A coleção Hugo Boss de 1934. Na verdade, foi ele o criador dos famosos uniformes nazis. Inclusivamente, foi membro do partido de hitler. Mas, sejamos razoáveis. Que poderia ele ter feito? Tinha de ganhar a vida e era preciso fazer funcionar a economia. Tanto assim que até criou muito emprego. É certo que muitos seus trabalhadores saíram de campos de concentração e viveram em condições um bocado estranhas. Mas, que diabo, e a produtividade? De resto, ele foi mandado em paz após a guerra. Até pediu desculpa. Eu, por acaso, acho que o contributo que deu para a competitividade e o prestígio do design de moda dispensava a humilhação.
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viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR
7 de out. de 20201 min de leitura
No dia 14 de agosto de 1944 ficou consumada a Libertação de Paris. Para a posteridade ficaram as palavras do célebre discurso do general De Gaulle: 'Paris! Paris ultrajada! Paris dominada! Paris martirizada! Mas Paris libertada!' Porém, neste dia, num tempo em que forças inspiradas na sarjeta ideológica nazi-fascista voltam a operar à escala global com outros nomes e outros disfarces, talvez seja mais importante recordar o colaboracionismo. Após a capitulação da França, Hitler decidiu-se pela administração directa do norte e criou um regime fantoche em Vichy sob a liderança do marechal Pétain (foto). Os colaboracionistas actuaram por vezes com uma brutalidade que excedeu a dos ocupantes. Por exemplo, “A Rusga" mobilizou cerca de 10 mil funcionários e polícias e levou a uma deportação massiva no verão de 1942 de 13 mil judeus. Mais de 4 mil eram crianças. Destino: Auschwitz. poeticamente, chamou-se a isto "Operação do Vento da Primavera". Há máscaras para tudo. As mais repulsivas são as dos que escondem debaixo do tapete as vergonhas do passado. Já lá vai, não foi bem assim, não vale a pena reabrir feridas, dizem eles. Pois...
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7 de out. de 20201 min de leitura
No dia 14 de agosto de1936, em Badajoz, as tropas dos generais sediciosos comandadas por Francisco Franco escrevaram uma das páginas mais tenebrosas da ignomínia fascista na Guerra Civil de Espanha. À capitulação dos republicanos seguiram-se perseguições em massa e fuzilamentos indiscriminados. Salazar não só permitiu que falangistas entrassem em Portugal em perseguição de quem procurava escapar à morte, mas também colaborou devolvendo a Franco patriotas capturados pela polícia política portuguesa. Ainda hoje não se sabe ao certo quantos milhares foram metidos e executados na praça de touros da cidade. Factual: até enviados do III Reich a Espanha manifestaram estranheza perante Franco quanto à brutalidade exercida sobre os seus opositores políticos. Factual: Franco assinava ele próprio sentenças de morte. Factual: Franco ultrapassou Pol Pot do Cambodja no delírio assassino. Factual: Franco foi abençoado pela hierarquia da Igreja Católica e repousou como símbolo da Grande Espanha no Vale dos Caídos. Conclusão: Evidentemente que o museu de Salazar em Santa Comba Dão vai reavivar a memória deste horror. Vai?
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Jorge Campos
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"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."
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C A T E G O R I A S
Out of the Past
o filme é Out of the Past (1947) de jacques tourneur. ela é a fabulosa jane greer, femme fatale do film noir. uma das tais por quem o rapaz perde a cabeça até descobrir que ela, afinal, não é indefesa e está perfeitamente à vontade com um 38 nas mãos. enfim, perigo. gosto.
Um Fascinante Jogo de Máscaras
Sorge, de um fôlego: combate pelo exército imperial alemão na I Guerra Mundial, fica gravemente ferido, é condecorado com uma Cruz de Guerra, torna-se marxista e adere ao Partido Comunista na Alemanha, faz um doutoramento em Ciência Política, entra para o Comintern, é enviado para instigar a Revolução em diversos países, consegue infiltrar-se e obter o cartão de membro do partido nazi em Berlim, vai viver para Moscovo, é enviado pela União Soviética para Xangai onde cria uma tremenda rede de espionagem, segue depois para o Japão, fazendo-se passar por especialista dos assuntos da região, torna-se íntimo do embaixador do III Reich em Tóquio - e amante da sua mulher - tem acesso a informação ultra secreta que durante anos transmite ao Centro, avisa Estaline da Operação Barbarossa, nome de código da invasão da URSS pela Wehrmacht e seus aliados do Eixo, em suma, um tipo com uma vida tão assombrosa tinha de ficar para a História como o mais formidável espião de todos os tempos. Richard Sorge ou Ramsey, o mais conhecido dos seus nomes de código, tinha, obviamente, características pessoais singularíssimas: bebedor incorrigível, amante insaciável, viciado na velocidade das suas motos e automóveis, orador brilhante, intelectual de altíssima craveira, jornalista respeitado, indefectível comunista: sentia-se na vertigem do perigo como peixe na água. de tal modo que no jogo do gato e do rato iniciado com os processos de Moscovo, na sequência dos quais foram executados sucessivamente seis diretores do seu Comando - os seus superiores - Sorge conseguiu escapar à purga. não escapou foi à polícia japonesa. preso no final de 1941, seria enforcado em 1944. pensou até ao fim que a URRS acabaria por resgatá-lo. nunca soube, embora suspeitasse, que Estaline o considerava um agente duplo, mandando para o cesto do lixo as suas informações. subiu ao patíbulo com vivas à Revolução. foi reabilitado após o XX Congresso do PCUS e considerado herói da União Soviética. a história de Sorge tem sido contada de muitas maneiras ao longo dos anos. em ensaios, no cinema, na literatura. este livro de Owem Matthews, porém, recolhe informações só há pouco tornadas públicas, designadamente dos arquivos da polícia secreta russa. por vezes, apresenta dados contraditórios. eu diria que, tratando-se de espionagem, isso é natural. vale a pena lê-lo pelo que revela sobre os meandros da política, sobretudo agora quando a invasão da Ucrânia é representada de modo simplificadamente maniqueísta. já agora, este leitor leu muito sobre espiões. adora o tema. o que de mais fascinante encontrou neste livro foi o jogo de máscaras, sempre uma chave para ler a guerra e o mundo.
Soudtrack to a Coup d' Etat (2024)
Vi agora este Soudtrack to a Coup d' Etat (2024) do belga Johan Grimonprez no Porto/Post/Doc. é excepcional. vencedor do Festival de Sundance, não é de esperar que venha a ganhar muitos mais prémios. por várias razões, algumas formais, digamos assim, outras de foro político. quanto às primeiras, prendem-se com uma certa maneira, melancólica e conformista, de entender o cinema, e por aí me fico. as outras resultam do incómodo de assistir durante 150 minutos a um bisturi implacável, manejado com rigor e destreza, a dissecar o golpe do ocidente que levou ao assassínio de Patrice Lumumba, eleito democraticamente no Congo. corria o ano de 1960. com os americanos na linha da frente e o seráfico rei Balduíno da Bélgica logo a seguir, os contornos da conspiração, dados a ver em função de aturado trabalho de pesquisa, quer de informação quer de imagens, vão permitindo compor o retrato sinistro dos fautores da teia da morte. acresce que, nesse ano de 1960, o movimento cívico dos negros americanos avançava caudalosamente, bem como a música de Jazz que, de forma extremamente original, serve de trilha sonoro ao filme. acrescento: este filme é Jazz. pois, essa música, mesmo que os seus intérpretes disso não tivessem consciência, também era utilizada pela frente cultural da CIA para demonstrar a superioridade americana face à cultura soviética. deixo estas notas por aqui, sem prejuízo de texto mais alargado, concluindo do seguinte modo: Patrice Lumumba foi um homem extraordinário; é claro que o golpe no Congo é indissociável da suas riquezas minerais.
A verdade é de papel
eis um belo livro. acaba de sair e tem diversos ensaios em torno da figura desse português singular que foi o poeta Tiago Veiga. grato a Mário Cláudio por tê-lo dado a conhecer através da fascinante biografia que dele escreveu. grato a quem colaborou neste A Verdade é de Papel permitindo, desse modo, entrar mais a fundo no enigma do homem e do artista. já o li e muito aprendi. o livro acolhe um modesto artigo meu a propósito do documentário que fiz sobre Mário Cláudio. ao José Vieira, que esteve ao leme desta estupenda edição, parabéns!
Semeador de palavras
Semeador de Palavras é um livro que recupera as entrevistas de José Afonso dadas entre 1967 e 1987, duas delas publicadas a título póstumo. na companhia de Ana Ribeiro e Paulo Encarnação, da Associação José Afonso, coube-me apresentá-lo. foi uma honra. desde logo deve ser relevado o extraordinário trabalho de pesquisa e compilação levado a cabo, bem como a capa de José Santa Bárbara, autor de 9 capas de discos de Zeca Afonso, e o grafismo de Lígia Pinto. nas entrevistas, muito diversificadas, há assinatura de alguns dos grandes nomes da imprensa portuguesa. há, ainda, um texto da AJA e um prefácio de Viriato Teles. ler o livro, organizado de forma cronológica, é como ver um filme. o filme de um período de 20 anos do Portugal contemporâneo através do olhar singularíssimo de alguém que se serviu da palavra e da música como ninguém. sempre na primeira pessoa, com contradições, alegrias e frustrações: a luta antifascista, o júbilo da Liberdade, a euforia da Revolução, o esvaziamento do Poder Popular, a vitória do extremo-centro, horrível, vassalo do neoliberalismo. Semeador de Palavras é um título feliz. Zeca Afonso deitou muitas sementes à terra. de tão poderosas, as suas cantigas são intemporais. tendo dúvidas sobre como chegar ao povo pelo trabalho de criação, sempre foi dizendo: "Acho que o experimentalismo é que está na base de uma atitude progressista. Aquilo que é académico, na minha opinião, é de direita; aquilo que é criativo, lúdico, anti-hierático, é de esquerda."
A zona de interesse
Houve um tempo em que me foi relativamente frequente ver o mesmo filme duas vezes na mesma semana, embora raramente em dias seguidos. depois, o hábito foi-se diluindo, não sei se por não encontrar cinema que o justifique ou, simplesmente, porque a inexorável prova do tempo já não me permite reconhecê-lo. daí ter ficado atónito quando aqui há uns dias dei comigo a ver este Zona de Interesse de Jonathan Glazer duas vezes seguidas. compulsivamente. da primeira, saí de tal forma perturbado que não consegui pregar olho. da segunda, percebi porquê e o porquê não cabe em meia dúzia de linhas. em todo o caso, enquanto vou escrevendo um texto de reflexão para o meu blogue, adianto o seguinte. o filme anda à volta de Rudolph Höss, o SS chefe de Auschwitz, e da sua família. vivem uma vida banal numa moradia paredes meias com o campo de concentração. essa banalidade é arrepiante. Zona de Interesse ganhou um Oscar para o melhor filme internacional e, na sequência do discurso de Glazer na cerimónia da Academia, estalou a polémica. o cineasta, que, aliás, é judeu, aludiu à situação em Gaza, em certa medida estabelecendo um paralelo com o holocausto. dito isto, esteticamente o filme é de uma eficácia como há muito não via. nele, pouco é explícito, move-se no labirinto dos interditos, adopta uma estratégia de suspensão. não nomeia os monstros, mas fá-los sentir presentes. essa a razão pela qual, em rigor, não é um filme sobre o criminoso nazi que exterminou mais de um milhão pessoas em Auschwitz. é sobre as ameaças que pairam sobre o nosso tempo. percebi isso quando o vi pela segunda vez. aterrador.
Les Misérables de Ladj Ly
há neste filme um momento arrepiante. não tem violência explícita, sangue, cargas policiais, tiros ou lutas de gangues. aliás, não há nele vestígio da presença física de um ser humano. trata-se da imagem feita por um drone das colmeias de betão a perder de vista na periferia de Paris onde habitam dezenas de milhar de pessoas - os outros, os de pele escura, os de rituais estranhos - a quem são assacadas responsabilidades pelos males da sociedade. por sinal, a mesma sociedade que dizendo-se inclusiva expulsa os pobres e prefere vê-los longe porque olha para eles como uma ameaça. Les Misérables (2019) de Ladj Ly é um sinal dos tempos, explica sem retórica moralista a razão pela qual as sucessivas cedências à extrema-direita - a França sabe bem o que isso é - acabam por normalizar o racismo e a xenofobia criando gigantescos conglomerados de excluídos onde as circunstâncias promovem a educação de crianças e jovens para a revolta. se não viram, vejam. vale a pena. e se quiserem um quadro mais completo podem recuar um pouco no tempo e ver ou rever O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz. é fácil encontrar estes filmes nas múltiplas plataformas disponíveis.
Woody Allen
farto de ler a desgraça dos dias e, para mais, com um dia de chuva, fui tratar de lavar os olhos e a alma. no cinema. não me lembro de alguma vez ter ficado desapontado com uma fita de woody allen, apesar de volta e meia o nome dele aparecer no obituário da crítica. evidentemente, gosto mais de uns filmes do que de outros, mas encontro sempre, mesmo nos de que gosto menos, alguma coisa que me faz pensar, tantas vezes a rir. este roma será menos articulado que o anterior sobre paris, mas tem cenas hilariantes e um agudíssimo sentido crítico e autocrítico. fiquei muito bem disposto. sucede que ao chegr a casa, deparo com um tipo de fato cinzento na televisão a insultar-me. sugere que sou preguiçoso e malandro porque sou culpado de viver num país onde há muitas cigarras e poucas formigas. como estou farto de ser insultado, apeteceu-me obrigá-lo a ir ver o woody allen. depois caí em mim: dificilmente o tipo entenderia. marquei então encontro na rua.
William S. Burroughs
"Happiness is a byproduct of function, purpose, and conflict; those who seek happiness for itself seek victory without war."
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
Dark Waters de Todd Haynes
Dark Waters (2019) de Todd Haynes, produzido e protagonizado por Mark Ruffolo, é um filme baseado na história real do advogado que transformou a vida da DuPont num inferno. a DuPont é uma mega corporação de produtos químicos que durante décadas, contando com cumplicidades ao mais alto nível, contaminou a água de populações em West Virginia, causando danos e doenças irreversíveis em pessoas e animais. Rob Billot, sendo um advogado ambiental das grandes corporações, acabou por se virar contra elas e tornar-se defensor das vítimas. o filme obedece a uma estrutura clássica em três actos e é conduzido com a segurança já revelada por Haynes em filmes anteriores. os ambientalistas não podem perdê-lo. e eu diria que os advogados também só ganhariam em vê-lo. no Trindade, claro.
William Hurt
William Hurt era um actor estupendo. tinha uma impressionante capacidade camaleónica que lhe permitia assumir as personagens mais complexas. um exemplo, talvez o mais óbvio, Kiss of the Spider Woman (1985). mas eu gosto especialmente dele como Tom Grunick, o anchorman de Broadcast News (1987) de James L. Brooks, filme no qual os dispositivos da televisão são expostos de forma implacável. Grunick (William Hurt) é o repórter medíocre, o semi-analfabeto bem parecido, que chega a pivot de um telejornal e se transforma em estrela. ele nem sequer é má pessoa, é apenas uma nulidade a quem o estrelado conferiu o chamado efeito de aura. o fillme faz agora 35 anos. o actor faleceu hoje aos 71. para mim, também será sempre uma espécie de Amigo de Alex.
Paraíso de Sérgio Tréfaut
peguei na filhota e fomos ao Trindade. foi a minha primeira sessão de cinema em sala pós-liberalização do confinamento. o filme era Paraíso (2021) do Sérgio Tréfaut, um documentário rodado no Rio de Janeiro que nos dá uma extraordinária visão do país assombroso que é o Brasil, apesar de Bolsonaro. na verdade, estamos perante uma obra sem stars, mas com estrelas que refulgem intensamente, sem efeitos especiais, antes com exemplar rigor narrativo, sem espetáculo pastilha elástica tipo cabecinha de vento, mas onde palpita o maior de todos os espetáculos que é o espetáculo da vida proporcionado pela inteligência ao serviço de um cinema do real. Tréfaut transforma os protagonistas, pessoas de idades acima dos 80 anos que se reunem no Palacete do Rio para cantar, em personagens de fascinante densidade dramática. não é um pequeno feito. tanto mais que o pano de fundo é a música popular, raiz de algo profundo, autêntico, a que costumamos chamar identidade. com tanta porcaria mais ou menos esperta que por aí vai, deste Paraíso sai-se de alma lavada. eu, pelo menos, saí.
Don't Look Up de Adam McKay
este é o filme de que toda a gente fala, Don't Look Up (2021) de Adam McKay. dois cientistas descobrem um cometa de 10km em rota de colisão com a Terra. o impacto, a verificar-se, significará a extinção da vida no planeta. há seis meses para tomar medidas que evitem a catástrofe. o que daqui decorre é uma comédia negra sobre o nosso tempo: governantes incompetentes, assessores irresponsáveis, negacionistas da ciência, desinformação, culto das celebridades, prioridade absoluta ao entretenimento, a lógica do efémero, a enxurrada de barrelas cerebrais despejadas nas redes sociais, multidões acéfalas e, sobretudo, a mercantilização de tudo em nome do lucro associado aos gurus dos conglomerados tecnológicos. em suma, os sintomas do colapso do capitalismo. com Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence nos principais papeis, o filme conta também com Meryl Streep - uma presidente dos Estados Unidos à imagem de Trump - e uma fantástica Cate Blanchett no papel de pivot de televisão que expõe sem rodeios a natureza da coisa. vejam que vale a pena. não sei se está em sala, mas está na Netflix. a ironia é dar connosco a rir da tragédia que nos rodeia
Washington D.C.
nunca fui grande admirador de gore vidal enquanto romancista, embora sempre tenha reconhecido nele o interesse bastante para, de quando em vez, pegar num dos seus livros. entre estes, os que mais me agradam são os relacionados com a história da américa, habitualmente designados como Narrativas do Império. Washington, D.C. é o primeiro desse ciclo. li-o há muitíssimos anos, porventura no final dos anos 60, suponho que em joanesburgo. há dias, passando por uma banca de rua com livros à venda, dei com esta tradução portuguesa. desembolsei os 5 euros pedidos e voltei a lê-lo. vidal trata da sacanagem política em Washington D.C. num período que vai da Grande Depressão ao pós-guerra. o tempo de roosevelt, portanto. lá estão os interesses, as virtudes públicas e os vícios privados, o conúbio com os media, as facadas nas costas, os milionários nos bastidores, as alianças espúrias. observo há muito a política americana. no fundo, toca-nos a todos. e ultimamente, tenho seguido com atenção a campanha de bernie sanders, um político fenomenal, visto por muitos como um quixote, acossado dentro do seu próprio partido, mas que, contra tudo e contra todos, está a empolgar a juventude e a mobilizar muita gente. creio que foi por isso que, instintivamente, senti vontade de reler Washington D.C. - uma história de sacanagem, como disse.
Violeta
Violeta do russo Kantemir Balagov é um dos tais filmes que podia ter sido grande, mas que acabou por ficar a meio do caminho. extraviou-se. é o que dá quando um cineasta fica deslumbrado com o próprio virtuosismo e não percebe que ou a alegoria e transcendência nascem da respiração do filme ou simplesmente não acontecem. ou seja, por mais fascinante que seja a fotografia e deslumbrante a composição - é o caso -, há um ponto a partir do qual não há regresso. é quando o dispositivo, tomando o lugar do pulsar da vida na tela, instala o formalismo enquanto fim em si mesmo. por isso, a dada altura, as cenas arrastam-se numa espécie de auto-comprazimento que resulta em punição gratuita do público. Violeta tem ainda outros problemas. por exemplo, quer o pós-guerra em Leninegrado, quer a obra na qual se inspira, A Guerra não Tem Rosto de Mulher de Svetlana Alexievich, são radicalmente subvertidos na visão de Balagov. é essa a função do artista, dir-se-á. e é. o problema é quando a visão do artista escolhe um ponto de partida com o qual o ponto de chegada nada tem a ver. mas, sim, vão ver o filme. tenho lido tais maravilhas a propósito que o mais certo é eu estar enganado.
Vem e Vê
encham-se de coragem e não percam este filme assombroso. coragem porque nunca viram nada de semelhante. magoa até ao limite do humano. não percam porque é imensamente belo, terrivelmente lúcido. se virem, vão querer voltar a ver. eu já vi algumas. a primeira - lembro-me bem porque foi uma experiência inesquecível - foi na única projecção do filme em sala no porto, há muitos anos, era ainda o carlos alberto um cinema.
Velimir Khlebnikov
este é o poeta Velimir Khlebnikov tal como o viu o pintor Mikhail Larionov. ambos mergulharam no turbilhão das vanguardas artísticas russas das primeiras décadas do século XX. o linguista Roman Jakobson considerava Khlebnikov o poeta mais importante do século XX. Khlebnikov, que, por sinal, teve uma vida desgraçada, foi a grande influência de Maiakovski. eu gosto de todos eles, reencontrados, agora, nas tarefas de pôr alguma ordem nos acumulados
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
Um quadro de kazimir malevich e um poema de velimir khlebnikov
Bem pouco me basta!
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
As Thouhg I Had Wings
este livrinho tem pouco mais de cem páginas. é uma escrita caótica, notas avulsas autobiográficas sobre uma vida tão caótica quanto o estilo desalinhado e, talvez por isso, dilacerante. Chet fala das suas relações desgraçadas com as mulheres, da marginalidade do junkie sempre em busca de drogas, das repetidas prisões, da vida precária em Itália, do tocar em clubes a troco de cachês miseráveis. diz alguma coisa sobre Gerry Mullingan, mas os apontamentos sobre Jazz são breves, meras anotações de passagem como se houvesse pressa em chegar a um outro lugar, vá lá saber-se qual. enquanto literatura, As Thouhg I Had Wings não vai a lado nenhum. no entanto, para quem conhece a música superlativa de Chet Baker, e sabendo que era nela que ele encontrava sentido e transcendência, o livro acaba por ser revelador. justamente por ser o outro lado, por a música estar ausente.
Um Passado Perfeito
sempre gostei da literatura policial. volta e meia ressuscito o chandler, o hammet e mais uns tantos de uma galeria de favoritos cujas personagens me revelam muito daquilo que somos e dos lugares, reais ou simbólicos, onde nos movemos. o cubano leonardo padura está entre os favoritos. ele e o seu mário conde, um polícia cujo percurso de vida poderia ter sido outro, mas que acabou enredado na teia da marginalidade de havana, essa cidade fascinante que tanto prometera, todavia, distante de concretizar os seus melhores sonhos. conde é um polícia que gostaria de ter sido escritor, um homem que cumpre as suas funções sabendo que pisa terreno minado, alguém que apesar do cepticismo olha em volta e não se detém, sem heroísmo, e sabendo, porventura, que no fim da linha estará ainda mais só. estive em cuba em meados dos anos 90. andei por toda a ilha e não apenas por havana e pelas praias. o livro terá sido escrito por essa altura. lê-lo de novo foi um pouco como voltar a esse tempo. gosto de padura. gosto de havana. e gosto de cuba.
Trumbo de Jay Roach
Dalton Trumbo foi um dos grandes argumentistas de Hollywood. filmes como Férias em Roma, Spartacus ou Exodus têm a sua assinatura. ou melhor, nem sempre tiveram a sua assinatura, embora fosse ele o autor dos argumentos. porquê? porque o seu nome fez parte da famosa lista negra elaborada pelos anti-comunistas da indústria cinematográfica, entre os quais se destacava John Wayne, um actor de quem sempre gostei nos westerns de John Ford, todavia, um safado reaccionário do piorio na vida real. portanto, trumbo escrevia argumentos para sobreviver, mas outros davam a cara e o nome por ele. o filme (2015) é interessante a vários títulos, pese embora a inevitável tendência, muito americana, de deixar no ar, no final, a reconciliação das partes. o famoso processo dos 10 de Hollywood - é disso que o filme fala - foi construído numa altura em que o FBI era controlado pela extrema-direita e uma parte significativa da população acreditava em tudo quanto pudesse alimentar a paranoia anti-comunista criada pelas narrativas mediáticas. Madeleine Albright, no seu último livro, publicado pouco antes de falecer - nessa altura, é bom lembrar, à frente da Administração estava Trump - classificou a "caça às bruxas" do senador McCarthy como uma acção fascista e alertou para exemplos de derivas totalitárias na Europa, nomeadamente na Hungria e na Polónia, algo com que a UE, durante anos a fio, andou a fazer de conta. Trumbo, o filme, utiliza com critério imagens de arquivo, é rigoroso nas reconstituições, eficaz nas articulações dramáticas e tem grandes interpretações. é um bom filme para fazer um intervalo na enxurrada de propaganda que por aí vai. na foto está o verdadeiro Trumbo.
O Evangelho Segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini
Jesus Cristo, aliás, Enrique Irazoqui, com Pier Paolo Pasolini num intervalo da rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). numa altura em que as plataformas de streaming e os canais generalistas de televisão impingem pastelões requentados ou novidades pop aberrantes sobre a morte e ressurreição de Cristo, o filme de Pasolini, no meu entendimento, continua a ser, de longe, o que mais justiça faz ao tempo da Páscoa. posteriormente dedicado ao Papa João XXIII, inteiramente rodado em cenários naturais e com actores amadores, O Evangelho Segundo São Mateus começou por ser recebido com severas reservas pelos meios católicos. na verdade, essa reservas chegaram à proscrição. contudo, 50 anos mais tarde, o Osservatore Romano, jornal oficioso do Vaticano, viria a considerá-lo o melhor alguma vez feito sobre Cristo. uma bela lição para os tempos que correm. Pasolini, como bem sabeis, era comunista e homossexual. percebe-se, assim, a razão pela qual houve críticos, na altura, que não se deram sequer ao trabalho de ver o filme antes de o exorcizar.
Their Finest
outro filme feito por uma mulher, Lone Scherfig. chama-se Their Finest (2016), em português Heróis da Nação, e dei com ele por mero acaso no streaming. fui ler algumas críticas. uma ou outra eram tão más que obviamente tive de o ver até porque o tema me interessa deveras. pois vi e diverti-me bastante. estamos em Londres em 1940, há bombardeamentos todas as noites e a produção de filmes passou a estar sob a tutela do ministério da guerra. Catrin Cole (Gemma Arterton, uma magnífica atriz) concorre a um lugar de guionista para dar um toque feminino à propaganda. ganha o concurso. "lamechices", segundo os homens com quem trabalha. o filme em preparação, no qual Catrin vai colaborar, deveria ser uma espécie de Potemkin britânico. concluído, não é nada do género, mas põe toda a gente a chorar. do que verdadeiramente gosto em Their Finest - título inteligentemente surripiado a Churchil - é do sentido de humor. o filme lança um oblíquo olhar feminino sobre o mundo do cinema, troça gentilmente do modo como as coisas são feitas, expõe as fragilidades masculinas, ridiculariza o cinema de estúdio americano, diverte-se ao colocar um documentarista a rodar um filme de ficção, enfim, de forma subtil, vira a ordem estabelecida de pernas para o ar. é um filme sobre outro filme a fazer que uma vez feito acabará por nada ter a ver com o filme que deveria ter sido um Potemkin. quem conhecer um pouco dos meandros do cinema britânico divertir-se-á a dobrar. quem não conhecer diverte-se na mesma. aliás, a realizadora, Lone Scherfig, até é dinamarquesa.
The Third Man de Carol Reed
este filme (1949) é genial. e tão actual... o script é de Graham Greene, mas Orson Welles deu-lhe uma grande volta. algumas das melhores tiradas são dele. Welles é Harry Lime. Joseph Cotten é Holly Martins. ora vejam esta fala:
Harry Lime: “Don't be so gloomy. After all it's not that awful. Like the fella says, in Italy for 30 years under the Borgias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they had 500 years of democracy and peace, and what did that produce? The cuckoo clock. So long Holly.”
Harry Lime: “Don't be so gloomy. After all it's not that awful. Like the fella says, in Italy for 30 years under the Borgias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they had 500 years of democracy and peace, and what did that produce? The cuckoo clock. So long Holly.”
Também o que é Eterno
Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.
Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!
A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.
Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.
Manuel Resende, in 'O Mundo Clamoroso, Ainda
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.
Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!
A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.
Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.
Manuel Resende, in 'O Mundo Clamoroso, Ainda
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