No primeiro dia do ano 2023, os museus e monumentos de Roma, de um modo geral bastante caros, abriram as portas sem custos a quem quisesse por lá passar. É uma prática habitual no Ano Novo. A oferta, vastíssima, excedia, na verdade, a área dos museus e monumentos: tinha visitas guiadas à Ópera, um concerto de homenagem a Ennio Morricone, múltiplas iniciativas no âmbito das comemorações do centenário de Pier Paolo Pasolini, enfim, não vale a pena enumerar, a lista seria interminável. Pela minha parte, inscrevi-me numa visita guiada para 25 pessoas à casa onde viveu Mussolini, na Villa Torlonia. À hora marcada, sem saber bem ao que ia, lá estava eu a subir as escadas do palacete, agora museu, estupendamente recuperado. Muito impressivo. Enquanto percorria as diversas divisões uma guia simpática ia explicando a ascensão, consolidação e queda do fascismo italiano, abordando, de passagem, episódios da vida familiar do Duce e da mulher Rachele Guidi de quem teve cinco filhos. estávamos neste ponto, colocou-se a meu lado um tipo muito alto, magríssimo, vestido de negro, a fazer lembrar uma das personagens de O Baile de Ettore Scola, um fascista. Inclinou-se e segredou-me algo que não entendi. Mas o homem insistiu, muito devagar, baixinho: “O Duce também teve um número ainda indeterminado de filhos ilegítimos.” Percebi. A guia falava já do patriarcado no tempo de Mussolini e exibia uma foto de uma família com dez filhos, todos em uniforme, alinhados em escadinha, ladeados pelos progenitores e, segundo ela, educados para serem saudáveis, as meninas boas mães e os meninos bons soldados. O tipo magríssimo afivelou um sorriso de cera, puxou-me um pouco para o lado e segredou-me: “Quinto Navarro.” Quinto o quê, Quinto Navarro, fiquei na mesma, o mordomo do Duce, ah, "Quinto Navarro disse que Mussolini teve relações sexuais com 7665 mulheres." Como? 7665 mulheres, repetiu, com os dedos unidos diante da boca e as mãos em êxtase. Esgueirei-me para junto de um casal talvez na casa dos 80, ambos impecavelmente vestidos, ela com as pregas do rosto cheias de pó de arroz e lábios muito pintados em forma de coração, ele de alfinete na gravata, bengala encastoada e luvas de pelica. Dizia a guia que pela casa, habitada pela família entre 1925 e 1944, tinham passado celebridades como Toscanini e Marconi e participantes da Marcha sobre Roma de 1922 como Bono, Balbo e Vecchi. Aludiu depois a umas quantas singularidades do Duce como sejam o apreço pela música e pelo cinema. O casal fez que sim, aprovadoramente, com a cabeça. Depois vieram os desgostos. As coisas complicaram-se. Mussolini raramente via a mulher, a filha mais velha, Edda, casada com o Conde Ciano, viu o pai mandar executar o marido também ele, de resto, quase sempre ausente do lar. Já Romano, outro filho, teve melhor sorte. Foi um excelente pianista de Jazz e casou com uma irmã de Sofia Loren. O casal de velhotes manifestava-se ora agradado ora desagradado com o relato, acenando com a cabeça. Para o fim, ficou o quarto de Rachele Guidi onde se conserva ainda a sua cama: tanto bom gosto, sussurrou-me ao ouvido a senhora de lábios pintados em forma de coração a tocar-me familiarmente no braço. Sorri o melhor que pude. Estava a lembrar-me do fim do Duce e da amante Clara Petacci executados pela Resistência e exibidos, pendurados pelos pés, na Piazzale Loreto de Milão.
p.s. Nesta viagem, não fiquei surpreendido com as novas obras e reedições sobre o Mussolini e o Fascismo à venda nas livrarias de Roma.