25 de junho de 1975. Samora Machel, o guerrilheiro e líder da Frelimo, proclama a independência de Moçambique. Samora trabalhou com o meu pai no Hospital de Lourenço Marques. Foi durante pouco tempo, mas o tempo bastante para, anos mais tarde, ao conhecer o meu tio Carlos Costa, dirigente do PCP, lhe dizer: tu és cunhado do dr. Costa Campos, por isso nós somos família. Conto a história só para que se saiba o quanto foram grandes as minhas expetativas a respeito de Moçambique independente. Pela minha parte falei uma única vez com Samora, em Guimarães, durante uma visita de Estado que fez a portugal e parte da qual acompanhei enquanto jornalista. Disse-lhe quem era e ele, com aquele sorriso de orelha a orelha que o distinguia, disse-me: volta para lá! Na verdade, saí de Moçambique em 1973 e nunca mais lá voltei. Até hoje. Nesta data, 44 anos depois da independência, bem gostaria que Moçambique tivesse encontrado o seu rumo. O mundo dá muitas voltas e nem sempre pula e avança. Fosse vivo, Samora diria: A luta continua!
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viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR
31 de out. de 20201 min de leitura
Em 1937, uma capa da Life mostrava Hitler e Goebbels nos jardins da nova casa de Leni Riefensthal, um lugar muito aprazível. Nesse mesmo ano, os dois sujeitos tinham uma divergência curiosa. Ambos diziam que a propaganda era tudo. Mas Goebbels entendia que, para ser eficaz, a propaganda não devia ser percepcionada enquanto tal. Hitler, pelo contrário, defendia a mentira pura e dura posto que, sem contraditório, seria sempre a verdade. Com o tempo e com a guerra prevaleceu o princípio segundo o qual uma mentira muitas vezes repetida torna-se verdade. Hoje, os manuais dos marqueteiros de campanhas assumem que o dito foi não dito porque foi dito com a maior naturalidade
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30 de out. de 20201 min de leitura
Memória. Outubro de 1934. O Japão ocupava a China. Ao invés do combate ao invasor, Chiang Kai-Shek deu prioridade ao aniquilamento dos comunistas. Mao e o seu exército refugiaram-se na província de Kiangsi. A guerra intensificou-se. Apoiados por peritos militares alemães, os nacionalistas de Chiang Kai-Shek cercaram as tropas maoistas. Cem mil soldados do Exército Vermelho conseguiram romper o boqueio, iniciando a lendária longa marcha de mais de 10 mil quilómetros. Só 20 mil sobreviveram à fome, à doença, ao cansaço e aos combates com os nacionalistas. Foram os bastantes para criar uma república comunista no norte. 15 anos mais tarde, era proclamada a República Popular da China. A Longa Marcha foi há mais de 80 anos. Hoje, a China é o que é. Mais o que dela cada um de nós quiser que ela seja.
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Jorge Campos
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"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."
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Out of the Past
o filme é Out of the Past (1947) de jacques tourneur. ela é a fabulosa jane greer, femme fatale do film noir. uma das tais por quem o rapaz perde a cabeça até descobrir que ela, afinal, não é indefesa e está perfeitamente à vontade com um 38 nas mãos. enfim, perigo. gosto.
Um Fascinante Jogo de Máscaras
Sorge, de um fôlego: combate pelo exército imperial alemão na I Guerra Mundial, fica gravemente ferido, é condecorado com uma Cruz de Guerra, torna-se marxista e adere ao Partido Comunista na Alemanha, faz um doutoramento em Ciência Política, entra para o Comintern, é enviado para instigar a Revolução em diversos países, consegue infiltrar-se e obter o cartão de membro do partido nazi em Berlim, vai viver para Moscovo, é enviado pela União Soviética para Xangai onde cria uma tremenda rede de espionagem, segue depois para o Japão, fazendo-se passar por especialista dos assuntos da região, torna-se íntimo do embaixador do III Reich em Tóquio - e amante da sua mulher - tem acesso a informação ultra secreta que durante anos transmite ao Centro, avisa Estaline da Operação Barbarossa, nome de código da invasão da URSS pela Wehrmacht e seus aliados do Eixo, em suma, um tipo com uma vida tão assombrosa tinha de ficar para a História como o mais formidável espião de todos os tempos. Richard Sorge ou Ramsey, o mais conhecido dos seus nomes de código, tinha, obviamente, características pessoais singularíssimas: bebedor incorrigível, amante insaciável, viciado na velocidade das suas motos e automóveis, orador brilhante, intelectual de altíssima craveira, jornalista respeitado, indefectível comunista: sentia-se na vertigem do perigo como peixe na água. de tal modo que no jogo do gato e do rato iniciado com os processos de Moscovo, na sequência dos quais foram executados sucessivamente seis diretores do seu Comando - os seus superiores - Sorge conseguiu escapar à purga. não escapou foi à polícia japonesa. preso no final de 1941, seria enforcado em 1944. pensou até ao fim que a URRS acabaria por resgatá-lo. nunca soube, embora suspeitasse, que Estaline o considerava um agente duplo, mandando para o cesto do lixo as suas informações. subiu ao patíbulo com vivas à Revolução. foi reabilitado após o XX Congresso do PCUS e considerado herói da União Soviética. a história de Sorge tem sido contada de muitas maneiras ao longo dos anos. em ensaios, no cinema, na literatura. este livro de Owem Matthews, porém, recolhe informações só há pouco tornadas públicas, designadamente dos arquivos da polícia secreta russa. por vezes, apresenta dados contraditórios. eu diria que, tratando-se de espionagem, isso é natural. vale a pena lê-lo pelo que revela sobre os meandros da política, sobretudo agora quando a invasão da Ucrânia é representada de modo simplificadamente maniqueísta. já agora, este leitor leu muito sobre espiões. adora o tema. o que de mais fascinante encontrou neste livro foi o jogo de máscaras, sempre uma chave para ler a guerra e o mundo.
Les Misérables de Ladj Ly
há neste filme um momento arrepiante. não tem violência explícita, sangue, cargas policiais, tiros ou lutas de gangues. aliás, não há nele vestígio da presença física de um ser humano. trata-se da imagem feita por um drone das colmeias de betão a perder de vista na periferia de Paris onde habitam dezenas de milhar de pessoas - os outros, os de pele escura, os de rituais estranhos - a quem são assacadas responsabilidades pelos males da sociedade. por sinal, a mesma sociedade que dizendo-se inclusiva expulsa os pobres e prefere vê-los longe porque olha para eles como uma ameaça. Les Misérables (2019) de Ladj Ly é um sinal dos tempos, explica sem retórica moralista a razão pela qual as sucessivas cedências à extrema-direita - a França sabe bem o que isso é - acabam por normalizar o racismo e a xenofobia criando gigantescos conglomerados de excluídos onde as circunstâncias promovem a educação de crianças e jovens para a revolta. se não viram, vejam. vale a pena. e se quiserem um quadro mais completo podem recuar um pouco no tempo e ver ou rever O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz. é fácil encontrar estes filmes nas múltiplas plataformas disponíveis.
Woody Allen
farto de ler a desgraça dos dias e, para mais, com um dia de chuva, fui tratar de lavar os olhos e a alma. no cinema. não me lembro de alguma vez ter ficado desapontado com uma fita de woody allen, apesar de volta e meia o nome dele aparecer no obituário da crítica. evidentemente, gosto mais de uns filmes do que de outros, mas encontro sempre, mesmo nos de que gosto menos, alguma coisa que me faz pensar, tantas vezes a rir. este roma será menos articulado que o anterior sobre paris, mas tem cenas hilariantes e um agudíssimo sentido crítico e autocrítico. fiquei muito bem disposto. sucede que ao chegr a casa, deparo com um tipo de fato cinzento na televisão a insultar-me. sugere que sou preguiçoso e malandro porque sou culpado de viver num país onde há muitas cigarras e poucas formigas. como estou farto de ser insultado, apeteceu-me obrigá-lo a ir ver o woody allen. depois caí em mim: dificilmente o tipo entenderia. marquei então encontro na rua.
William S. Burroughs
"Happiness is a byproduct of function, purpose, and conflict; those who seek happiness for itself seek victory without war."
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
Dark Waters de Todd Haynes
Dark Waters (2019) de Todd Haynes, produzido e protagonizado por Mark Ruffolo, é um filme baseado na história real do advogado que transformou a vida da DuPont num inferno. a DuPont é uma mega corporação de produtos químicos que durante décadas, contando com cumplicidades ao mais alto nível, contaminou a água de populações em West Virginia, causando danos e doenças irreversíveis em pessoas e animais. Rob Billot, sendo um advogado ambiental das grandes corporações, acabou por se virar contra elas e tornar-se defensor das vítimas. o filme obedece a uma estrutura clássica em três actos e é conduzido com a segurança já revelada por Haynes em filmes anteriores. os ambientalistas não podem perdê-lo. e eu diria que os advogados também só ganhariam em vê-lo. no Trindade, claro.
William Hurt
William Hurt era um actor estupendo. tinha uma impressionante capacidade camaleónica que lhe permitia assumir as personagens mais complexas. um exemplo, talvez o mais óbvio, Kiss of the Spider Woman (1985). mas eu gosto especialmente dele como Tom Grunick, o anchorman de Broadcast News (1987) de James L. Brooks, filme no qual os dispositivos da televisão são expostos de forma implacável. Grunick (William Hurt) é o repórter medíocre, o semi-analfabeto bem parecido, que chega a pivot de um telejornal e se transforma em estrela. ele nem sequer é má pessoa, é apenas uma nulidade a quem o estrelado conferiu o chamado efeito de aura. o fillme faz agora 35 anos. o actor faleceu hoje aos 71. para mim, também será sempre uma espécie de Amigo de Alex.
Paraíso de Sérgio Tréfaut
peguei na filhota e fomos ao Trindade. foi a minha primeira sessão de cinema em sala pós-liberalização do confinamento. o filme era Paraíso (2021) do Sérgio Tréfaut, um documentário rodado no Rio de Janeiro que nos dá uma extraordinária visão do país assombroso que é o Brasil, apesar de Bolsonaro. na verdade, estamos perante uma obra sem stars, mas com estrelas que refulgem intensamente, sem efeitos especiais, antes com exemplar rigor narrativo, sem espetáculo pastilha elástica tipo cabecinha de vento, mas onde palpita o maior de todos os espetáculos que é o espetáculo da vida proporcionado pela inteligência ao serviço de um cinema do real. Tréfaut transforma os protagonistas, pessoas de idades acima dos 80 anos que se reunem no Palacete do Rio para cantar, em personagens de fascinante densidade dramática. não é um pequeno feito. tanto mais que o pano de fundo é a música popular, raiz de algo profundo, autêntico, a que costumamos chamar identidade. com tanta porcaria mais ou menos esperta que por aí vai, deste Paraíso sai-se de alma lavada. eu, pelo menos, saí.
Don't Look Up de Adam McKay
este é o filme de que toda a gente fala, Don't Look Up (2021) de Adam McKay. dois cientistas descobrem um cometa de 10km em rota de colisão com a Terra. o impacto, a verificar-se, significará a extinção da vida no planeta. há seis meses para tomar medidas que evitem a catástrofe. o que daqui decorre é uma comédia negra sobre o nosso tempo: governantes incompetentes, assessores irresponsáveis, negacionistas da ciência, desinformação, culto das celebridades, prioridade absoluta ao entretenimento, a lógica do efémero, a enxurrada de barrelas cerebrais despejadas nas redes sociais, multidões acéfalas e, sobretudo, a mercantilização de tudo em nome do lucro associado aos gurus dos conglomerados tecnológicos. em suma, os sintomas do colapso do capitalismo. com Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence nos principais papeis, o filme conta também com Meryl Streep - uma presidente dos Estados Unidos à imagem de Trump - e uma fantástica Cate Blanchett no papel de pivot de televisão que expõe sem rodeios a natureza da coisa. vejam que vale a pena. não sei se está em sala, mas está na Netflix. a ironia é dar connosco a rir da tragédia que nos rodeia
Washington D.C.
nunca fui grande admirador de gore vidal enquanto romancista, embora sempre tenha reconhecido nele o interesse bastante para, de quando em vez, pegar num dos seus livros. entre estes, os que mais me agradam são os relacionados com a história da américa, habitualmente designados como Narrativas do Império. Washington, D.C. é o primeiro desse ciclo. li-o há muitíssimos anos, porventura no final dos anos 60, suponho que em joanesburgo. há dias, passando por uma banca de rua com livros à venda, dei com esta tradução portuguesa. desembolsei os 5 euros pedidos e voltei a lê-lo. vidal trata da sacanagem política em Washington D.C. num período que vai da Grande Depressão ao pós-guerra. o tempo de roosevelt, portanto. lá estão os interesses, as virtudes públicas e os vícios privados, o conúbio com os media, as facadas nas costas, os milionários nos bastidores, as alianças espúrias. observo há muito a política americana. no fundo, toca-nos a todos. e ultimamente, tenho seguido com atenção a campanha de bernie sanders, um político fenomenal, visto por muitos como um quixote, acossado dentro do seu próprio partido, mas que, contra tudo e contra todos, está a empolgar a juventude e a mobilizar muita gente. creio que foi por isso que, instintivamente, senti vontade de reler Washington D.C. - uma história de sacanagem, como disse.
Violeta
Violeta do russo Kantemir Balagov é um dos tais filmes que podia ter sido grande, mas que acabou por ficar a meio do caminho. extraviou-se. é o que dá quando um cineasta fica deslumbrado com o próprio virtuosismo e não percebe que ou a alegoria e transcendência nascem da respiração do filme ou simplesmente não acontecem. ou seja, por mais fascinante que seja a fotografia e deslumbrante a composição - é o caso -, há um ponto a partir do qual não há regresso. é quando o dispositivo, tomando o lugar do pulsar da vida na tela, instala o formalismo enquanto fim em si mesmo. por isso, a dada altura, as cenas arrastam-se numa espécie de auto-comprazimento que resulta em punição gratuita do público. Violeta tem ainda outros problemas. por exemplo, quer o pós-guerra em Leninegrado, quer a obra na qual se inspira, A Guerra não Tem Rosto de Mulher de Svetlana Alexievich, são radicalmente subvertidos na visão de Balagov. é essa a função do artista, dir-se-á. e é. o problema é quando a visão do artista escolhe um ponto de partida com o qual o ponto de chegada nada tem a ver. mas, sim, vão ver o filme. tenho lido tais maravilhas a propósito que o mais certo é eu estar enganado.
Vem e Vê
encham-se de coragem e não percam este filme assombroso. coragem porque nunca viram nada de semelhante. magoa até ao limite do humano. não percam porque é imensamente belo, terrivelmente lúcido. se virem, vão querer voltar a ver. eu já vi algumas. a primeira - lembro-me bem porque foi uma experiência inesquecível - foi na única projecção do filme em sala no porto, há muitos anos, era ainda o carlos alberto um cinema.
Velimir Khlebnikov
este é o poeta Velimir Khlebnikov tal como o viu o pintor Mikhail Larionov. ambos mergulharam no turbilhão das vanguardas artísticas russas das primeiras décadas do século XX. o linguista Roman Jakobson considerava Khlebnikov o poeta mais importante do século XX. Khlebnikov, que, por sinal, teve uma vida desgraçada, foi a grande influência de Maiakovski. eu gosto de todos eles, reencontrados, agora, nas tarefas de pôr alguma ordem nos acumulados
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
Um quadro de kazimir malevich e um poema de velimir khlebnikov
Bem pouco me basta!
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
As Thouhg I Had Wings
este livrinho tem pouco mais de cem páginas. é uma escrita caótica, notas avulsas autobiográficas sobre uma vida tão caótica quanto o estilo desalinhado e, talvez por isso, dilacerante. Chet fala das suas relações desgraçadas com as mulheres, da marginalidade do junkie sempre em busca de drogas, das repetidas prisões, da vida precária em Itália, do tocar em clubes a troco de cachês miseráveis. diz alguma coisa sobre Gerry Mullingan, mas os apontamentos sobre Jazz são breves, meras anotações de passagem como se houvesse pressa em chegar a um outro lugar, vá lá saber-se qual. enquanto literatura, As Thouhg I Had Wings não vai a lado nenhum. no entanto, para quem conhece a música superlativa de Chet Baker, e sabendo que era nela que ele encontrava sentido e transcendência, o livro acaba por ser revelador. justamente por ser o outro lado, por a música estar ausente.
Um Passado Perfeito
sempre gostei da literatura policial. volta e meia ressuscito o chandler, o hammet e mais uns tantos de uma galeria de favoritos cujas personagens me revelam muito daquilo que somos e dos lugares, reais ou simbólicos, onde nos movemos. o cubano leonardo padura está entre os favoritos. ele e o seu mário conde, um polícia cujo percurso de vida poderia ter sido outro, mas que acabou enredado na teia da marginalidade de havana, essa cidade fascinante que tanto prometera, todavia, distante de concretizar os seus melhores sonhos. conde é um polícia que gostaria de ter sido escritor, um homem que cumpre as suas funções sabendo que pisa terreno minado, alguém que apesar do cepticismo olha em volta e não se detém, sem heroísmo, e sabendo, porventura, que no fim da linha estará ainda mais só. estive em cuba em meados dos anos 90. andei por toda a ilha e não apenas por havana e pelas praias. o livro terá sido escrito por essa altura. lê-lo de novo foi um pouco como voltar a esse tempo. gosto de padura. gosto de havana. e gosto de cuba.
Trumbo de Jay Roach
Dalton Trumbo foi um dos grandes argumentistas de Hollywood. filmes como Férias em Roma, Spartacus ou Exodus têm a sua assinatura. ou melhor, nem sempre tiveram a sua assinatura, embora fosse ele o autor dos argumentos. porquê? porque o seu nome fez parte da famosa lista negra elaborada pelos anti-comunistas da indústria cinematográfica, entre os quais se destacava John Wayne, um actor de quem sempre gostei nos westerns de John Ford, todavia, um safado reaccionário do piorio na vida real. portanto, trumbo escrevia argumentos para sobreviver, mas outros davam a cara e o nome por ele. o filme (2015) é interessante a vários títulos, pese embora a inevitável tendência, muito americana, de deixar no ar, no final, a reconciliação das partes. o famoso processo dos 10 de Hollywood - é disso que o filme fala - foi construído numa altura em que o FBI era controlado pela extrema-direita e uma parte significativa da população acreditava em tudo quanto pudesse alimentar a paranoia anti-comunista criada pelas narrativas mediáticas. Madeleine Albright, no seu último livro, publicado pouco antes de falecer - nessa altura, é bom lembrar, à frente da Administração estava Trump - classificou a "caça às bruxas" do senador McCarthy como uma acção fascista e alertou para exemplos de derivas totalitárias na Europa, nomeadamente na Hungria e na Polónia, algo com que a UE, durante anos a fio, andou a fazer de conta. Trumbo, o filme, utiliza com critério imagens de arquivo, é rigoroso nas reconstituições, eficaz nas articulações dramáticas e tem grandes interpretações. é um bom filme para fazer um intervalo na enxurrada de propaganda que por aí vai. na foto está o verdadeiro Trumbo.
O Evangelho Segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini
Jesus Cristo, aliás, Enrique Irazoqui, com Pier Paolo Pasolini num intervalo da rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). numa altura em que as plataformas de streaming e os canais generalistas de televisão impingem pastelões requentados ou novidades pop aberrantes sobre a morte e ressurreição de Cristo, o filme de Pasolini, no meu entendimento, continua a ser, de longe, o que mais justiça faz ao tempo da Páscoa. posteriormente dedicado ao Papa João XXIII, inteiramente rodado em cenários naturais e com actores amadores, O Evangelho Segundo São Mateus começou por ser recebido com severas reservas pelos meios católicos. na verdade, essa reservas chegaram à proscrição. contudo, 50 anos mais tarde, o Osservatore Romano, jornal oficioso do Vaticano, viria a considerá-lo o melhor alguma vez feito sobre Cristo. uma bela lição para os tempos que correm. Pasolini, como bem sabeis, era comunista e homossexual. percebe-se, assim, a razão pela qual houve críticos, na altura, que não se deram sequer ao trabalho de ver o filme antes de o exorcizar.
Their Finest
outro filme feito por uma mulher, Lone Scherfig. chama-se Their Finest (2016), em português Heróis da Nação, e dei com ele por mero acaso no streaming. fui ler algumas críticas. uma ou outra eram tão más que obviamente tive de o ver até porque o tema me interessa deveras. pois vi e diverti-me bastante. estamos em Londres em 1940, há bombardeamentos todas as noites e a produção de filmes passou a estar sob a tutela do ministério da guerra. Catrin Cole (Gemma Arterton, uma magnífica atriz) concorre a um lugar de guionista para dar um toque feminino à propaganda. ganha o concurso. "lamechices", segundo os homens com quem trabalha. o filme em preparação, no qual Catrin vai colaborar, deveria ser uma espécie de Potemkin britânico. concluído, não é nada do género, mas põe toda a gente a chorar. do que verdadeiramente gosto em Their Finest - título inteligentemente surripiado a Churchil - é do sentido de humor. o filme lança um oblíquo olhar feminino sobre o mundo do cinema, troça gentilmente do modo como as coisas são feitas, expõe as fragilidades masculinas, ridiculariza o cinema de estúdio americano, diverte-se ao colocar um documentarista a rodar um filme de ficção, enfim, de forma subtil, vira a ordem estabelecida de pernas para o ar. é um filme sobre outro filme a fazer que uma vez feito acabará por nada ter a ver com o filme que deveria ter sido um Potemkin. quem conhecer um pouco dos meandros do cinema britânico divertir-se-á a dobrar. quem não conhecer diverte-se na mesma. aliás, a realizadora, Lone Scherfig, até é dinamarquesa.
The Third Man de Carol Reed
este filme (1949) é genial. e tão actual... o script é de Graham Greene, mas Orson Welles deu-lhe uma grande volta. algumas das melhores tiradas são dele. Welles é Harry Lime. Joseph Cotten é Holly Martins. ora vejam esta fala:
Harry Lime: “Don't be so gloomy. After all it's not that awful. Like the fella says, in Italy for 30 years under the Borgias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they had 500 years of democracy and peace, and what did that produce? The cuckoo clock. So long Holly.”
Harry Lime: “Don't be so gloomy. After all it's not that awful. Like the fella says, in Italy for 30 years under the Borgias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they had 500 years of democracy and peace, and what did that produce? The cuckoo clock. So long Holly.”
Também o que é Eterno
Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.
Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!
A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.
Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.
Manuel Resende, in 'O Mundo Clamoroso, Ainda
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.
Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!
A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.
Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.
Manuel Resende, in 'O Mundo Clamoroso, Ainda
The Stranger (1946) de Orson Welles
face à enxurrada de propaganda travestida de jornalismo e do lixo que abunda na generalidade da oferta das plataformas da moda, nada como regressar àquilo que sabemos continuará a surpreender-nos. rever fitas como esta não é um ritual de nostalgia, é um exercício de imaginação. apesar de obediente aos cânones do cinema de género de Hollywood, The Stranger é uma lição magistral de Cinema. Orson não o valorizava especialmente, talvez por o ver demasiado colado à narrativa clássica. mas pouco importa. importa, sim, é o glorioso preto e branco, os ângulos expressionistas, a incidência da luz, a atmosfera, a fluidez dos cortes, as interpretações superlativas que dão corpo a um dos melhores noir saídos dos estúdios. em síntese, um investigador de crimes de guerra de nome Wilson (Edward G. Robinson) persegue um criminoso nazi que se faz passar por Charles Rankin (Orson Welles), professor numa pequena localidade do Connecticut. Rankin está noivo e vem a casar com Mary Longstreet (Loretta Young), filha de um destacado juiz americano. daqui resulta um ensaio sobre a pestilência moral e intelectual do vírus do fascismo que tanto pode alcançar os lugares mais remotos quanto avançar insidiosamente onde tudo é supostamente adquirido e seguro para atacar os corpos e corromper as almas.
The Social Dilema
o dilema é como lidar com as redes sociais. não é um problema menor, é uma grandíssima questão. nelas coexistem a utopia do acesso à razão e ao conhecimento sem limites e a distopia da irracionalidade imposta por modelos de negócios cuja busca do lucro não enjeita, antes exige, a manipulação e a disseminação da ignorância. os testemunhos são de executivos do Facebook, Instagram, Google e outras plataformas e não deixam lugar a dúvidas quanto ao admirável mundo novo dos algoritmos. a produção deliberada de fake news, por exemplo, é altamente lucrativa e não falta quem tire partido com consequências políticas, económicas e sociais em larga escala. por outro lado, é indispensável ao sistema criar junkies incapazes de viver sem estarem conectados, uma vez que só assim, dependentes e inconscientes, podem ser vendidos aos anunciantes como produto. mas é ver. está na Netflix e é muito bem feito. dá que pensar.
The Roaring Twenties
para conhecer a américa dos anos 20 do século passado, nada melhor do que os filmes de gangsters. este é uma obra prima. chama-se The Roaring Twenties (1939), tem a assinatura de Raoul Walsh e está lá a década por inteiro. começa no final da I Guerra Mundial e vai até à Grande Depressão. é uma tremenda alegoria na qual cabem polícias e ladrões, a lei seca, glamour, Hollywood, o jazz e, como não podia deixar de ser, alusões a Scott Fitzgeral e ao seu incomparável Gatsby. se não viram, vejam. e acreditem que muitos destes gangsters eram bem melhores que o tipo que fez a marcha sobre Roma.
John Le Carré
John le Carré, mais do que autor de livros de espionagem e criador do famoso agente George Smiley do M.I.6, era um escritor de magnífica elegância e mestre no conhecimento dos homens. os seus livros sobre a Guerra Fria, nos quais Smiley se confronta com o seu homólogo soviético Karda, estão entre os meus favoritos. Smiley e Karda são, afinal, muito semelhantes, com as mesmas ambiguidades, dúvidas, prudência e enigmas. Le Carré tem uma outra particularidade, nunca autorizou que os seus livros entrassem em corridas a prémios literários. se o tivesse feito, provavelmente, não teria onde os guardar. faleceu agora. tudo me leva a crer que continuará a ser lido.
Ler
C A T E G O R I A S
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