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viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR


Jorge Campos
há 3 dias6 min de leitura






Jorge Campos
9 de jul.10 min de leitura

Jorge Campos
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"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."

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A Casada Infiel
(poema de Federico García Lorca, nascido no ano de 1898. detido e fuzilado pelos fascistas de Franco no dia 19 de agosto de 1936)
A Casada Infiel
Levei-a comigo ao rio,
pensando que era donzela,
porém já tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Os lampiões se apagaram
e acenderam-se os grilos.
Nas derradeiras esquinas
toquei seus peitos dormidos
e pra mim logo se abriram
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava no meu ouvido,
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.
*
Passadas as sarçamoras
os juncos e os espinheiros,
por debaixo da folhagem
fiz um fojo sobre o limo.
Minha gravata tirei.
Tirou ela seu vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais ao luar
resplandecem com tal brilho.
Suas coxas me fugiam
como peixes surpreendidos,
metade cheia de lume,
metade cheia de frio.
Percorri naquela noite
o mais belo dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Dizer não quero, homem sendo,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
trouxe-a comigo do rio.
A aragem travava luta
com as espadas dos lírios.
Portei-me como quem sou.
Como um gitano legítimo.
Uma cesta de costura
dei-lhe de raso palhiço
e não quis enamorar-me
porque tendo ela marido
me disse que era donzela
quando a levava eu ao rio.
Federico García Lorca, in 'Romanceiro Gitano'
Levei-a comigo ao rio,
pensando que era donzela,
porém já tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Os lampiões se apagaram
e acenderam-se os grilos.
Nas derradeiras esquinas
toquei seus peitos dormidos
e pra mim logo se abriram
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava no meu ouvido,
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.
*
Passadas as sarçamoras
os juncos e os espinheiros,
por debaixo da folhagem
fiz um fojo sobre o limo.
Minha gravata tirei.
Tirou ela seu vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais ao luar
resplandecem com tal brilho.
Suas coxas me fugiam
como peixes surpreendidos,
metade cheia de lume,
metade cheia de frio.
Percorri naquela noite
o mais belo dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Dizer não quero, homem sendo,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
trouxe-a comigo do rio.
A aragem travava luta
com as espadas dos lírios.
Portei-me como quem sou.
Como um gitano legítimo.
Uma cesta de costura
dei-lhe de raso palhiço
e não quis enamorar-me
porque tendo ela marido
me disse que era donzela
quando a levava eu ao rio.
Federico García Lorca, in 'Romanceiro Gitano'

A Complete Unknown (2024) de James Mangold
eis um filme simpático sobre um dos maiores ícones da música contemporânea, Bob Dylan. não se trata de uma biografia. o foco está nos anos de afirmação, aqueles durante os quais o artista e a respetiva persona ganharam corpo. vão do início da década de 60 até 1967, quando D. A. Pennebaker estreou o documentário Bob Dylan: Dont Look Back, um dos monumentos do cinema direto, cuja estética, de resto, está presente no filme de James Mangold, tal como, acrescente-se, o texto do volume I de Chronicles, no qual Dylan reporta a sua chegada a NY em demanda do mundo da folk music. já agora, Chronicles, é uma espécie de equivalente em prosa de uma poesia cujas raízes mergulham nessa cultura popular americana habitada por gente como Woody Guthry e Pete Seeger, por Leadbelly, pelos blues do delta do Mississipi, aqui e ali, também pela geração Beat, pelo gospel, o jazz e, claro, pelo o rock’ n roll. o maior mérito de A Complete Unknown talvez releve do modo como Mangold articulou os anos da brasa americanos, as suas lutas sociais, o movimento cívico, o Vietname, com as canções que Dylan foi escrevendo a um ritmo obsessivo, cada vez mais contundentes no protesto, exigentes na forma e inseparáveis da rebeldia do criador. quanto ao mais, lá estão os apontamentos sobre Guthrie e Seeger, bem como sobre as duas mulheres que mais marcaram a vida do cantautor nessa fase, Joan (Baez) e Sylvie (Russo). grandes interpretações de Timothée Chalamet, Edward Norton, Elle Fanning e Monica Barbaro. é ver que vê-se bem. e quem quiser saber um pouco mais da história é ver a recensão que fiz de Chrocles, aqui: https://www.narrativasdoreal.com/.../dylan-not-run-by-god...

A Estrada San Giovanni de Italo Calvino
este livrinho está traduzido em português. é muito curioso. foi publicado postumamente com um prefácio da mulher Esther - que tão bem cuidou da obra do marido - e tem cinco textos, um dos quais sobre a experiência do muito jovem Calvino a escapar-se de casa para ir ver filmes a San Giovanni. comecei por esse. é bom. mas o mais interessante é La poubelle agréée. foi sendo escrito em meados dos anos 70, em Paris, publicado em 77 e começa assim: "Das tarefas domésticas, a única que desempenho com alguma competência e satisfação é a de ir pôr o lixo lá fora". sim, é sobre o lixo. o lixo diário, acumulado, revelador do consumismo ao qual o lixeiro de pele escura que o recolhe, vindo do norte de África, não tem acesso, embora fazendo parte da mesma sociedade onde cada um cumpre as suas rotinas de modo a haver cada vez mais supérfluos, mais consumismo, em suma, mais lixo. diz Calvino, a propósito de ir pôr o lixo lá fora: "... a satisfação que sinto é análoga à da defecação, do sentir despejar-se as vísceras, a sensação pelo menos por um momento que o meu corpo não contém mais nada senão eu mesmo, e não há confusão possível entre o que sou e o que me é irrefutavelmente estraho." é uma reflexão muito adequada a estes dias quando nos pomos a pensar sobre como chegamos até aqui.

A Guerra Não Tem Nome de Mulher
20 milhões de soviéticos morreram a combater o nazi-fascismo. as mulheres tiveram um papel determinante. cerca de um milhão alistou-se no exército vermelho, muitas iludindo as autoridades sobre a idade para poderem ser enviadas para a frente de combate. prestaram serviço nas diversas armas. foram snipers, batedoras, médicas e enfermeiras, aviadoras, cozinheiras, em suma, fizeram de tudo. A Guerra não Tem Rosto de Mulher, obra de estreia de Svetlana Alexievich, é uma impressionante recolha de testemunhos sobre as motivações dessas mulheres e a sorte que o pós-guerra lhes trouxe. não é um panegírico sobre o heroísmo, são relatos pungentes de pessoas que viveram a barbárie no feminino e cujo reconhecimento, muitas vezes, se ficou pelas medalhas que orgulhosamente ostentavam no peito. foi este livro de pesadelos e assombrações, todavia belo, que inspirou Violeta, o filme do russo Kantemir Balagov que está por aí em sala. o livro é bem mais interessante do que o filme. é apenas uma opinião.

A História da Pide
no brasil não houve ditadura, em portugal não houve fascismo. deixemos o brasil de lado, só para aqui chamado por ser um exemplo sinistro da inversão da história em curso. então, portugal. por cá há quem diga que houve um regime autoritário de direita, mas fascismo, não. rui rio disse-o. alguns historiadores, sugerem-no. uma parte das novas gerações desconhece o assunto, aliás, convenientemente ignorado por outra parte das gerações mais velhas. de modo que a todos sugiro a leitura deste livro de Irene Flunser Pimentel. é sobre a PIDE, a polícia política de salazar e caetano. está lá tudo explicado ao detalhe. estão lá os nomes dos facínoras que a integraram, os seus métodos, a tortura, a perseguição política, os assassínios. a autora tem, aliás, um conjunto notável de obras sobre essa simpática instituição cujos chefes despachavam directamente com o chefe máximo. pode ser que esta história motive para a leitura de outras obras sobre o fascismo português. o qual, sim, existiu.

A Imagem que Falta
A Imagem que Falta (2014), um notável documentário de Rithy Panh, faz a reconstituição do puzzle do extermínio da sua família - que é o puzzle do extermínio de um povo - no cambodja dos khmers vermelhos. nascido em Phnom Penh, o cineasta conseguiu fugir e fixou-se em Paris onde viria a tornar-se um dos grandes documentaristas do nosso tempo. os seus filmes, multi-premiados, centram-se nas sequelas da barbárie de Pol Pot no seu pequeno país de 7 milhões de habitantes e recuperam a memória desses tempos sinistros. Ruthy Pan não é um panfletário. a força da sua denúncia reside no esforço de entendimento do que se passou. em S-21: The Khmer Rouge Killing Machine (2003), sobre a prisão de Tuol Sleng, junta vítimas e carrascos para os confrontar com o horror vivido. a Imagem que Falta tem edição portuguesa e foi nomeado para os óscares. para quem estiver interessado.

A Lei de Teerão de Saeed Roustayi
se querem ver um grande filme, esta é uma excelente opção. o cinema iraniano tem revelado autores de enorme talento. de Saeed Roustayi nunca tinha visto nada. com a Lei de Teerão (2019) sinto-me autorizado a dizer que também nunca tinha visto nada assim. é uma obra vertiginosa sobre o mundo da droga e a acção policial num país com 6,5 milhões de viciados. mas é mais do que isso, posto que tem de ser lida em função das múltiplas camadas a partir das quais Roustayi constrói a narrativa. implacável, sem regras claras, a investigação corre paredes meias com a revelação de um sistema prisional tão arrepiante quanto o meio social onde se arrastam, na mais profunda miséria, os milhares de desgraçados que caem sob a alçada da lei. há, também, as engrenagens de um poder ambíguo e de uma justiça aleatória. e, finalmente, o virtuosismo do cineasta e dos actores, sobretudo de Payman Maadi (o polícia) e Navid Mohammadzadeh (o bandido), que, ao cabo de mais de duas horas, nos deixa asfixiados. talvez por isso só estivéssemos duas pessoas na sala. mas repito: a A Lei de Teerão é um grande filme.

A Origem
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
Constantino Cavafys (1921)
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
Constantino Cavafys (1921)

A paranoid
"A paranoid is someone who knows a little of what's going on."
William S. Burroughs
na imagem: Allen Ginsberg, William Burroughs e Phillip Whalen, 1975.
Foto: Rachel Homer
William S. Burroughs
na imagem: Allen Ginsberg, William Burroughs e Phillip Whalen, 1975.
Foto: Rachel Homer

A Queda de Salazar
a maioria das vezes o jornalismo em portugal merece bem ser tratado como uma actividade metafórica. andei por lá tantos anos, conheço tão bem os meandros, que cheguei a essa conclusão. mas gosto muito, muito, do bom jornalismo. e é por isso que quero fazer menção a este livro do José Pedro Castanheira, da Natal Vaz e do António Caeiro. foi lançado no final do ano passado, li-o há pouco de um só lanço e quero saudar os autores pela excelência do trabalho. aqui, sim, há jornalismo a sério, investigação a sério e rigor histórico a sério. numa altura em que os sinais do tempo suscitam tantas preocupações, é bom verificar que se multiplicam os trabalhos sobre o fascismo português. aqui contam-se os dias da queda da cadeira do fantoche lusitano e a luta pelo poder que se lhe seguiu. é ler. vale bem a pena.

À Toi Mon Amour
Je suis allé au marché aux oiseaux
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
De lourdes chaînes
Pour toi
mon amour
Et puis je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
mon amour.
Jacques Prévert
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
De lourdes chaînes
Pour toi
mon amour
Et puis je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
mon amour.
Jacques Prévert

A verdade é de papel
eis um belo livro. acaba de sair e tem diversos ensaios em torno da figura desse português singular que foi o poeta Tiago Veiga. grato a Mário Cláudio por tê-lo dado a conhecer através da fascinante biografia que dele escreveu. grato a quem colaborou neste A Verdade é de Papel permitindo, desse modo, entrar mais a fundo no enigma do homem e do artista. já o li e muito aprendi. o livro acolhe um modesto artigo meu a propósito do documentário que fiz sobre Mário Cláudio. ao José Vieira, que esteve ao leme desta estupenda edição, parabéns!
C A T E G O R I A S
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