista o autor não prescinde de pôr em cena situações e personagens em função da subjectividade decorrente do seu modo peculiar de ler o mundo, naturalmente, escorado em compromissos que são, também, tanto de natureza ética quanto estética. O documentarista constrói a narrativa que entende dever construir e não narrativas pensadas exclusivamente para responder de forma mais ou menos casuística àquilo que se supõe ser o gosto da audiência. Ao proceder desse modo está, de resto, a mostrar o respeito que ao público é devido. Ele diz: eu penso isto, mas deixa implicitamente uma outra pergunta: e vocês?rodagem, quer no processo de montagem onde ocorre uma espécie de revisitação do olhar a partir da qual a estrutura ganha autonomia a ponto de em boa medida se determinar a si própria, impondo determinadas soluções. Como diria um grande pintor português, Nadir Afonso, num filme que fiz sobre ele, as formas tornam- se exigentes. Nesse sentido, a excelência do discurso será um critério superior de exigência. Os argumentos sobre o mundo histórico estão, portanto, sujeitos à intervenção permanente da imaginação criadora. Não são textos redigidos para depois serem meramente ilustrados como sucede na reportagem televisiva.
Em suma, o enorme potencial do filme documentário (e também do filme de não-ficção, para utilizar uma expressão de Plantinga) como forma de negociar valores, veicular informação e dar-nos a conhecer o mundo histórico faz dele, assumidamente,
“(...) um veículo de verdades e enganos, de registo e manipulação, de equilíbrios e ideias e pré-concebidas, de arte e técnica mecânica, de retórica e informação imediata. Os filmes de não-ficção são representações complexas com uma infinita diversidade e multiplicidade de usos. Tal é a sua complexidade retórica e pragmática que para nos aproximarmos deles não basta uma abordagem meramente teórica: a sua compreensão exige a atitude crítica e o recurso à história (Plantinga: 1997)”.
Concluindo, aceitar a inevitabilidade das contradições é um primeiro passo para pensar o documentário em profundidade, o que implica não fechar a porta a lógicas de enunciação criativas sustentadas por gramáticas particulares e em especial pela ordem do cinema. Por isso, neste pujante regresso ao real no início do século XXI é de elementar prudência mais a abertura à diversidade do que a defesa de pontos de vista sistematicamente reiterados numa atitude de resistência. Será esta a posição mais exigente e, também, a mais difícil, porque se obriga a questionar, por um lado, aquilo que na tradição do cinema cristalizou em dogma – uma história que ficará para outra altura – e, por outro, a combater a contaminação sem regras nem princípios de dispositivos televisivos cujos resultados estão à vista e se rejeitam.
Bibliografia
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Curtin, Michael – Redeeming the Wasteland (Television Documentary and Cold War Politics), Rutgers University Press, New Brunswick, New Jersey, 1995
Eco, Umberto - Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa, 1991
Gomis, Lorenzo – Teoria del Periodismo, Ediciones Paidos, Barcelona, 1991
Grilo, João Mário, O Homem Imaginado (cinema, acção, pensamento), Livros Horizonte, Lisboa, 2006
Kriwaczek, Paul – Documentary For The Small Screen, Focal Press, Oxford, 1997
Mander, Jerry – Quatro argumentos para acabar com a televisão, Antígona, Lisboa, 1999.
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Plantinga, Carl R. – Rhetoric and Representation in Nonfiction Film, Cambridge University Press, Cambridge, 1997
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Rosteck, Thomas – See it Now Confronts McCarthysm (Television Documentary and the Politics of Representation), The University of Alabama Press, Tuscalosa and London, 1994
Saunders, Dave – Direct Cinema (Observational Documentary and the Politics of the Sixties), Wallflower Press, London , 2007
Woodrow, Alain – Informação, Manipulação, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991
Porto, 16 de Outubro de 2009
Jorge Campos
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Jorge Campos
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"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."
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Out of the Past
o filme é Out of the Past (1947) de jacques tourneur. ela é a fabulosa jane greer, femme fatale do film noir. uma das tais por quem o rapaz perde a cabeça até descobrir que ela, afinal, não é indefesa e está perfeitamente à vontade com um 38 nas mãos. enfim, perigo. gosto.
Um Fascinante Jogo de Máscaras
Sorge, de um fôlego: combate pelo exército imperial alemão na I Guerra Mundial, fica gravemente ferido, é condecorado com uma Cruz de Guerra, torna-se marxista e adere ao Partido Comunista na Alemanha, faz um doutoramento em Ciência Política, entra para o Comintern, é enviado para instigar a Revolução em diversos países, consegue infiltrar-se e obter o cartão de membro do partido nazi em Berlim, vai viver para Moscovo, é enviado pela União Soviética para Xangai onde cria uma tremenda rede de espionagem, segue depois para o Japão, fazendo-se passar por especialista dos assuntos da região, torna-se íntimo do embaixador do III Reich em Tóquio - e amante da sua mulher - tem acesso a informação ultra secreta que durante anos transmite ao Centro, avisa Estaline da Operação Barbarossa, nome de código da invasão da URSS pela Wehrmacht e seus aliados do Eixo, em suma, um tipo com uma vida tão assombrosa tinha de ficar para a História como o mais formidável espião de todos os tempos. Richard Sorge ou Ramsey, o mais conhecido dos seus nomes de código, tinha, obviamente, características pessoais singularíssimas: bebedor incorrigível, amante insaciável, viciado na velocidade das suas motos e automóveis, orador brilhante, intelectual de altíssima craveira, jornalista respeitado, indefectível comunista: sentia-se na vertigem do perigo como peixe na água. de tal modo que no jogo do gato e do rato iniciado com os processos de Moscovo, na sequência dos quais foram executados sucessivamente seis diretores do seu Comando - os seus superiores - Sorge conseguiu escapar à purga. não escapou foi à polícia japonesa. preso no final de 1941, seria enforcado em 1944. pensou até ao fim que a URRS acabaria por resgatá-lo. nunca soube, embora suspeitasse, que Estaline o considerava um agente duplo, mandando para o cesto do lixo as suas informações. subiu ao patíbulo com vivas à Revolução. foi reabilitado após o XX Congresso do PCUS e considerado herói da União Soviética. a história de Sorge tem sido contada de muitas maneiras ao longo dos anos. em ensaios, no cinema, na literatura. este livro de Owem Matthews, porém, recolhe informações só há pouco tornadas públicas, designadamente dos arquivos da polícia secreta russa. por vezes, apresenta dados contraditórios. eu diria que, tratando-se de espionagem, isso é natural. vale a pena lê-lo pelo que revela sobre os meandros da política, sobretudo agora quando a invasão da Ucrânia é representada de modo simplificadamente maniqueísta. já agora, este leitor leu muito sobre espiões. adora o tema. o que de mais fascinante encontrou neste livro foi o jogo de máscaras, sempre uma chave para ler a guerra e o mundo.
Eu NÃO Sou Tudo o Que Eu Quero Ser (2024) de Klára Tasovská
podia ter sido um grande filme. contudo, a meu ver, apesar da destreza da cineasta Klára Tasovská, faz passar apenas o que é literal, sem deixar espaço à imaginação. o documentário retrata a vida da fotógrafa Libuše Jarcovjáková. utilizando exclusivamente arquivos - as fotos e o diário da biografada, cujos excertos são lidos por ela própria - Tasovská serve-se de uma banda-som impositiva, por vezes, ensurdecedora, de modo a criar uma atmosfera de imersão, extremamente sincopada. as fotos, regra geral, são excelentes, todavia, sem que haja tempo para nelas prolongar o olhar. é esse o estilo do filme, uma torrente de imagens organizadas cronologicamente em função dos diferentes episódios da vida de Libuše Jarcovjáková, alguém que utiliza a máquina fotográfica como ferramenta de auto conhecimento. perante as suas fotos, o nome que imediatamente ocorre é, evidentemente, o de Nan Golding. de Praga a Tóquio, de Tóquio a Berlim, tudo é mostrado em vertigem. no fim, espremido, não fica muito para imaginar. há um número significativo de cineastas-fotógrafos ou fotógrafos-cineastas, como se queira, que experimentaram fazer cinema com a imagem fixa. só um exemplo, veja-se Agnés Varda, por exemplo, em Salut les Cubains (1963), cuja vertente poética respira com naturalidade ao longo de todo o filme. tratando-se de cinema de arte e ensaio, é isso que se almeja. de qualquer modo, apesar das reservas, é ver o filme. até porque esta é apenas a minha opinião.
Soudtrack to a Coup d' Etat (2024)
Vi agora este Soudtrack to a Coup d' Etat (2024) do belga Johan Grimonprez no Porto/Post/Doc. é excepcional. vencedor do Festival de Sundance, não é de esperar que venha a ganhar muitos mais prémios. por várias razões, algumas formais, digamos assim, outras de foro político. quanto às primeiras, prendem-se com uma certa maneira, melancólica e conformista, de entender o cinema, e por aí me fico. as outras resultam do incómodo de assistir durante 150 minutos a um bisturi implacável, manejado com rigor e destreza, a dissecar o golpe do ocidente que levou ao assassínio de Patrice Lumumba, eleito democraticamente no Congo. corria o ano de 1960. com os americanos na linha da frente e o seráfico rei Balduíno da Bélgica logo a seguir, os contornos da conspiração, dados a ver em função de aturado trabalho de pesquisa, quer de informação quer de imagens, vão permitindo compor o retrato sinistro dos fautores da teia da morte. acresce que, nesse ano de 1960, o movimento cívico dos negros americanos avançava caudalosamente, bem como a música de Jazz que, de forma extremamente original, serve de trilha sonoro ao filme. acrescento: este filme é Jazz. pois, essa música, mesmo que os seus intérpretes disso não tivessem consciência, também era utilizada pela frente cultural da CIA para demonstrar a superioridade americana face à cultura soviética. deixo estas notas por aqui, sem prejuízo de texto mais alargado, concluindo do seguinte modo: Patrice Lumumba foi um homem extraordinário; é claro que o golpe no Congo é indissociável da suas riquezas minerais.
Hannah Arendt - uma biografia
eis um livro muito interessante, uma biografia de Hannah Arendt da autoria de Samantha Rose Hill. pouco conhecida em Portugal, mas reputada investigadora nos Estados Unidos, Hill tem ampla obra publicada e é membro quer do Hannah Arendt Center for Politics and Humanities quer do Brooklyn Institute for Social Research. li este seu livro faz algum tempo. resultante de aturada pesquisa e profundo conhecimento, não só dá conta da vida daquela que é uma importante pensadora política do século XX, mas também fornece a chave para conhecer a evolução do seu pensamento. discípula de Heidegger, com quem teve uma longa e, por vezes, tumultuosa relação, fez um doutoramento sobre Santo Agostinho supervisionado por Karl Jaspers, escreveu abundantemente sobre o totalitarismo e sobre o amor pelo mundo. tendo deixado a Alemanha do III Reich, acabou por se refugiar nos Estados Unidos onde viveu a maior parte da vida. uma das suas obras que maior controvérsia gerou foi Eichmann em Jerusalém. Hanna Harendt assistiu ao julgamento do criminoso nazi e, em função do que viu e ouviu, desenvolveu a sua famosa e extremamente perturbadora ideia sobre a banalidade do mal. essa a razão pela qual me lembrei deste livro. é que, olhando em volta, assistimos a prodigiosas metamorfoses: nazis transformados em democratas, fanáticos religiosos em santos de amenas tolerâncias, fascistas em combatentes da liberdade, todos pelo “nosso modo de vida.” Hanna Arendt é muito actual: ajuda-nos a decifrar este tempo, que é um autêntico ensaio sobre a cegueira.
A verdade é de papel
eis um belo livro. acaba de sair e tem diversos ensaios em torno da figura desse português singular que foi o poeta Tiago Veiga. grato a Mário Cláudio por tê-lo dado a conhecer através da fascinante biografia que dele escreveu. grato a quem colaborou neste A Verdade é de Papel permitindo, desse modo, entrar mais a fundo no enigma do homem e do artista. já o li e muito aprendi. o livro acolhe um modesto artigo meu a propósito do documentário que fiz sobre Mário Cláudio. ao José Vieira, que esteve ao leme desta estupenda edição, parabéns!
Semeador de palavras
Semeador de Palavras é um livro que recupera as entrevistas de José Afonso dadas entre 1967 e 1987, duas delas publicadas a título póstumo. na companhia de Ana Ribeiro e Paulo Encarnação, da Associação José Afonso, coube-me apresentá-lo. foi uma honra. desde logo deve ser relevado o extraordinário trabalho de pesquisa e compilação levado a cabo, bem como a capa de José Santa Bárbara, autor de 9 capas de discos de Zeca Afonso, e o grafismo de Lígia Pinto. nas entrevistas, muito diversificadas, há assinatura de alguns dos grandes nomes da imprensa portuguesa. há, ainda, um texto da AJA e um prefácio de Viriato Teles. ler o livro, organizado de forma cronológica, é como ver um filme. o filme de um período de 20 anos do Portugal contemporâneo através do olhar singularíssimo de alguém que se serviu da palavra e da música como ninguém. sempre na primeira pessoa, com contradições, alegrias e frustrações: a luta antifascista, o júbilo da Liberdade, a euforia da Revolução, o esvaziamento do Poder Popular, a vitória do extremo-centro, horrível, vassalo do neoliberalismo. Semeador de Palavras é um título feliz. Zeca Afonso deitou muitas sementes à terra. de tão poderosas, as suas cantigas são intemporais. tendo dúvidas sobre como chegar ao povo pelo trabalho de criação, sempre foi dizendo: "Acho que o experimentalismo é que está na base de uma atitude progressista. Aquilo que é académico, na minha opinião, é de direita; aquilo que é criativo, lúdico, anti-hierático, é de esquerda."
A zona de interesse
Houve um tempo em que me foi relativamente frequente ver o mesmo filme duas vezes na mesma semana, embora raramente em dias seguidos. depois, o hábito foi-se diluindo, não sei se por não encontrar cinema que o justifique ou, simplesmente, porque a inexorável prova do tempo já não me permite reconhecê-lo. daí ter ficado atónito quando aqui há uns dias dei comigo a ver este Zona de Interesse de Jonathan Glazer duas vezes seguidas. compulsivamente. da primeira, saí de tal forma perturbado que não consegui pregar olho. da segunda, percebi porquê e o porquê não cabe em meia dúzia de linhas. em todo o caso, enquanto vou escrevendo um texto de reflexão para o meu blogue, adianto o seguinte. o filme anda à volta de Rudolph Höss, o SS chefe de Auschwitz, e da sua família. vivem uma vida banal numa moradia paredes meias com o campo de concentração. essa banalidade é arrepiante. Zona de Interesse ganhou um Oscar para o melhor filme internacional e, na sequência do discurso de Glazer na cerimónia da Academia, estalou a polémica. o cineasta, que, aliás, é judeu, aludiu à situação em Gaza, em certa medida estabelecendo um paralelo com o holocausto. dito isto, esteticamente o filme é de uma eficácia como há muito não via. nele, pouco é explícito, move-se no labirinto dos interditos, adopta uma estratégia de suspensão. não nomeia os monstros, mas fá-los sentir presentes. essa a razão pela qual, em rigor, não é um filme sobre o criminoso nazi que exterminou mais de um milhão pessoas em Auschwitz. é sobre as ameaças que pairam sobre o nosso tempo. percebi isso quando o vi pela segunda vez. aterrador.
Les Misérables de Ladj Ly
há neste filme um momento arrepiante. não tem violência explícita, sangue, cargas policiais, tiros ou lutas de gangues. aliás, não há nele vestígio da presença física de um ser humano. trata-se da imagem feita por um drone das colmeias de betão a perder de vista na periferia de Paris onde habitam dezenas de milhar de pessoas - os outros, os de pele escura, os de rituais estranhos - a quem são assacadas responsabilidades pelos males da sociedade. por sinal, a mesma sociedade que dizendo-se inclusiva expulsa os pobres e prefere vê-los longe porque olha para eles como uma ameaça. Les Misérables (2019) de Ladj Ly é um sinal dos tempos, explica sem retórica moralista a razão pela qual as sucessivas cedências à extrema-direita - a França sabe bem o que isso é - acabam por normalizar o racismo e a xenofobia criando gigantescos conglomerados de excluídos onde as circunstâncias promovem a educação de crianças e jovens para a revolta. se não viram, vejam. vale a pena. e se quiserem um quadro mais completo podem recuar um pouco no tempo e ver ou rever O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz. é fácil encontrar estes filmes nas múltiplas plataformas disponíveis.
Woody Allen
farto de ler a desgraça dos dias e, para mais, com um dia de chuva, fui tratar de lavar os olhos e a alma. no cinema. não me lembro de alguma vez ter ficado desapontado com uma fita de woody allen, apesar de volta e meia o nome dele aparecer no obituário da crítica. evidentemente, gosto mais de uns filmes do que de outros, mas encontro sempre, mesmo nos de que gosto menos, alguma coisa que me faz pensar, tantas vezes a rir. este roma será menos articulado que o anterior sobre paris, mas tem cenas hilariantes e um agudíssimo sentido crítico e autocrítico. fiquei muito bem disposto. sucede que ao chegr a casa, deparo com um tipo de fato cinzento na televisão a insultar-me. sugere que sou preguiçoso e malandro porque sou culpado de viver num país onde há muitas cigarras e poucas formigas. como estou farto de ser insultado, apeteceu-me obrigá-lo a ir ver o woody allen. depois caí em mim: dificilmente o tipo entenderia. marquei então encontro na rua.
William S. Burroughs
"Happiness is a byproduct of function, purpose, and conflict; those who seek happiness for itself seek victory without war."
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
Dark Waters de Todd Haynes
Dark Waters (2019) de Todd Haynes, produzido e protagonizado por Mark Ruffolo, é um filme baseado na história real do advogado que transformou a vida da DuPont num inferno. a DuPont é uma mega corporação de produtos químicos que durante décadas, contando com cumplicidades ao mais alto nível, contaminou a água de populações em West Virginia, causando danos e doenças irreversíveis em pessoas e animais. Rob Billot, sendo um advogado ambiental das grandes corporações, acabou por se virar contra elas e tornar-se defensor das vítimas. o filme obedece a uma estrutura clássica em três actos e é conduzido com a segurança já revelada por Haynes em filmes anteriores. os ambientalistas não podem perdê-lo. e eu diria que os advogados também só ganhariam em vê-lo. no Trindade, claro.
William Hurt
William Hurt era um actor estupendo. tinha uma impressionante capacidade camaleónica que lhe permitia assumir as personagens mais complexas. um exemplo, talvez o mais óbvio, Kiss of the Spider Woman (1985). mas eu gosto especialmente dele como Tom Grunick, o anchorman de Broadcast News (1987) de James L. Brooks, filme no qual os dispositivos da televisão são expostos de forma implacável. Grunick (William Hurt) é o repórter medíocre, o semi-analfabeto bem parecido, que chega a pivot de um telejornal e se transforma em estrela. ele nem sequer é má pessoa, é apenas uma nulidade a quem o estrelado conferiu o chamado efeito de aura. o fillme faz agora 35 anos. o actor faleceu hoje aos 71. para mim, também será sempre uma espécie de Amigo de Alex.
Paraíso de Sérgio Tréfaut
peguei na filhota e fomos ao Trindade. foi a minha primeira sessão de cinema em sala pós-liberalização do confinamento. o filme era Paraíso (2021) do Sérgio Tréfaut, um documentário rodado no Rio de Janeiro que nos dá uma extraordinária visão do país assombroso que é o Brasil, apesar de Bolsonaro. na verdade, estamos perante uma obra sem stars, mas com estrelas que refulgem intensamente, sem efeitos especiais, antes com exemplar rigor narrativo, sem espetáculo pastilha elástica tipo cabecinha de vento, mas onde palpita o maior de todos os espetáculos que é o espetáculo da vida proporcionado pela inteligência ao serviço de um cinema do real. Tréfaut transforma os protagonistas, pessoas de idades acima dos 80 anos que se reunem no Palacete do Rio para cantar, em personagens de fascinante densidade dramática. não é um pequeno feito. tanto mais que o pano de fundo é a música popular, raiz de algo profundo, autêntico, a que costumamos chamar identidade. com tanta porcaria mais ou menos esperta que por aí vai, deste Paraíso sai-se de alma lavada. eu, pelo menos, saí.
Don't Look Up de Adam McKay
este é o filme de que toda a gente fala, Don't Look Up (2021) de Adam McKay. dois cientistas descobrem um cometa de 10km em rota de colisão com a Terra. o impacto, a verificar-se, significará a extinção da vida no planeta. há seis meses para tomar medidas que evitem a catástrofe. o que daqui decorre é uma comédia negra sobre o nosso tempo: governantes incompetentes, assessores irresponsáveis, negacionistas da ciência, desinformação, culto das celebridades, prioridade absoluta ao entretenimento, a lógica do efémero, a enxurrada de barrelas cerebrais despejadas nas redes sociais, multidões acéfalas e, sobretudo, a mercantilização de tudo em nome do lucro associado aos gurus dos conglomerados tecnológicos. em suma, os sintomas do colapso do capitalismo. com Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence nos principais papeis, o filme conta também com Meryl Streep - uma presidente dos Estados Unidos à imagem de Trump - e uma fantástica Cate Blanchett no papel de pivot de televisão que expõe sem rodeios a natureza da coisa. vejam que vale a pena. não sei se está em sala, mas está na Netflix. a ironia é dar connosco a rir da tragédia que nos rodeia
Washington D.C.
nunca fui grande admirador de gore vidal enquanto romancista, embora sempre tenha reconhecido nele o interesse bastante para, de quando em vez, pegar num dos seus livros. entre estes, os que mais me agradam são os relacionados com a história da américa, habitualmente designados como Narrativas do Império. Washington, D.C. é o primeiro desse ciclo. li-o há muitíssimos anos, porventura no final dos anos 60, suponho que em joanesburgo. há dias, passando por uma banca de rua com livros à venda, dei com esta tradução portuguesa. desembolsei os 5 euros pedidos e voltei a lê-lo. vidal trata da sacanagem política em Washington D.C. num período que vai da Grande Depressão ao pós-guerra. o tempo de roosevelt, portanto. lá estão os interesses, as virtudes públicas e os vícios privados, o conúbio com os media, as facadas nas costas, os milionários nos bastidores, as alianças espúrias. observo há muito a política americana. no fundo, toca-nos a todos. e ultimamente, tenho seguido com atenção a campanha de bernie sanders, um político fenomenal, visto por muitos como um quixote, acossado dentro do seu próprio partido, mas que, contra tudo e contra todos, está a empolgar a juventude e a mobilizar muita gente. creio que foi por isso que, instintivamente, senti vontade de reler Washington D.C. - uma história de sacanagem, como disse.
Violeta
Violeta do russo Kantemir Balagov é um dos tais filmes que podia ter sido grande, mas que acabou por ficar a meio do caminho. extraviou-se. é o que dá quando um cineasta fica deslumbrado com o próprio virtuosismo e não percebe que ou a alegoria e transcendência nascem da respiração do filme ou simplesmente não acontecem. ou seja, por mais fascinante que seja a fotografia e deslumbrante a composição - é o caso -, há um ponto a partir do qual não há regresso. é quando o dispositivo, tomando o lugar do pulsar da vida na tela, instala o formalismo enquanto fim em si mesmo. por isso, a dada altura, as cenas arrastam-se numa espécie de auto-comprazimento que resulta em punição gratuita do público. Violeta tem ainda outros problemas. por exemplo, quer o pós-guerra em Leninegrado, quer a obra na qual se inspira, A Guerra não Tem Rosto de Mulher de Svetlana Alexievich, são radicalmente subvertidos na visão de Balagov. é essa a função do artista, dir-se-á. e é. o problema é quando a visão do artista escolhe um ponto de partida com o qual o ponto de chegada nada tem a ver. mas, sim, vão ver o filme. tenho lido tais maravilhas a propósito que o mais certo é eu estar enganado.
Vem e Vê
encham-se de coragem e não percam este filme assombroso. coragem porque nunca viram nada de semelhante. magoa até ao limite do humano. não percam porque é imensamente belo, terrivelmente lúcido. se virem, vão querer voltar a ver. eu já vi algumas. a primeira - lembro-me bem porque foi uma experiência inesquecível - foi na única projecção do filme em sala no porto, há muitos anos, era ainda o carlos alberto um cinema.
Velimir Khlebnikov
este é o poeta Velimir Khlebnikov tal como o viu o pintor Mikhail Larionov. ambos mergulharam no turbilhão das vanguardas artísticas russas das primeiras décadas do século XX. o linguista Roman Jakobson considerava Khlebnikov o poeta mais importante do século XX. Khlebnikov, que, por sinal, teve uma vida desgraçada, foi a grande influência de Maiakovski. eu gosto de todos eles, reencontrados, agora, nas tarefas de pôr alguma ordem nos acumulados
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
Um quadro de kazimir malevich e um poema de velimir khlebnikov
Bem pouco me basta!
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
As Thouhg I Had Wings
este livrinho tem pouco mais de cem páginas. é uma escrita caótica, notas avulsas autobiográficas sobre uma vida tão caótica quanto o estilo desalinhado e, talvez por isso, dilacerante. Chet fala das suas relações desgraçadas com as mulheres, da marginalidade do junkie sempre em busca de drogas, das repetidas prisões, da vida precária em Itália, do tocar em clubes a troco de cachês miseráveis. diz alguma coisa sobre Gerry Mullingan, mas os apontamentos sobre Jazz são breves, meras anotações de passagem como se houvesse pressa em chegar a um outro lugar, vá lá saber-se qual. enquanto literatura, As Thouhg I Had Wings não vai a lado nenhum. no entanto, para quem conhece a música superlativa de Chet Baker, e sabendo que era nela que ele encontrava sentido e transcendência, o livro acaba por ser revelador. justamente por ser o outro lado, por a música estar ausente.
Um Passado Perfeito
sempre gostei da literatura policial. volta e meia ressuscito o chandler, o hammet e mais uns tantos de uma galeria de favoritos cujas personagens me revelam muito daquilo que somos e dos lugares, reais ou simbólicos, onde nos movemos. o cubano leonardo padura está entre os favoritos. ele e o seu mário conde, um polícia cujo percurso de vida poderia ter sido outro, mas que acabou enredado na teia da marginalidade de havana, essa cidade fascinante que tanto prometera, todavia, distante de concretizar os seus melhores sonhos. conde é um polícia que gostaria de ter sido escritor, um homem que cumpre as suas funções sabendo que pisa terreno minado, alguém que apesar do cepticismo olha em volta e não se detém, sem heroísmo, e sabendo, porventura, que no fim da linha estará ainda mais só. estive em cuba em meados dos anos 90. andei por toda a ilha e não apenas por havana e pelas praias. o livro terá sido escrito por essa altura. lê-lo de novo foi um pouco como voltar a esse tempo. gosto de padura. gosto de havana. e gosto de cuba.
Trumbo de Jay Roach
Dalton Trumbo foi um dos grandes argumentistas de Hollywood. filmes como Férias em Roma, Spartacus ou Exodus têm a sua assinatura. ou melhor, nem sempre tiveram a sua assinatura, embora fosse ele o autor dos argumentos. porquê? porque o seu nome fez parte da famosa lista negra elaborada pelos anti-comunistas da indústria cinematográfica, entre os quais se destacava John Wayne, um actor de quem sempre gostei nos westerns de John Ford, todavia, um safado reaccionário do piorio na vida real. portanto, trumbo escrevia argumentos para sobreviver, mas outros davam a cara e o nome por ele. o filme (2015) é interessante a vários títulos, pese embora a inevitável tendência, muito americana, de deixar no ar, no final, a reconciliação das partes. o famoso processo dos 10 de Hollywood - é disso que o filme fala - foi construído numa altura em que o FBI era controlado pela extrema-direita e uma parte significativa da população acreditava em tudo quanto pudesse alimentar a paranoia anti-comunista criada pelas narrativas mediáticas. Madeleine Albright, no seu último livro, publicado pouco antes de falecer - nessa altura, é bom lembrar, à frente da Administração estava Trump - classificou a "caça às bruxas" do senador McCarthy como uma acção fascista e alertou para exemplos de derivas totalitárias na Europa, nomeadamente na Hungria e na Polónia, algo com que a UE, durante anos a fio, andou a fazer de conta. Trumbo, o filme, utiliza com critério imagens de arquivo, é rigoroso nas reconstituições, eficaz nas articulações dramáticas e tem grandes interpretações. é um bom filme para fazer um intervalo na enxurrada de propaganda que por aí vai. na foto está o verdadeiro Trumbo.
O Evangelho Segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini
Jesus Cristo, aliás, Enrique Irazoqui, com Pier Paolo Pasolini num intervalo da rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). numa altura em que as plataformas de streaming e os canais generalistas de televisão impingem pastelões requentados ou novidades pop aberrantes sobre a morte e ressurreição de Cristo, o filme de Pasolini, no meu entendimento, continua a ser, de longe, o que mais justiça faz ao tempo da Páscoa. posteriormente dedicado ao Papa João XXIII, inteiramente rodado em cenários naturais e com actores amadores, O Evangelho Segundo São Mateus começou por ser recebido com severas reservas pelos meios católicos. na verdade, essa reservas chegaram à proscrição. contudo, 50 anos mais tarde, o Osservatore Romano, jornal oficioso do Vaticano, viria a considerá-lo o melhor alguma vez feito sobre Cristo. uma bela lição para os tempos que correm. Pasolini, como bem sabeis, era comunista e homossexual. percebe-se, assim, a razão pela qual houve críticos, na altura, que não se deram sequer ao trabalho de ver o filme antes de o exorcizar.
Their Finest
outro filme feito por uma mulher, Lone Scherfig. chama-se Their Finest (2016), em português Heróis da Nação, e dei com ele por mero acaso no streaming. fui ler algumas críticas. uma ou outra eram tão más que obviamente tive de o ver até porque o tema me interessa deveras. pois vi e diverti-me bastante. estamos em Londres em 1940, há bombardeamentos todas as noites e a produção de filmes passou a estar sob a tutela do ministério da guerra. Catrin Cole (Gemma Arterton, uma magnífica atriz) concorre a um lugar de guionista para dar um toque feminino à propaganda. ganha o concurso. "lamechices", segundo os homens com quem trabalha. o filme em preparação, no qual Catrin vai colaborar, deveria ser uma espécie de Potemkin britânico. concluído, não é nada do género, mas põe toda a gente a chorar. do que verdadeiramente gosto em Their Finest - título inteligentemente surripiado a Churchil - é do sentido de humor. o filme lança um oblíquo olhar feminino sobre o mundo do cinema, troça gentilmente do modo como as coisas são feitas, expõe as fragilidades masculinas, ridiculariza o cinema de estúdio americano, diverte-se ao colocar um documentarista a rodar um filme de ficção, enfim, de forma subtil, vira a ordem estabelecida de pernas para o ar. é um filme sobre outro filme a fazer que uma vez feito acabará por nada ter a ver com o filme que deveria ter sido um Potemkin. quem conhecer um pouco dos meandros do cinema britânico divertir-se-á a dobrar. quem não conhecer diverte-se na mesma. aliás, a realizadora, Lone Scherfig, até é dinamarquesa.
C A T E G O R I A S
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