Filmes documentais e o filme documentário são coisas distintas. Os primeiros reportam aos acontecimentos do quotidiano e, de um modo geral, não recriam a actualidade em função da imaginação criadora, mesmo quando neles se reconhece a qualidade expressiva de muitas imagens. O segundo, tendo pontos de contacto com os filmes documentais, visto estar igualmente vinculado ao real, requer outro tipo de abordagem porque, situando-se no campo da arte, exige a narratividade criativa. É certo que na história do documentário anterior ao advento do som não há um número muito significativo de filmes indiscutíveis. Mas, é igualmente verdade que onde esses filmes surgiram – Estados Unidos, França, Holanda, Alemanha e União Soviética, para citar os exemplos, porventura, mais evidentes – o cinema conheceu um desenvolvimento e uma expressão formal sem termo de comparação com o caso português.
No contexto dessas cinematografias avançadas, há, por vezes, uma linha evidente de superação da estratégia de newsreels para um patamar de nível superior. O caso mais relevante será o de Dziga Vertov e do seu kino-pravda, um jornal de actualidades no qual, a partir de determinada altura, o experimentalismo abriu as portas a um filme documentário de novo tipo. Sabendo-se como tudo se relaciona e numa perspectiva evolutiva, parece, portanto, excessiva a equiparação dos filmes documentais portugueses “ao que de melhor se fazia lá fora” como sugeriu, por exemplo, Luís de Pina. É claro que a passagem do filme documental para o documentário não é a via única de acesso à narratividade expressiva sobre o real nem, tão pouco, a principal. Mas, mesmo olhando a outros percursos, até o filme de Oliveira, que se inscreve na linhagem das sinfonias das cidades associadas às vanguardas dos anos 20, surge com algum atraso. Para se perceber melhor a questão vejamos, a traços largos, o que foi a arqueologia dos filmes documentais dentro e fora de portas, sendo que arqueologia, aqui, reporta à avaliação de filmes e episódios da história do cinema português cujo horizonte temporal se situa entre o aparecimento em película das imagens em movimento e o advento do cinema sonoro.
Os primeiros filmes documentais
A figura do caçador de imagens é uma presença de sempre no imaginário dos documentaristas. No início, o acto de filmar mais não era do que animar o instante fixado na imobilidade da fotografia. Mas, a reprodução do movimento, só por si, depressa deixou de ser uma prioridade. Quando os irmãos Lumière mandaram os seus operadores Mesguich e Promio filmar os quatro cantos do mundo aperceberam-se de que o interesse do público não residia no real, mas na imagem desse real transformada pelo olho da câmara. Nesse momento, terá surgido, intuitivamente, a ideia sincrética de um real imaginado. Vinte anos mais tarde falar-se-ia de fotogenia, essa espécie de alquimia potencialmente emocionante que permite reverter em espectáculo o que não é espectacular, como sejam operários saindo de uma fábrica ou chegadas e partidas de comboios, no fundo, o desenvolvimento de outras experiências pioneiras como a dos obsessivos estudos de Muybridge, em 1880, sobre o movimento dos cavalos através da projecção de fotografias com o auxílio de uma adaptação da lanterna mágica.
Em L’Arrivée d’ un Train en Gare (1895), filmada em La Ciotat, no sul de França, uma câmara de Louis Lumière captou a aproximação de um comboio a ponto dos espectadores se assustarem perante a ameaça da locomotiva aparentemente incapaz de se deter. Ao desembarcarem, passando diante da câmara de filmar, os passageiros pareciam confundir-se com o público numa prodigiosa sensação de proximidade e profundidade, tão diferente da experiência proporcionada a esse mesmo público nas salas de teatro. Algo de novo acontecia: uma composição da imagem em função da qual, devido ao movimento dentro do quadro, se antevia já a escala dos planos.
Tamanho foi o impacto do cinematógrafo que seis meses após a estreia em Paris, segundo Erik Barnouw o cinematógrafo estava em Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Hungria, Suiça, Espanha, Itália, Sérvia, Rússia, Suécia e Estados Unidos e, pouco depois, na Argélia, Tunísia, Egipto, Turquia, Índia, Austrália, Indochina e Japão. Ao cabo de dois anos, os operadores dos irmãos Lumière viajavam por todos os continentes, à excepção da Antárctida [1].
No final de 1897, com mais de uma centena de caçadores de imagens espalhados por todo o mundo, o cinematógrafo atraía milhões de espectadores com os seus filmes documentais ou panoramas. Pela mesma altura, primeiro Méliès e depois Porter, utilizando câmaras com mais metros de filme começaram a contar histórias, nas quais, ao contrário do que acontecia nos panoramas, uma incipiente ligação de imagens ia deixando antever o embrião de uma gramática do cinema. No entanto, pelo menos até 1908, é relativamente consensual que a produção de actualidades se sobrepôs a qualquer outra, sendo embora evidente um desfasamento temporal entre aquilo que se passou, nomeadamente em França e nos Estados Unidos, onde a produção industrial de filmes de enredo arrancou mais cedo e, seguramente, com outros meios e outras possibilidades, e a grande maioria dos países com menor capacidade técnica e financeira, entre os quais se incluía Portugal.
As fitas documentais da primeira fase do cinema, supostamente retratos do quotidiano, depressa perderam a inocência primitiva. Rapidamente se estabeleceu uma espécie de comércio entre os poderosos do mundo e os caçadores de imagens, com os primeiros dispostos a pagar com facilidades de protecção e de acesso a determinados locais e acontecimentos a visibilidade que os segundos lhes pudessem proporcionar. Assim, nasceu uma vasta filmografia na qual se reconhece o embrião da propaganda, à qual, de resto, o jornalismo e o filme documentário viriam a estar amiúde associados. Sabe-se da existência, por exemplo, nos arquivos de cinema da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos de um avultado volume de takes do presidente Theodore Roosevelt reunidos por ele próprio para efeito de promoção pessoal.
Sabe-se, também, que os países grandes produtores de filmes documentais eram o centro de impérios coloniais propensos a darem a conhecer os nativos das suas colónias como seres pitorescos e agradecidos aos seus senhores tutelares. E sabe-se, ainda, que a fraude e a impostura são quase tão antigas quanto os primeiros filmes. Companhias como a Vitagraph ou a Biograph não hesitavam em utilizar uma trucagem que hoje nos pode parecer grosseira, mas que ao público do início do século ou terá passado despercebida ou não terá merecido grandes reparos. Segundo Barnow, fumo de cigarros, explosões provocadas, labaredas de fósforos, soldados equipados a rigor caindo diante das câmaras, tudo serviu para dar notícia de acontecimentos como espectaculares erupções de vulcões, terramotos arrasadores e batalhas sangrentas. Vale a pena citá-lo:
“As reconstituições e imposturas alcançaram um impressionante registo de ‘êxitos’. Se há memoráveis imagens genuínas do terramoto de 1906 de San Francisco, outras alegadamente respeitantes a esse acontecimento, foram forjadas a partir da manipulação de miniaturas e foram igualmente muito apreciadas. (...) As neves de Long Island e de New Jersey ofereciam as condições adequadas para empreendimentos como A Batalha de Yalu, filme da Biograph de 1904 e para um outro de Edison Escaramuça Entre as Forças Avançadas Russas e Japonesas, que competia com o da Biograph. Nesta última película viam-se soldados a passar diante de uma câmara imóvel, enquanto alguns outros iam caindo. Para ajudar o público a identificar as forças em presença, os russos estavam vestidos com uniformes brancos e os japoneses com uniformes de cores escuras” [2].
Os primeiros jornais cinematográficos ou newsreels são de 1908, sendo exibidos nas salas semanal ou quinzenalmente. A Pathé e a Gaumont foram pioneiras, mas depressa surgiram empresas com intuitos semelhantes um pouco por toda a parte. Durante muito tempo considerou-se que esta produção, ao invés de potenciar a criatividade dos operadores, depressa se revelaria quase sempre rotineira, falha de imaginação, conformista em relação aos assuntos tratados e incapaz de proporcionar uma visão integradora à escala humana. Hoje, este ponto de vista carece de revisão. Há, na verdade, uma produção rotineira e falha de imaginação, a maioria, de resto, mas também há imagens que valem mais do que o mero documento.
Esta primeira fase das películas documentais, às quais os franceses chamavam genericamente documentaire, deixou antever alguns dos desenvolvimentos futuros do filme documentário, nomeadamente por via dos travelogue, filmes de viagens eventualmente associados a aventuras e a proezas de exploradores em paragens remotas. A cinematografia francesa, por exemplo, produziu numerosos filmes no deserto do Sara e Herbert G. Ponting captou imagens da trágica expedição do capitão Scott ao Pólo Sul, imagens essas posteriormente recuperadas pela Gaumont e mostradas com enorme êxito em todo o mundo, em 1912. Um pouco mais tarde, em 1914, imagens de Frank Hurley dariam origem a uma reportagem sobre a expedição de Ernest Shackleton ao Antárctico. No ano seguinte, com In the Land of the War Canoes, Edward S. Curtis fazia o documentário antropológico seminal abrindo caminho a Nanook of the North (1922) de Robert Flaherty.
Ao longo desta fase, porém, é perceptível uma tensão entre fórmulas mais informativas, digamos assim, e experiências mais inovadoras, eventualmente conducentes a narrativas híbridas e até ao filme documentário, como abreviadamente adiante se verá.
Newsreels e outros percursos
Na antecâmara da I Guerra Mundial, apesar da maior parte do material filmado ser institucional, a importância do cinema informativo era um dado adquirido. A Pathé e a Gaumont dominavam o mercado mundial e, na Europa, os seus filmes representavam, em conjunto, 90 por cento do material exibido nas salas. Mas, no mercado estavam ainda Hearst, a Universal, a Paramount, a Mutual e a Fox.
A guerra seria fatal para a produção cinematográfica europeia, especialmente para a francesa. Muitos artistas, realizadores e técnicos europeus, perante o cenário desolador de uma indústria praticamente destruída, emigraram para os Estados Unidos. Charles Pathé optou por desmantelar de forma inteligente e proveitosa o seu outrora todo poderoso império. Os pujantes estúdios americanos impuseram a sua hegemonia. Mas a guerra permitiu, igualmente, treinar muitos operadores e realizadores americanos de newsreels que, uma vez de volta a casa, foram engrossar o número daqueles que trabalhavam no cinema, sobretudo em Hollywood. Entre europeus e americanos nessas condições, Raymond Fielding apresenta uma lista na qual se incluem, nomeadamente Joseph von Sternberg, Hal Mohr, Victor Fleming, Ernest Schoedsack, Farciot Edouart, Ira Morgan, Fred Archer, Harry Thorpe, George Hill e Eddie Snyder [3].
Com abundante mão-de-obra qualificada pareciam finalmente reunidas as condições para um salto qualitativo em termos de uma linguagem cinematográfica ajustada aos desígnios do jornalismo. O que aconteceu, porém, foi algo de contraditorio. Nos Estados Unidos, foram importados para o universo das empresas de newsreels os modelos e rotinas produtivas da imprensa. Muitas vezes, os técnicos e realizadores de cinema foram preteridos a favor de jornalistas. A preponderância destes últimos, a par da influência exercida pela companhia liderada por Hearst, foi, segundo Fielding, a principal responsável por um formato que em tudo procurava transpor os métodos e o estilo dos jornais impressos para o cinema informativo, nomeadamente a célebre técnica da pirâmide invertida, o que era evidente nos títulos, subtítulos, apresentação e hierarquização das matérias [4]. Simultaneamente, haveria de prevalecer a tendência para o entretenimento e o faits divers em resultado da lógica competitiva em que se desenvolveram os meios de comunicação nos Estados Unidos.
Daí uma certa negligência no tratamento das imagens na fase de montagem, apesar da excelência e temeridade – chegavam a arriscar a vida em busca da espectacularidade – de muitos operadores de câmara, as quais contribuíram para a imagem mitologizada de uma profissão exemplarmente tipificado em The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton. É nesta fase, e não mais tarde, quando a televisão se impôs como medium dominante, que se encontram as raízes da expressão que qualifica depreciativamente de trabalho jornalístico aquilo que no cinema do real não corresponde a parâmetros mais exigentes de ordem estética.
Contudo, apesar da linha dominante do entretenimento, encontram-se, igualmente, peças moldadas de acordo com critérios de maior exigência e obedecendo a parâmetros mais rigorosos no plano da narrativa. Mais tarde, nos anos 30, March of Time de Louis de Rochemont, sendo bastante controverso, haveria de adoptar procedimentos do documentário, palavra, de resto, execrada pelo próprio Rochemont. Noutros casos, na base da tradição de newsreels e travelogues iriam surgir filmes épicos como Grass (1924) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack já alinhados com a narratividade criativa.
Perante este breve quadro geral de tendências da arqueologia do cinema documental, resulta evidente, a par de uma linha marcada pela facilidade, uma evolução, mesmo se contraditória, em função da qual é perceptível um movimento que nalguns casos aproxima newsreels e documentários. Importa, agora, perceber o que aconteceu em Portugal para se fazer uma ideia comparativa.
Paz dos Reis e os primórdios do cinema documental português
Num dia de Setembro de 1896, na Rua de Santa Catarina, no Porto, um homem alto, pela aparência identificado com a burguesia da cidade, afadigava-se em torno de uma caixa de madeira envernizada apoiada num tripé em tudo idêntico ao utilizado pelos fotógrafos profissionais. Diante dele, a porta principal da Camisaria Confiança. À hora do almoço, operários – homens e mulheres – começaram a sair. O homem imprimiu então um movimento de rotação tão uniforme quanto possível a uma manivela destacada do corpo da caixa.
Os transeuntes não o sabiam, mas acabavam de assistir ao nascimento do cinema português. Se assim rigorosamente foi ou não, pouco importa. Paz dos Reis poder-se-ia ter feito acompanhar por um familiar e fotógrafo profissional, Magalhães Bastos, e ter sido este a manivelar o filme. Admite-se, até, ter havido outros, antes dele, a interessarem-se pelo cinematógrafo, do qual, aliás, os portugueses já tinham conhecimento através de Erwin Rousby. Seja como for, ressalvado o campo das hipóteses e postas de lado as questões de pormenor, Aurélio da Paz dos Reis tornou-se naquele momento o pai do cinema português.
Tanto quanto se sabe seria um espírito atento à modernidade no contexto peculiar da sociedade portuense de tradição liberal e individualista. Terá pertencido à Maçonaria, em cujas lojas se encontrava a maioria dos mais destacados republicanos da época. Em plena crise da monarquia constitucional, foi preso após a revolta de 31 de Janeiro de 1891 – um movimento popular cujos paisanos e soldados investiram contra os portões do quartel de Infantaria 18 e responderam ao fogo da Guarda Municipal do Porto –, mas deverá ter sido absolvido visto o seu nome não constar da lista de condenações do Conselho de Guerra de Matosinhos, onde os conjurados foram presentes. A sua notoriedade social ter-lhe-á valido os cargos de vereador e de vice-presidente da Câmara do Senado do município, bem como a presidência do Ateneu Comercial do Porto.
Como fotógrafo amador foi premiado por diversas vezes em Portugal e no estrangeiro, sendo da sua autoria algumas das imagens mais impressivas das movimentações republicanas no Porto. Igualmente da sua autoria, ficou célebre uma série de postais denominada Artistas Portugueses, cuja popularidade acabou por contribuir para lhe dar ainda maior notoriedade. Sempre curioso, experimentou a fotografia estereoscópica, ou seja, em relevo, produzindo um número significativo de duplos clichés indispensáveis à obtenção dos efeitos pretendidos e investiu num negócio de equipamentos fotográficos fornecidos pela Lumière & Jougla.
Contemporâneo de Louis e Auguste Lumière, Paz dos Reis mostrou a Saída do Pessoal Operário da Camisaria Confiança a 12 de Dezembro de 1896 numa sessão no Palácio do Príncipe Real, no Porto, da qual constavam igualmente outros filmes da sua autoria. O Jornal de Notícias desse dia anunciava a mostra de “12 perfeitíssimos quadros, sete nacionais e cinco estrangeiros [5]”. Os quadros portugueses, além do já mencionado, eram O Jogo do Pau, Chegada de um Comboio Americano a Cadouços, O Zé Pereira nas Romarias do Minho, A Feira de São Bento, A Rua do Ouro e Marinha. Exibidos durante o intervalo de uma zarzuela, muito do agrado do público da época, os quadros tiveram maior êxito do que o até então obtido pelas vistas estrangeiras.
Este tipo de reportagem ou filme documental seria a imagem quase exclusiva do cinema português do final do século XIX e do início do século XX e Paz dos Reis, que fez centenas de pequenos filmes sobre o quotidiano, na sua esmagadora maioria perdidos ou destruídos, foi o nosso primeiro cineasta e repórter de imagens em movimento. Ao contrário de Paz dos Reis a maioria dos operadores de imagem da época permaneceu no anonimato. Houve, no entanto, algumas excepções.
Manuel Maria da Costa Veiga fez em 1899 Aspectos da Praia de Cascais, eventualmente o primeiro filme com imagens do rei D. Carlos e do príncipe D. Luís Filipe. Até 1918 filmou inúmeros acontecimentos da vida portuguesa, como as visitas de estadistas estrangeiros, a instauração da República, a mobilização para a I Guerra Mundial e o advento da ditadura de Sidónio Pais. Valendo-se dos contactos da sua Portugal Filmes, com sede em Algés, vendeu para toda a Europa trabalhos sobre as visitas de Eduardo VII de Inglaterra, de Afonso XIII de Espanha, do presidente Loubet da França e do Kaiser Guilherme II.
Também João Freire Correia, um dos melhores fotógrafos de Lisboa e fundador da Portugália Filme, antigo operador de Paz dos Reis, saiu do anonimato fazendo igualmente um número apreciável de reportagens cinematográficas. O seu nome está associado a dois grandes êxitos junto do público, A Cavalaria Portuguesa e O Terramoto de Benavente, um e outro referenciados como precursores do documentário português. O Terramoto de Benavente (1909) tirou 22 cópias só para exibição no estrangeiro, um feito considerável para a época. Reportando a destruição daquela vila do Ribatejo por um sismo de grande intensidade, o filme, ao que parece, distinguia-se pelo dramatismo visual.
No ano seguinte, Costa Veiga e Freire Correia fizeram reportagens sobre a Revolução de 5 de Outubro de 1910 e a proclamação da República. Por essa altura, o cinema em Portugal era ainda encarado como um veículo de vistas panorâmicas, sem aspirar à narratividade criativa. Segundo Félix Ribeiro, à evolução da linguagem cinematográfica no estrangeiro correspondeu em Portugal uma quase completa ausência de ousadia e de liberdade formal e conceptual. Não obstante, criou-se uma corrente de opinião segundo a qual, nos primeiros tempos, a melhor produção terá sido, justamente, na área do cinema documental. Afirma, por exemplo, João Bénard da Costa:
“ (...) quase tudo o que de mais interessante se fez foi no capítulo do documentarismo, produzido pela Companhia Cinematográfica de Portugal ou pela Invicta Film de Alfredo Nunes de Matos, exibidor portuense” [6].
A palavra documentarismo é manifestamente utilizada a despropósito por Bénard da Costa porque, na verdade, dificilmente as produções quer da Companhia Cinematográfica Portuguesa quer da Invicta Filme poderiam merecer o estatuto do filme documentário. Vejamos com maior detalhe o caso desta última, justamente porque não apenas fez numerosos filmes factuais, mas também por que se tratou da primeira empresa portuguesa a fazer filmes de enredo mais ambiciosos e, como se disse, há uma relação estreita entre a inovação e experimentação no campo do cinema e a qualidade da generalidade da produção seja qual for a sua área de inserção.
A Invicta Film: cinema documental e filmes de enredo
A experiência da Invicta Film, empresa com estúdios no Porto, está associada à primeira tentativa de levar a cabo uma produção nacional à escala europeia, sobretudo a partir de 1918, quando a empresa passou a apostar essencialmente nos filmes de enredo. Alfredo Nunes de Matos, gerente do Jardim Passos Manuel – sala inaugurada em 1908, por onde passava grande parte do cinema visto na cidade – foi a figura central dessa aventura que passou à História como ciclo do Porto.
Em 1910, ano da implantação da República, Nunes de Matos começou a produzir reportagens cinematográficas, sobretudo no Norte, fazendo, simultaneamente, pequenos filmes publicitários de encomenda. A sua empresa contratou operadores talentosos como Manuel Cardoso e Thomas Mary Rosell e rodou milhares de metros cujos princípios orientadores eram a fidelidade à temática portuguesa e a urgência, à qual o jornalismo viria a chamar imediatismo, de dar a ver o que de mais importante ia acontecendo. Desse modo, Nunes de Matos conseguiu não apenas agradar a um público cada vez mais vasto, mas também interessar os jornais de actualidades da Pathé e da Gaumont, dos quais era correspondente e para os quais enviava algumas colaborações.
Há numerosos títulos produzidos nessa primeira fase. A título de mero exemplo, em 1911 fizeram-se as Festas de Aniversário da República, seguidas, no ano seguinte, de uma Visita ao Porto do Presidente da República. Com o estalar da I Guerra Mundial, numa altura em que se começava a discutir de forma virulenta se o País devia ou não entrar no conflito – uma polémica na qual se envolveram monárquicos e republicanos, por um lado, e republicanos entre si, por outro – a Invicta produziu, nomeadamente, O Embarque das Tropas Expedicionárias para Angola e Moçambique, Exercícios de Artilharia, Grandes Manobras de Tancos, todos sobre a preparação para a entrada na Guerra, e Revolução em Lisboa e Chaves - Incursões Monárquicas. A par das questões de índole política e das pequenas fitas publicitárias, Nunes de Matos e os seus colaboradores prestaram igualmente atenção à reportagem sobre acontecimentos do interesse do público da época como exercícios e operações de bombeiros, treinos de aviadores, festas e romarias, bem como às vistas panorâmicas precursoras de trabalhos documentais de carácter monográfico sobre localidades e regiões, como foram os casos de A Serra da Estrela, Viana do Castelo, Lamego, Barcelos, Bom Jesus do Monte e outros.
De toda a produção anterior a 1917 cumpre destacar O Naufrágio do Veronese, um navio italiano naufragado ao largo de Leixões em 10 de Fevereiro de 1913. Denotando sentido de oportunidade, a Invicta produziu uma grande reportagem de 300 metros, da qual foram vendidas, só para a Europa, mais de uma centena de cópias.
Em 1917, em Lisboa, virou-se nova página da história do cinema português. Foram criados os Serviços Cinematográficos do Exército que fizeram a cobertura da intervenção portuguesa na guerra, ampliando e complementando o trabalho levado a cabo pelos produtores nacionais. É também desse ano a primeira conferência sobre cinema realizada em Portugal. O conferencista foi António Ferro, mais tarde o homem forte de Salazar para a cultura e propaganda. Ferro estava ligado ao movimento futurista e, a par do desenhador Stuart Carvalhais, do crítico de arte Reis Santos, do então estudante de arquitectura Cotinelli Telmo e do jornalista Leitão de Barros, foi um dos primeiros intelectuais portugueses a ser conquistado pelo cinema. Nas salas, os jornais cinematográficos antecediam as grandes produções americanas e italianas. O público garantia boas receitas e uma massa crítica cinéfila ia ganhando expressão.
Nesta conjuntura, a Invicta Film optou por uma mudança de estratégia. A 22 de Novembro de 1917 foi fundada uma nova sociedade tendo como administrador principal Nunes de Matos e como director artístico Henrique Alegria, um português do Brasil e proprietário do cinema Olímpia. Nos seus estatutos não havia quaisquer referências de índole cultural ou artística. Tratava-se de promover “o fabrico, aluguer e venda de películas cinematográficas [7]”. O tempo viria a confirmar essa tendência.
Alguns dos filmes produzidos tiveram sucesso popular e representaram um salto qualitativo em relação ao que até então se fizera. Estão neste caso fitas de Georges Pallu como Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) e Amor de Perdição (1921), adaptações, respectivamente, de Júlio Dinis e de Camilo Castelo Branco, ou ainda Mulheres da Beira (1923) do realizador italiano Rini Lupo. Escreveu Luís de Pina:
“(...) o papel mais relevante desta empresa foi o de ter demonstrado a possibilidade de um cinema de qualidade ‘média’ feito sem demasiada transigência e com evidente preocupação técnica. Nas suas instalações da Quinta da Prelada, no Porto, fez-se cinema a sério com tudo o que isso implica, desde os filmes em si à infraestrutura que os produz e à verdadeira escola de prática que uma produção deste tipo permite [8]”.
Este ciclo do Porto merece algumas considerações. Em primeiro lugar, a viragem do até então eixo dominante da maioria dos filmes produzidos em Portugal, as vistas panorâmicas e as reportagens, para o domínio do romanesco. Por essa altura, o cinema começava a ser encarado como arte e linguagem exigindo, como tal, a narratividade criativa mas, sendo uma actividade dispendiosa, era igualmente encarado como uma oportunidade de negócio. Em segundo lugar, essa viragem ocorreu no Porto. Todos os associados da Invicta Film eram portuenses e estavam ligados à banca, ao comércio e a diversas profissões liberais corporizando o espírito de iniciativa da cidade. Alguns estudiosos do cinema português, como Félix Ribeiro dão até conta da recusa de facilidades, por parte dos accionistas, para a construção dos seus estúdios em Lisboa. Em terceiro lugar, ao pretender organizar a produção em bases industriais, a companhia recusou a improvisação, não hesitando em ir buscar técnicos qualificados onde sabia poder encontrá-los no estrangeiro contribuindo, dessa forma, para formar muitos agentes do cinema. Em quarto lugar, apesar das críticas que lhe possam ser feitas no sentido de ter procurado agradar a um público muito vasto e, como tal, supostamente nivelado por baixo, a Invicta Film compreendeu a importância do genuinamente português para efeito da criação de públicos. Fez-se mais português para ser mais europeu, antecipando, de algum modo, uma das linhas estratégicas das políticas do audiovisual europeu, ou seja, valorizar o regional encarando-o como base do universal. Em quinto lugar, aliando o saber fazer à construção de estúdios modernos de raiz e à aquisição dos equipamentos necessários, criou as condições logísticas indispensáveis para transformar o Porto durante alguns anos na capital do cinema português.
Entre 1818 e 1925, fosse através da Invicta, da Caldevilla Film, fundada em 1920, ou da Fortuna Film, criada em 1922, fizeram-se no Porto 25 longas metragens de ficção, um número interessante mesmo se comparado com a produção europeia da época. Todos os géneros de que o cinema português viria a ocupar-se mais tarde encontram-se já neste Ciclo do Porto, excepção feita à comédia populista, cujo período áureo havia de prolongar-se pelos anos 30 e 40. A partir de meados de 1922, a Invicta Film começou, no entanto, a sentir dificuldades financeiras. Em competição com estruturas capitalistas poderosas à escala global, tornou-se cada vez mais difícil encontrar uma distribuição adequada. Em 1924, fez a sua última produção, um filme documental intitulado III Exposição Internacional de Automóveis, Aviação e Sport. Os seus estúdios reabriram, ainda, uma ou outra vez, a título de aluguer, como aconteceu no caso dos filmes de Reinaldo Ferreira, um jornalista famoso pelas suas reportagens sensacionalistas que marcaram uma fase do jornalismo português e que eram assinadas com o pseudónimo de Repórter X, mas tudo isso mais não foi do que o último assomo de um penoso estertor. Em Junho de 1931 fechou as portas definitivamente. Nesse ano, morreu Aurélio da Paz dos Reis e Manoel de Oliveira realizou Douro, Faina Fluvial.
Dito isto, e antes de entrar em considerações sobre a produção deste período, certamente mais importante pela quantidade do que pela qualidade, justifica-se ainda sublinhar um conjunto de perspectivas favoráveis ao desenvolvimento pelo gosto do cinema que, efectivamente, existiu em Portugal e que poderia ter contribuído para o aparecimento de obras de maior relevância.
O gosto pelo cinema, os primeiros documentários portugueses e Douro, Faina Fluvial
Durante os anos 20, de um modo geral, mesmo após a instauração da ditadura em 1926, quase toda a melhor produção internacional passou por Portugal, sobretudo na capital. Ao público cinéfilo não lhe escapava a excelência de filmes provenientes dos Estados Unidos, Alemanha, França e até da União Soviética como Tempestade na Ásia de Pudovkin e A Linha Geral de Eisenstein, ambos exibidos já em fase de consolidação do salazarismo. Para tanto convergiram razões de vária ordem.
Cumpre, desde logo, destacar, ainda na I República, o papel desempenhado por algumas revistas de cinema do Porto, as quais contribuíram para a formação de um público conhecedor e deram à estampa polémicas interessantes. A primeira foi O Porto Cinematográfico, fundada em 1919 por Alberto Armando e que só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta Cine envolveu-se na polémica relacionada com o advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi também devido ao entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [9]”.
Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente limitada na acção que desenvolveu, propunha-se inicialmente defender o cinema nacional, “moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse [10]”.
Com a ditadura, de início, o estado também não adoptou uma política cinematográfica monolítica. Para tal contribuiu não só a postura de António Ferro, um jornalista influente, admirador de Salazar, mais tarde designado para dirigir o Secretariado de Propaganda Nacional, mas também o grupo de jovens a partir do qual se iria procurar fazer a renovação do cinema português. Entre eles, contavam-se Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro. Um e outro tinham estado na Alemanha e na União Soviética, onde se tinham inteirado dos respectivos processos criativos e produtivos. A admiração pelas cinematografias alemã e russa, aliás, já tinha sido manifestada, em 1925, por Fernando Pessoa, quando afirmou serem as únicas cujos filmes se aproximavam da ideia de arte. Por outro lado, foi essa uma época de intensa actividade intelectual que viu nascer, por exemplo, o movimento do Orfeu e a revista Seara Nova, sendo que estas iniciativas, apesar do carácter efémero da primeira, viriam a desempenhar um papel de relevo na vida cultural portuguesa. A esta abertura à modernidade não foi certamente estranha a filiação futurista da maioria dos protagonistas da tentativa de renovação do cinema português.
A difusão do gosto pelo cinema, sobretudo nos grandes centros urbanos prende-se ainda com o facto de todas as principais cidades do País, e em particular Lisboa e o Porto, terem novas salas, na sua maioria de grandes dimensões. Eram os casos, em Lisboa, do Tivoli e, no Porto, do Rivoli e do Teatro de S. João, este o maior do País com dois mil lugares. Por outro lado, as grandes distribuidoras da época, como a Paramount, a Metro e a RKO abriram sucursais em Portugal e, com o volume de negócios em alta, surgiram novos estúdios, nomeadamente da Lisboa Filmes. Sucede que foi justamente esta empresa a responsável pela maior parte da produção documental de 1928 a 1932, seguida da Ulysseia, igualmente relevante nesse domínio, sendo que, em qualquer dos casos, é difícil apontar obras cuja relevância mereça ser assinalada. Esta proliferação de filmes, bem como a sua fraca qualidade, tem uma explicação. Publicada no Diário do Governo de 6 de Maio de 1927 a chamada lei dos Cem Metros Nacionais determinava seu artº 136:
“Torna-se obrigatória, em todos os espectáculos cinematográficos, a exibição de uma película de indústria portuguesa com o mínimo de 100 metros, que deverá ser mudada todas as semanas e, sempre que seja possível, apresentada alternadamente, de paisagem, e de argumento e interpretação portuguesa [11]”.
Com o intuito de incentivar os produtores, ainda se isentavam de direitos alfandegários as películas virgens, negativa e positiva, “comprovadamente destinadas a ser impressionadas no País [12]”.
Os resultados foram desastrosos. Com efeito, se aumentou a produção de curtas metragens com temáticas portuguesas, a verdade é que a esmagadora maioria dos filmes tinha orçamentos reduzidos e era de má qualidade. Distribuidores e exibidores pagavam ninharias por essas fitas e os produtores só arriscavam em projectos mais arrojados caso fossem integralmente subsidiados, ficando embora, neste caso, subordinados aos interesses dos patrocinadores públicos ou privados. Daí a proliferação de filmes informativos associados à propaganda do regime, por vezes, identificados como documentários, e de películas sobre temas diversos, mas sem inovação, durante um período de tempo que se alargou para além do advento do cinema sonoro.
O assunto não passou sem que em torno dele se tivesse levantado acesa polémica, nomeadamente nas páginas da revista Cinéfilo e por parte de António Lopes Ribeiro, que acreditava ser possível fazer em Portugal excelentes documentários, mas que a via legislativa escolhida, semelhante à promulgada por Mussolini para o cinema italiano, só poderia conduzir aos piores resultados. E, assim, a única obra de referência, indiscutível, desta fase, feita á margem dos circuitos dominantes, seria Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira, considerado o primeiro grande clássico do cinema português.
O filme documentário, portanto, apesar de algumas condições favoráveis, nomeadamente a possibilidade de o público cinéfilo e os protagonistas e agentes do cinema terem conhecimento da boa cinematografia estrangeira, só muito esporadicamente e sem grande expressão se elevou acima da fasquia, aliás sempre baixa, dos filme documental rotineiro, ele próprio pagando a factura da falta de criatividade generalizada do cinema de enredo até ao advento cinema sonoro. Mesmo a Invicta Film, cuja produção mais significativa principia em 1919 e vai até 1923, nunca se evidenciou por qualquer tipo de arrojo estético ou de ousadia experimental, isto numa altura em que as vanguardas artísticas faziam o seu percurso em muitos países europeus. Georges Pallu, por exemplo, viera do Film d’Art francês, quase sempre medíocre, e essa seria a referencia cinéfila da empresa. Como tal, os filmes da Invicta não poderiam produzir efeitos, no plano criativo, na passagem para o filme documentário.
O filme de Oliveira é, portanto, o que acompanhou melhor os sinais dos tempos. Como o próprio autor reconhece, inscreve-se na tradição das sinfonias das cidades na linha de Rien que les Heures de Cavalcanti, de Berlim de Ruttman e de O Homem da Câmara de Filmar de Vertov e reverte numa reflexão sobre o próprio cinema. Começa e acaba, aliás, com a luz de um projector, que se verifica depois ser a do farol à entrada do rio Douro, o qual funciona como metáfora dos mecanismos do cinema. Há no filme uma poética de índole expressionista que joga com volumes, linhas de fuga e claros e escuros, tirando partido da plasticidade das imagens, elas próprias habilmente articuladas na montagem de modo a estabelecer um ritmo cujas acelerações e desacelerações se ajustam aos momentos do quotidiano. Mas, ao contrário do que sucede com a maioria das sinfonias das cidades, centradas no ritmo, no movimento e nas formas, Douro presta uma atenção especial à paisagem humana, sugere um erotismo subtil e, nessa medida, ganha uma singularidade que o distancia de outras obras na mesma linha. Oliveira, então com 23 anos, viu o seu filme ser entusiasticamente recebido por Lopes Ribeiro, pateado pelo público, demolido por parte da crítica e proclamado obra-prima por críticos estrangeiros, nomeadamente alguns franceses. Apesar de ter um conjunto de projectos em carteira e de ter aceitado algumas encomendas sem expressão no conjunto da sua obra, Oliveira só voltou a filmar 10 anos mais tarde para dar corpo a outro clássico, igualmente rodado no Porto, o celebrado Aniki-Bóbó (1942).
Embora sem paralelo com Douro, Faina Fluvial, é habitual mencionar ainda como exemplos dos primeiros documentários portugueses três ou quatro filmes. Em primeiro lugar, Nazaré, Praia de Pescadores (1929) de Leitão de Barros, que viria a ser considerado o primeiro da chamada trilogia do mar juntamente com Nazaré, Maria do Mar e Ala-Arriba, os dois últimos filmes de enredo, mas de cunho documental. Trata-se de um retrato da vida tradicional dos pescadores da Nazaré, ao qual a luz e a composição da imagem conferem uma dimensão de transcendência. Alguns cinéfilos reconheceram nele a influência estética da escola soviética. Um deles foi António Ferro. O realizador haveria de relativizar, a posteriori, essa influência, interpondo distâncias entre a alma eslava e o sentir português. Infelizmente não é possível ter uma ideia cabal do filme visto ter-se perdido a segunda metade. Os outros filmes são Alfama, Gente do Mar (1930), de João de Almeida e Sá e outros dois filmes de Leitão de Barros, obras de difícil catalogação, que são Lisboa, Crónica Anedótica (1930), por sinal com passagens bastante imaginativas, e Maria do Mar (1930), este último publicitado como sendo um documentário dramatizado.
Conclusão
Enfim, quando comparada com os filmes dos grandes documentaristas da primeira fase do cinema – Flaherty, Ivens, Ruttman, Vertov, para citar apenas alguns – não pode dizer-se que a produção portuguesa, com excepção de Douro, Faina Fluvial, tenha produzido obras particularmente estimulantes. O filme documental anterior ao advento do cinema sonoro está ligado a um conjunto de circunstâncias que ou não se verificaram em Portugal, ou tiveram um impacto diferente daquilo que ocorreu noutros países. Não houve nada de comparável, por exemplo, ao experimentalismo de um Paul Strand, nem ao vanguardismo de um Ivens de A Chuva ou A Ponte, nem às diferentes incursões surrealistas da autoria de artistas tão diferentes quanto René Clair, Man Ray, Germaine Dulac e Jean Painlevé, nem do impressionismo que marcou o cinema francês da época, tão pouco do expressionismo alemão e muito menos do vanguardismo soviético apontado a um cinema de carácter documental investindo na questão social.
Veja-se como em 1914 já Frank Hurley ultrapassava o mundo de newsreels sem imaginação ou como em 1915 já Curtis fazia uma primeira incursão no cinema etnográfico nos Estados Unidos com The Land of the War Canoes, de certa forma precursor do documentário seminal de Flaherty, Nanook of The North (1922). Atente-se no facto de John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico, ter começado a produzir reflexão sobre o filme documentário a partir de 1927, de resto, muito influenciado não só pelos extraordinários filmes soviéticos, mas também pelo trabalho teórico dos seus cineastas e, sobretudo, veja-se o destaque dado nas múltiplas histórias do documentário, que entretanto surgiram, à arqueologia do cinema documental e aos chamados filmes de factos, os quais, passando a ser melhor conhecidos, começaram a ser olhados de uma outra maneira, quer através de novos argumentos reforçando críticas habituais, quer expondo aspectos valorativos até então negligenciados e comprovativos de incursões narrativas mais ambiciosas e próximas do filme documentário.
Nada disso parece ter acontecido em Portugal. Durante a primeira República as actualidades e reportagens cinematográficas, bem como o cinema de enredo, foram marcadamente conformistas. Essa ausência de criatividade foi criticada pela nova geração, cujas ideias tinham expressão nas páginas de revistas especializadas. Mas, embora as elites cinéfilas tivessem conhecimento do melhor cinema contemporâneo, a verdade é que a produção de filmes documentais continuou a ser feita sem sobressaltos e na ausência quase total da procura de novos rumos. Não se entende, por isso, que possa ser invocada semelhança em relação ao que se fazia lá fora. Ou melhor, talvez haja uma razão para que assim seja. Na história do cinema português, só recentemente começou a prestar-se maior atenção ao cinema do real. Ainda assim, procurando vê-lo numa linha de continuidade daquilo que a partir dos anos 60 viria a ser a luta pela afirmação e identidade de um determinado cinema de autor ao qual estaria subjacente um olhar especificamente português.
Ora, até ao advento do som, a cinematografia nacional não tem, na realidade, muito por onde escolher. Daí, eventualmente, essa valorização da produção documental, a meu ver suspeita e susceptível de suscitar dúvidas. Suspeita porque equipará-la à produção estrangeira seria, na verdade, desvalorizá-la. Quanto às dúvidas, não se percebe como essa produção poderia ser boa vivendo paredes meias com filmes de enredo frágeis sem interesse, tão pouco se entendendo que, ao contrário do que se passava noutros países, os jornais de actualidades caseiros jamais – enfim, direi muito raramente para deixar em aberto a possibilidade de alguma irreverência que só um estudo aturado poderia confirmar – terão sido capazes de se elevar acima da reportagem rotineira. Algo como o controverso March of Time dos anos 30, um exemplo do sentido evolutivo e da interação narrativa entre newsreels e formas mais exigentes do cinema, seria simplesmente impensável em Portugal. Assim sendo, também não se vê como os filmes documentais portugueses possam ter estabelecido pontes de passagem consistentes para o filme documentário.
[1] . Barnouw, Erik – El Documental-Historia y Estilo, Gedisa Editorial, Barcelona, 1996, p. 19 e sgts. [2] . Barnouw, Erik - op. citada, pp. 28-29. [3] . Fielding, Raymond – The American Newsreel 1911-1967, University of Okla homa Press, Norman, 1982, p. 125. [4] . Fielding, op. citada, p. 135. [5] . Félix Ribeiro, op. citada, p. 13. [6] . Bénard da Costa, João – Histórias do Cinema, Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Lisboa, 1982, p. 20. [7] . Pina, Luís de – Panorama do Cinema Português - das origens à actualidade, Ed. Terra Livre, Lisboa, 1978, p. 11. [8] . Pina, op. citada, p. 12. [9] . Costa, Alves – Breve história do cinema português – 1896-1962, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação Científica, Lisboa, 1978. [10] . ibid. [11] . Félix Ribeiro, M. – Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949, Cinemateca Nacional, Lisboa, 1983, p. 231. [12] . ibid.
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Publicado em Avanca, Cinema 2010. Revisto em 2020.